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                            10/03/2016
                             Os  desastres naturais estão inscritos na história da Terra e da  humanidade, e isso fica bastante perceptível nos estudos  paleontológicos e também de antropologia que analisam os mitos que  cercam as histórias de diversos povos pelo mundo afora. No caso da  América do Sul, os estudos de curiosas crenças contribuem para  compreensão de muitos eventos naturais. Os incas, por exemplo,  acreditavam ser a fúria do deus Pachacamac a causa dos tremores de  terra, ou do terrível Waconera, que se alimentava de crianças e  gerava as secas para além da costa andina. O povo tupi-guarani, por  sua vez, também se refere a deuses para explicar fenômenos  ambientais. Entre outros, Tupã é o responsável pelas manifestações  meteorológicas (se apresenta na forma de trovão), e Iara, a mãe  das águas, além de afogar os homens que encanta, promove a formação  de neblinas e altera cursos de rios.
  Catástrofes  naturais continuaram a ser tratadas como castigo dos deuses também  após a colonização europeia na América do Sul. O padre José de  Cevallos atribuiu o forte terremoto seguido de tsunami como um  castigo para a população libertina que vivia em Lima, Peru, em  1746. 
  Além  de elementos culturais que mostram como somos “viciados” em  porquês, esses mitos são relembrados pela geógrafa Lucí Hidalgo  Nunes em seu mais recente livro, Urbanização  e desastres naturais, para apontar o quanto as catástrofes castigam o planeta. Para ela, é  preciso melhorar nossa adaptação a esses eventos, já que alguns  podem ser evitados ou ter prejuízos minimizados com adequada gestão.
  O  cerne do livro é o grande impacto dessas calamidades, como  terremotos e inundações, nos espaços urbanos, que cada vez ocupam  e modificam mais áreas – reflexo da globalização para atender as  demandas comerciais, tendo como consequência perdas econômicas e de  vidas. A autora destaca uma maior incapacidade de gestão desses  eventos na América Latina, onde não há auxílio adequado às  vítimas, sendo até inexistente um banco de dados padronizado e  completo para os estudos, demonstrando “o distanciamento entre as  conquistas científicas e tecnológicas dos reais problemas que  afligem a sociedade”.
  Com  levantamento e análise de dados entre os anos 1960 até 2009, a obra  se divide em quatro partes, sendo os dois primeiros capítulos mais  fluídos e de base para a compreensão do que são os diferentes  desastres naturais, seus indutores e consequências e sobre o  ambiente natural da América do Sul. Além disso, aborda aspectos  socioeconômicos e relações internacionais que interferem na  administração eficaz das catástrofes – e o leitor não precisa  ser, necessariamente, profundo conhecedor da área para entender o  texto. 
  Em  alguns momentos, porém, são necessários conhecimentos básicos de  geografia e atualidades para compreensão de eventos citados. Um  exemplo é quando, ao trazer as características da região banhada  pelo oceano Pacífico, menciona-se a importância da atividade  pesqueira, devido às águas frias vindas da corrente de Humboldt.  Não explica, entretanto, como a corrente fria traz do fundo do  oceano grande quantidade de plâncton, o que atrai peixes para a  região.
  Os  últimos capítulos são muito densos, embora o uso de tabelas e  gráficos tente facilitar a leitura. Na pesquisa sobre os desastres  naturais no decorrer de cinco décadas na América do Sul, Nunes  constatou o registro de 863 desastres, sendo 78,4% deles de caráter  hidrometeorológico e climático (seca, extremo de temperatura,  inundação, movimento de massa seca, movimento de massa úmida,  incêndio, tempestade), 14% geofísicos (abalos sísmicos e  vulcanismo) e 7,5% biológicos (epidemia).
  As  calamidades foram avaliadas também conforme o número de vítimas  fatais, de pessoas afetadas, e os prejuízos econômicos gerados.  Nunes, no entanto, destaca um problema na análise, uma vez que os  dados não são precisos e completos. Outros problemas que  atrapalharam a pesquisa foram a falta de consenso sobre algumas  definições, deficiência de registro e questões políticas que  exageram os números para obter mais benefícios externos ou ocultam  os impactos das tragédias – como pode ter ocorrido durante os  períodos ditatoriais que muitos países da América Latina viveram. 
  Entre  as descobertas da pesquisa, a autora destaca que as inundações são  as principais desencadeadoras de tragédias naturais, seguindo uma  tendência mundial, e são as que mais afetam pessoas e trazem  prejuízos para a América do Sul, muito embora os fenômenos  geofísicos gerem mais mortes, principalmente na Colômbia e no Peru  (problema que se agrava em regiões muito povoadas e com grande  circulação de pessoas).
  Nunes  alerta sobre o aumento de calamidades nos últimos anos em todo o  mundo, com pico em 2000, apontando a suscetibilidade e  vulnerabilidade humana perante os eventos. A autora destaca a  necessidade de mais estudos e observação sobre esses fenômenos,  até mesmo para evitar associações equivocadas. No terremoto de  2010, no Haiti, por exemplo, foi um erro relacioná-lo às mudanças  climáticas, já que a causa foi a movimentação sísmica.
  A  geógrafa também conclui que “É fato que as novas calamidades  irão acontecer, até nas sociedades mais preparadas, porém em  algumas nações, como as da América do Sul, o desafio real é fazer  com que elas sejam menores, e suas superações, mais céleres”.
  O  livro é uma importante contribuição para embasar novas políticas  públicas transnacionais para gerenciar tragédias que transpõem  limites territoriais. A autora, além da experiência no Instituto  Geológico de São Paulo, é professora e pesquisadora na Unicamp e  membro da Academia Real de Ciências Ultramarinas da Bélgica, por  sua atuação em climatologia. 
  O  livro está disponível em formato físico ou e-book, porém, para  leitura pelo computador ou dispositivo móvel, é necessário o  download de um aplicativo que pode apresentar falhas, como o  armazenamento parcial de marcações e notas.
  Urbanização  e desastres naturais – abrangência América do Sul
  Autora:  Lucí Hidalgo Nunes
  Oficina  de Textos
  Ano:  2015
  112  p.
  
 
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