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                             Neil  Harbisson vê o mundo em tons cinza. O britânico sofre de  acromatopsia, uma espécie de daltonismo total desde que nasceu.  Entretanto, aos 21 anos, ele participou de um experimento que  devolveu as cores ao seu mundo sensorial. Por meio de uma prótese,  Neil consegue "escutar as cores". Chamado de Eyeborg, o  acessório consiste em uma antena com câmera que é capaz de  traduzir a frequência de luz emitida pelas cores – mesmo aquelas  que um ser humano comum não consegue captar – para frequências de  som.
 O  britânico, que carrega seu Eyeborg por meio de uma saída USB, é o  primeiro humano a ser considerado legalmente um ciborgue. A maneira  como ele identifica as cores fez com que desenvolvesse projetos  artísticos envolvendo luz e som. Mais do que isso, o artista luta  pelo ciborguismo – e convida pessoas de todo o mundo a deixar que  seus corpos sejam aprimorados, ou hackeados, pela tecnologia. “Eu  parei de sentir a diferença entre o software e meu cérebro quando  comecei a sonhar com as cores. É algo invisível, que aconteceu  dentro da minha mente e foi quando comecei a me sentir  verdadeiramente um ciborgue”, afirmou.
    Neil Harbisson na Campus Party de 2016 / Foto: Flavia de Quadros 
 
 Criaturas  que são, ao mesmo tempo, máquina e animal, povoam a ficção  científica há séculos. Áreas como biologia, neurociência e  engenharia têm estudos que podem mudar os corpos no futuro próximo.  As pesquisas ainda levantam questões interessantes, como o limite  entre seres humanos e máquinas, e até mesmo revelam a possibilidade  de implante de membros, sensores e dispositivos, sem que exista uma  doença ou deficiência.
 "Todas  as pessoas no planeta precisam estender seus sentidos. Nossa  percepção da realidade é extremamente pequena, se compararmos  nossos sentidos com os de outras espécies", encoraja o artista  Harbisson.
 Para  o homem que “escuta as cores”, existem dois estágios para se  tornar um ciborgue (psicológico e biológico). “No primeiro  momento, usamos softwares e gadgets para aumentar a percepção do  mundo, e há uma união invisível entre homem e máquina. Já no  segundo, há a integração (nem sempre voluntária) entre carne e  chip por meio de um implante ou prótese”.
 #SomosTodosCiborgues
 A  dependência em relação às tecnologias é tema do "Manifesto  Ciborgue", publicado em 1985 pela bióloga norte-americana  Donna Haraway. Notória estudiosa do feminismo, a pesquisadora da  Universidade da Califórnia afirma que somos todos "quimeras,  híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo".
 
O  artista transmídia e pós-doutor em arte e tecnologia pela  Universidade de Brasília (UnB) Edgar Franco comenta que, antes mesmo  de usarmos próteses e dispositivos como o Eyeborg, já somos seres  transumanos. "Criamos uma dependência grande de nossos  dispositivos comunicacionais, utilizamos drogas químicas legais para  expandir nosso potencial", argumenta.
 Segundo  Franco, que se denomina “ciberpajé”, e é também professor na  pós-graduação em arte e cultura visual da UFG (Universidade  Federal de Goiás), o maior símbolo do caráter virtual da vida anda  boa parte do dia nas mãos. "O aparelho celular tornou-se uma  prótese quase onipresente. Eles têm modificado a ideia de  realidade, fazendo com que coexista a conhecida realidade ordinária,  com uma realidade virtualizada". 
  
   Ilustração sobre ciborguismo do artista Ciberpajé.  (Divulgação/Edgar Franco)
 
 
 A  visão de que o corpo é um hardware que está ficando obsoleto tem  um de seus principais defensores no inventor, futurólogo e  engenheiro norte-americano Ray Kurzweil. Segundo o pesquisador, o ser  humano não será refém de sua limitação biológica. As próteses  mecânicas e interfaces humano-máquina podem ser o início desse  "upgrade" para um ser humano 2.0.
 Franco,  porém, questiona se o motivo para "virar um ciborgue" é  realmente melhorar nosso “hardware”. “A razão principal que  levará isso a acontecer muito em breve não é um desejo real de  expandir o potencial do corpo e da mente, é um desejo escuso baseado  na competição. Toda a nossa cultura é extremamente competitiva, e  as pessoas concordam com qualquer coisa para tornarem-se  “vitoriosas”. Todos os dias, vemos atletas se disporem a tomar  substâncias desconhecidas e ainda experimentais para melhorar seu  desempenho. Inúmeros atletas olímpicos já foram pegos em exames de  doping, e muitos morreram jovens em consequência das sequelas  causadas pelas substâncias ilícitas. Ou seja, concordaram em  colocar suas vidas em risco para ganhar de seus adversários”, diz.
 A  interface humano e máquina
 Doutor  em neurociência e diretor do Centro de Pesquisa Biomédica da  Universidade de Victoria, no Canadá, E. Paul Zehr acredita na  possibilidade de que pessoas possam trocar partes biológicas do  corpo por próteses mecânicas e órgãos criados por impressoras 3D  na próxima década.
   Membros mecânicos serão uma realidade daqui 10 anos. Hugh Herr, do  MIT, usando pernas biônicas. (Divulgação/Ryan Lash/TED Conference)
 
 As  pesquisas do time coordenado por Zehr se concentram no controle  neural do movimento de braços e pernas durante a recuperação após  AVCs (acidentes vasculares cerebrais) e lesões da medula espinhal.  Para o neurocientista canadense, os “hacks” mais interessantes do  corpo humano virão das interfaces entre mente e máquina.
 "Novos  estudos mostram como a informação pode agora ser transferida entre  os cérebros dos organismos vivos. Em 2013, um estudo de Sam  Deadwyler, da Universidade Wake Forest, e seus colegas da  Universidade da Califórnia e da Universidade de Kentucky descreve a  inserção de memórias de um animal que aprendeu alguma coisa  (doador), para outro animal sem esse conhecimento (receptor)”,  conta Zehr.
 O  experimento de Deadwyler foi publicado no artigo “Donor/recipient  enhancement of memory in rat hippocampus” (Melhoramento de  doador/receptor de memória no hipocampo de ratos, em tradução  livre) e descreve como é possível gravar a atividade cerebral de um  animal e usá-la para estimular o cérebro de outro para criar um  traço de memória.
 
Para  Zehr, esse tipo de prática poderia ser usado para melhorar o  desempenho de uma pessoa, reparar danos cerebrais causados por  acidentes ou até mesmo para fornecer memórias de treino para um  cérebro – algo parecido com o que acontece no filme Matrix (1999), no qual os personagens aprendem habilidades que nunca  tiveram, usando implantes de dados. "A aplicação final é  melhorar a memória em seres humanos e substituir memórias em  distúrbios nos quais a formação e recuperação da memória está  falhando", comenta o professor da Universidade de Victoria.
 Hackeando  o DNA
 Antes  de buscar um HD grande o suficiente para fazer o upload de suas  memórias para a nuvem, ainda há um grande campo de exploração do  lado de dentro do corpo humano. Segundo o pós-doutor em  bioinformática e biologia molecular Marcelo Brandão, estudos de  áreas como matemática e engenharia podem ajudar biólogos a  descobrir um código matemático que explique a estrutura primária  da vida, o DNA.
 O  pesquisador, responsável pelo Labis (Laboratório de Biologia  Integrativa e Sistêmica) do Centro de Biologia Molecular e  Engenharia Genética (CBMEG) da Universidade Estadual de Campinas  (Unicamp), explica que a informação genética é guardada no DNA,  como uma mensagem que é transcrita pelo RNA. Além de um canal de  ativação, ele também atua como corretor em possíveis erros  biológicos. A abordagem proposta por Brandão é transformar código  genético em unidades matemáticas.
 "Os  organismos estão usando esses códigos a bilhões de anos, o que  fizemos é provar matematicamente essa proposta biológica. Você  pode prever drogas ou tratamentos gênicos, que mantenham a  integridade do sistema biológico, e ser menos invasivo para o  paciente", conta o pesquisador sobre as formas de “hackear”  o DNA.
 Além  disso, o sucesso dessa abordagem significa menos alterações  genéticas por tentativa e erro em animais e plantas. Outro dos  desdobramentos dessa linha de pesquisas pode trazer a cura para  vários tipos de câncer, que são causados por uma única alteração  no DNA. De acordo com a abordagem proposta por Brandão e outros  biólogos, há a possibilidade de que essa mutação aconteça porque  o DNA perdeu um trecho de seu código corretor. Com ajuda da  matemática, seria possível diagnosticar onde está esse erro e  criar medicamentos que atuem exatamente na região, sem alterar a  estrutura do DNA.
 "O  que precisamos elucidar muito bem é onde está a correção e a  codificação matemática desse DNA. Será que ela já sai do DNA, ou  ela está no canal, ou então na tradução, o RNA?", questiona  o pesquisador.
 Feitos  em casa
 Os  questionamentos sobre a vida digital, ciborguismo e pós-humanismo  encontra várias expressões diferentes nas pesquisas relacionadas às  artes. A coreógrafa, dançarina e ativista catalã Moon Ribas  acredita que esse ciborguismo permite um novo tipo de arte.
 "Vivemos  em um tempo que os artistas não precisam mais usar a tecnologia  apenas como uma ferramenta. Podemos incorporar tecnologia em nossos  corpos e estender nossos sentidos. E criar arte por meio desses novos  sentidos. É uma mudança na forma como usamos tecnologia",  afirma Moon, que possui um sensor implantado em seu cotovelo e  consegue sentir quando um terremoto acontece em algum lugar do  planeta. Esses abalos sísmicos de diferentes intensidades são  usados pela artista na criação de seus movimentos de dança.
 Ao  lado de Harbisson, a ativista catalã criou a Cyborg Fundation, em  2010. A organização encoraja implantes voluntários com materiais  biocompatíveis e o uso de softwares para o aumento das capacidades  sensoriais. A dupla acredita no ciborguismo como um movimento social  e artístico. O britânico, inclusive, vê sua câmera/antena como  uma "obra de arte aplicada ao corpo de um artista".
 Longe  dos laboratórios e até dos palcos, existe uma comunidade DIY (Do it  yourself ou "faça você mesmo", em tradução livre) que  propõe implantes de sensores como os da dupla de artistas da Cyborg  Foundation. Sites como o Dangerous Things, Grindhouse Wetware e  vários outros fóruns exibem informações e até mesmo  comercializam sensores e chips que são biocompatíveis para  implantes caseiros.
 Algumas  dessas melhorias incluem chips NFC (como os usados em cartões de  proximidade e bilhetes únicos), sensores de temperatura corporal e  até mesmo acessórios que permitem que você saiba para que lado  está o norte. Alguns deles possuem até mesmo conexão Wi-Fi ou  Bluetooth, para que possam transmitir suas informações para  smartphones e outros aparelhos.
 Para  Harbisson, o maior desafio para o futuro dos híbridos é garantir  que qualquer pessoa tenha direito de mudar o próprio corpo, já que  vários comitês bioéticos não aceitam esse tipo de implante como  válidos do ponto de vista médico.
 Já  o neurocientista canadense Paul Zehr tem uma posição um pouco mais  cética sobre a utilidade desses implantes. “Tenho lido muito sobre  isso. Pessoalmente, acho que as pessoas não deveriam fazer isso até  que existam melhores salvaguardas. É ruim o bastante já ter um site  hackeado. Por que deixar as coisas mais fáceis para que alguém  possa hackear o seu próprio corpo?”, finaliza.
 
 
 Para  saber mais:
 Neil  Harbisson – Eu escuto as cores
 https://www.ted.com/talks/neil_harbisson_i_listen_to_color?language=pt-br
 Hugh  Herr sobre a próxima geração de membros biônicos:
 https://www.ted.com/talks/hugh_herr_the_new_bionics_that_let_us_run_climb_and_dance/transcript?language=pt-br
 
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