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 "Tal o artista que esculpe uma estátua ao natural, desbastando todas as excrescências que entravam a contemplação pura da figura oculta, e apenas mediante essa aférese faz aparecer a formosura escondida tal como ela é em si mesma" (Areopagita, 1996) 
 "A progressão na obra de um pintor, enquanto viaja pelo tempo de um ponto a outro, há de apontar para a claridade: em direção a eliminação de todos os obstáculos entre o pintor e a idéia, e entre a idéia e o observador" (Rothko, 2007b) 
 O que existe em comum entre o pensamento neoplatônico e a arte abstrata do século XX? Aparentemente diríamos que nada. No entanto, tratando-se da relação entre a tradição plotiniana de Dionísio Pseudo Areopagita, mestre Eckhart e a arte de Mark Rothko, muitas coisas podem ser pensadas. Embora não encontremos nenhuma referência direta nos textos de Mark Rothko a Dionísio ou a Eckhart, uma leitura atenta dos seus escritos revela a profunda identificação do artista com a tradição mística neoplatônica. Nascido em 25 de setembro de 1903, em Dvinsk (atual Letônia), Markus Rothkowitz emigrou para os Estados Unidos em 1913. Famoso pelas suas "pinturas negras" (Black Paintings - 1960), Rothko redimensionou a pintura contemporânea graças a uma obcecada busca por encontrar a unidade cromática  que fosse capaz de expressar o limite entre as duas realidades que, segundo ele, constituem o real: o sensível e o inteligível. Frases como "nada deve se antepor entre minha pintura e o observador" ou "o silêncio é o mais acertado", revelam, por um lado, uma experiência para além da compreensão verbo-visual, graças às influências que teve de Matisse e Kandinsky e, por outro, uma profunda filiação com a tradição platônica do belo presente, de modo especial, nos Diálogos Fedon  e Banquete. 
 Mark Rothko (2007a: 161) inicia o capítulo da sua obra A realidade do artista  intitulado "O belo e sua criação" afirmando: "De fato, é difícil escapar à noção platônica de beleza, seja em que época for". Para ele, a arte não é um impulso de imitação da realidade objetiva, mas uma necessidade de refugiar-se “além do mundo representacional” e seu atulhamento de objetos. Nesse sentido, as formas, as cores, são manifestações religiosas e artísticas que nos lembram o que Eliade (1999: 24) chama de “mística primitiva”, isto é, a experiência da perda da forma atual em função do encontro com a forma original. É importante ressaltar, a influência sofrida por M. Rothko nos meados dos anos quarenta, da obra nietzscheana O nascimento da tragédia. 
 Através de Nietzsche, o artista penetrou na mentalidade mítica grega, principalmente, no aspecto dionisíaco que, para ele, encarnava o mais profundo estado de êxtase. Diz ele: “Perguntava-me porque um escrito que trata da tragédia grega tem um papel tão importante na vida de um pintor (dado que as artes, segundo creio, não podem imitar umas as outras), e o único que poderia dizer é que os problemas fundamentais da vida são os mesmos para o artista, o poeta ou o músico. É necessário lembrar que só se pode roubar algo (indecifrável) dos deuses mediante a criação” (Rothko, 2007: 164). 
 Vale lembrar que, no mito, Dionísio é um deus sacrificado por ciumentos titãs, esquartejado por Bacantes e devorado em um ritual. Para Rothko, a tragédia representa a possibilidade de se compreender a abstração como um caminho contemplativo e salvífico. Nesta perspectiva podemos entender suas palavras quando afirma que conhecer é desvelar, isto é, um despojamento de todos os véus ou, como ele mesmo diz, “um elevar-se às profundidades em direção ao conhecimento direto“ (Rothko, 2007b: 166). Por essa razão, Amador Veja (2002: 49), afirma que a indigência espiritual do século XX demonstra, paradoxalmente, uma capacidade simbólica e sacramental que acolhe o mistério em uma linguagem, antes, tipicamente, religiosa. Estamos, portanto, tratando de um discurso estético notadamente apofático dado que é pela negação que o milagre, como define Rothko, da unidade entre criador e criatura se realiza. 
 Segundo Rothko, as grandes criações artísticas do passado são frutos de uma “fé do homem na unidade suprema”. Fé que se desfez com o método científico e a investigação sobre a natureza última das coisas, rompendo com a síntese que existia entre o mundo objetivo e imaginativo. Somente com a redescoberta da síntese, entre estas duas realidades, as chamadas filosofias pessimistas e o ceticismo plástico poderão ser superados. 
 Esse foi justamente o intento do artista com suas “pinturas negras”, isto é, propiciar a superação do conhecimento especulativo por uma experiência extática que nos desafia a pensar na imediatez da experiência estética (Veja, 2002: 50). A arte como exercício da primitiva nostalgia da origem  que, citando uma vez mais Eliade, está na raiz da mística primitiva. A estética e a ascética  formam, assim, duas dimensões de uma mesma natureza humana. É o desfazer-se da forma atual para encontrar-se com a forma original. Essa experiência de busca e construção, ao mesmo tempo da obra e do artista, aponta para uma dimensão humana da arte abstrata radical na qual artista e obra se fazem mutuamente. Como bem observou Meyer Schapiro (2001: 10), a abstração em pintura evoca, mais intensamente do que nunca, o artista durante o ato de pintar - seu toque, sua vitalidade e estado de espírito, o drama da decisão no processo de feitura da arte. 
 Quando Rothko foi convidado em 1965 para pintar os murais que ilustrariam a Capela da St. Thomas Catholic University, em Houston, mergulhou profundamente no que seria, segundo suas próprias palavras, o seu mais importante testemunho artístico (Baal, 2003). Quatorze grandes pinturas, divididas em três trípticos, pintados de forma monogramática entre castanho e preto opaco, foram definidas por Dominique de Menil na inauguração, um ano depois da morte de Rothko, com as seguintes palavras: “Estamos afogados em imagens, e apenas a arte abstrata nos pode levar ao patamar do divino” (Baal, 2003: 75). 
 
 Rothko aponta para a idéia de uma “contemplação pura” que suas pinturas negras, presentes na capela de Houston, tentam expressar, diz ele: “Exigimos antes de tudo e sobre tudo a vitória sobre o subjetivo, redenção do eu e silenciamento de toda vontade e capricho individual” (Rothko, 1966: 62)”. A abstração é, assim, expressão de uma experiência radical em que estética converte-se em ascese propiciando, deste modo, um discurso sobre o inefável, diz Rothko: “Insisto na equivalente existência do mundo engendrado na mente e o mundo engendrado por Deus fora de si ”(Rothko, 2007b: 82).  
 
 De modo que a pintura abstrata de Rothko tem como finalidade expressar a “idéia inerente à forma”. O artista afirma que entre as expressões artísticas do passado e do presente algo permanece como fio condutor que as unem, a saber: o espírito. Um quadro mais que cor e forma é uma idéia cujo significado, neoplatonicamente, transcende qualquer das suas partes (Rothko, 2007b: 67) ou como nos diz W. Worringer (1953: 135), a criação artística significa um exercício de uma função anímica absolutamente oposta que, longe de toda devoção terrenal, longe de toda afirmação do mundo dos fenômenos, repousa numa zona de necessidade e abstração. 
 Para Rothko, cabe ao filósofo e ao poeta estabelecerem novos caminhos também compartilhados pelo artista, posto que, artista, poeta e filósofos buscam, em concreto, a mesma coisa, isto é, a expressão das suas concepções do real (Worringer, 1953). 
 Uma das afirmações mais importantes para o que estou aqui postulando encontramos no borrador 6  em uma carta dirigida ao editor de Rothko Adolph Gottlieb de 1943, ali lemos que: “O quadro não é simplesmente sua cor, sua forma ou seu sentido, mas é uma idéia imbuída em uma entidade cujo significado transcende qualquer das suas partes”. Idéia esta que escapa a toda formulação matemática e lingüística posto que, como o próprio Rothko diz, esses meios jamais conseguem apreender a abstração na sua nudez. Rothko o compara ao “velho ideal de Deus ”  desconhecido (absconditus)(Rothko, 2007b). 
  
Rothko, Mark 
Interior, the Rothko Chapel 
North view, including the apse triptych at far right – Houston, Texas 
Fonte: abstractart.20m.com
 Deus nas suas teofânias é o modelo utilizado, por Rothko (2007b), para pensar a beleza do sensível nos mesmos moldes pensamento neoplatônico, isto é, como participação na “infinitude do real” que só é possível pela sua negação. Diz ele: “É graças ao reconhecimento dessa identidade com o protótipo que podemos observar sensatamente as diferenças” (Rothko, 2007b). 
 Finalmente, estamos diante de uma concepção da arte como espelho da realidade e, seguindo a tradição, como vimos anteriormente, do “Deus desconhecido”, Rothko alinha-se perfeitamente à idéia de que o belo é conhecido indiretamente.  
 A pintura moderna é definida por Rothko como “prancha de lançamento” para a construção, a partir da destruição de uma arte que, como nos diz o seu filho Chistopher Rothko no prefácio da obra A realidade do artista, é como uma música que procura exprimir o inexprimível. No fundo é a transcendência absoluta às regras e normas que delimitam o espaço entre criador e criatura. A feitura de um quadro é, para Rothko, algo milagroso, arrebatador e que, finalizado, se converte em algo estranho, tanto para o artista quanto para o espectador. É uma revelação (Rothko, 2007b: 101) ou um re-invenção frente à avalanche consumista dos nossos tempos que nos convida a pensar em uma arte que ousa mergulhar no vazio e enraizar-se, crescendo e fincado-se no silêncio. Por tudo isso, podemos compreender as palavras de Rothko ao dizer: “Quando se consegue a unidade, não se pode explicar como ocorreu, porque nem eu sei” (Rothko, 2007b).  
 Cícero Cunha Bezerra é doutor em filosofia e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Este artigo foi elaborado graças ao apoio do projeto PAIRD/UFS
  
 Referências bibliográficas  
 Areopagita, D.P. (1996) “Teologia mística II, 1025b”. in Medievalia, textos e estudos, n.10. trad. Mário Santiago de Carvalho. Porto: Fundação Eng. António de Almeida.  
Baal, T. J. Rothko. (2003). trad. Francisco Paiva Boléo. Lisboa: Taschen.  
Eckhart, M. (2006). Sermões alemães, 5b. trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes.  
Eliade, M. (1999). O sagrado e o profano. trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes.  
Lossky, V. (1998)  Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maître Eckhar. Paris: J. Vrin.  
Rothko, M. (2007a). A realidade do artista. trad. Fernanda Mira Barros. Lisboa: Cotovia.  
Rothko, M. (2007b) Escritos sobre arte (1934-1969). trad. Miguel López-Remiro. Barcelona: Paidós Estética 41.  
Schapiro, M. (2001). Mondrian, a dimensão humana da pintura abstrata. trad. Betina Bischot. São Paulo: Cosac & Naify.  
Vega, A. (2002) “La noche del sentido: fundamentos para una hermenéutica de la negatividad en el siglo XX”. in: Arte e santidad, cuatro lecciones de estética apofática, Navarra: Universidad de Navarra.  
Worringer, W. (1953). Abstraccion y naturaleza. trad. Mariana Frenk. México: Fondo de Cultura Econômica. 
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