No  livro O rato, a mosca e o homem,  François Jacob termina suas análises e reflexões com uma avaliação  importante e uma inquieta profecia. A avaliação é sobre o século  XX, que terminou; a inquietação, sobre o século XXI, que agora se  desenrola. Diz ele: “Somos  uma temível mistura de ácidos nucléicos e lembranças, de desejos  e de proteínas. O século que termina ocupou-se muito de ácidos  nucléicos e de proteínas. O seguinte vai concentrar-se sobre as  lembranças e os desejos. Saberá ele resolver essas questões?”.  É cedo para responder, mas  provavelmente não. O que não quer dizer que não se continuará a  buscar respostas e que o conhecimento deixará de caminhar em  sofisticação e entendimento do homem, do mundo e das intrincadas e  complexas relações entre eles.
 Muitos  apontam, no século XX, três grandes marcos do avanço do  conhecimento científico e tecnológico: o Projeto Manhattan que  produziu também a bomba atômica, o programa espacial que, em 1969,  levou o homem à lua, embora parcela significativa da população do  planeta continue a duvidar do feito e, mais recentemente, o Projeto  Genoma Humano, além dos que se seguiram sobre outros seres vivos,  animais e vegetais, do genoma do câncer e de outras patologias que  afligem a humanidade.
 A  tecnologia do sequenciamento de genes foi aperfeiçoada e seus  resultados acelerados graças a outra tecnologia contemporânea, a da  informação, que permitiu, pela agregação de conhecimento de  diferentes áreas, entre elas a da biologia molecular, o  desenvolvimento da bioinformática. De outro lado, esse ponto de  relevo dos estudos biológicos encontra respaldo numa história um  pouco mais antiga, que remonta, no século XVIII a Pierre-Louis de  Maupertuis e, no século XIX, a Darwin, com a publicação de A  origem das espécies, e a Gregor  Mendel, considerado o pai da genética, que publica Experiências  sobre hibridação de plantas, seus  estudos fundadores sobre a transmissão de características de  ervilhas de uma geração para a outra, dando, assim, nascimento à  formulação de leis gerais da hereditariedade.
 Em  1953, só para citar outra data de referência importante para as  pesquisas genéticas e para os futuros estudos da genômica, Watson e  Crick realizam a descoberta do DNA e a dupla hélice da representação  de sua estrutura passa a girar e a gerar a dinâmica dos estudos da  vida, traçando para a biologia o caminho de  seu ingresso no  universo das chamadas ciências pesadas, que lidam com a  quantificação do conhecimento e, para tanto, necessitam da  materialidade conceitual e metodológica de seu objeto. A  materialização dos genes, nesse sentido, é um passo fundamental  não só para a multiplicidade de campos de atuação da genética,  para as áreas de fronteira abertas com o seu desenvolvimento, como  também para a ambição de estabelecer leis gerais determinantes do  comportamento animal e do comportamento humano assentadas sobre bases  naturais mais do que culturais, tendendo, em alguns casos, a ver a  própria cultura como determinação da natureza biológica do ser  vivo. 
 De  certo modo, isso é o que caracteriza a sociobiologia nascida nos  anos 1970 com os trabalhos de Wilson e os estudos comparados do  comportamento humano na área de etologia, realizados por Konrad  Lorenz, que serviram de inspiração a Wilson e nos quais apresenta a  evolução do homem em termos de tendências inatas submetidas à  seleção por influência do meio ambiente. 
 Quando  se fala em comportamento humano, no caso da sociobiologia, não se  quer referir apenas aos que dizem respeito às funções vitais de  reprodução, mas também àqueles que dizem respeito à política, à  ética, à estética e assim por diante, abrangendo todos os domínios  das relações e dos relacionamentos sociais do indivíduo. A  sociobiologia, com todos os problemas científicos com que se  apresenta e as dificuldades daí decorrentes para seu reconhecimento  no mundo da ciência, além das resistências culturais e ideológicas  que provocou e que continua provocando, é a expressão concreta da  tendência que, no conhecimento, busca, se assim se pode dizer, a  naturalização da cultura ou do que, tradicionalmente, é visto como  cultural.
 Nas  palavras de Wilson:
  As  principais teses da sociobiologia são fundadas no estudo de uma  miríade de espécies animais e resultam de centenas de investigações  em diversas disciplinas biológicas. Foi, assim, possível, pelos  métodos tradicionais dos postulados e de dedução da ciência  teórica, derivar proposições e testar muitas delas por meio de  estudos quantitativos.
 Contudo,  como bem observa Jacques G. Ruelland, no livro O  império dos genes, 
  Os  estudos quantitativos de que fala Wilson não provam a existência de  genes. A sociobiologia passa arbitrariamente da ordem dos dados  matemáticos para a da homologia entre as estruturas de organização  social dos insetos e as dos humanos, supondo que efeitos similares  têm necessariamente uma única e mesma causa: a presença de genes  comuns aos animais e aos humanos. Os sociobiologistas buscaram esse  procedimento nos etólogos.
 O  fato é que o surgimento da genética, termo cunhado em 1905 por  William Bateson, consolida a tendência dominante no século XX da  formação de novas áreas do conhecimento por agregação de áreas  existentes e não pela particularização e fragmentação de antigos  domínios teóricos da ciência tal como ocorreu de maneira  significativa ao longo de todo o século XIX. E tal como ocorreu,  epistemologicamente, para a constituição da genética, continuou a  ocorrer com seu desenvolvimento e com a formação subsequente de  vários novos domínios fronteiriços e multidisciplinares do  conhecimento, entre eles aquele do campo complexo e fascinante das  neurociências ou o da própria sociobiologia, ainda que com suas  dificuldades teóricas e metodológicas que acabam de ser  mencionadas.
 Os  genes estão por toda parte na ciência, na cultura, no imaginário,  na arte, na ficção. Prometem e ameaçam, empurram e provocam a  psicanálise, acenam com a cura, com a longevidade, com a perenidade  do prazer da vida; brandem, ao mesmo tempo, a perfeição, como uma  clava doce e terrível de mesmice e desprazer com a existência. À  fascinação, com a busca dos determinismos biológicos de nossos  comportamentos sociais, opõe-se o medo da manipulação genética do  código da vida. Entre as duas pontas, a distância deve ser medida  pelo alcance de nossa curiosidade e pelo limite de nosso alcance.
 Ao  sentido da vida, ao destino do homem, a poesia, a religião, a  metafísica têm algo a dizer, mesmo que nelas nada se encontre da  materialidade com que é investido o gene em seu protagonismo  científico contemporâneo. Como diz Jacob, “nenhuma ciência pode  trazer respostas a tais perguntas”. O que não quer dizer que a ciência não deva continuar perguntando,  de forma sistemática, o que pode responder e que está ao alcance  dos limites do conhecimento científico, que estão longe de serem  atingidos, como prova a grande revolução causada pelos estudos  genéticos de Mendel quase um século e meio atrás e os cenários  “ilimitados e periódicos”, como da biblioteca de Babel, de  Borges, que continuam a se descortinar para o conhecimento científico  da vida e seus semelhantes.
  Parece um contrassenso de redundância falar em utopias virtuais como  se alguma forma de utopia pudesse ser real, já que o termo designa,  pelo significado etimológico, um lugar que não existe e que, por  não existir, nos atrai com o fascínio de promessas impossíveis de  serem, na realidade, realizadas.
  Na contemporaneidade, fomos nos habituando com um conjunto de novas  expressões, todas procurando apreender e comunicar as  características mais marcantes do mundo que emergiu da globalização  total da economia, cujos últimos obstáculos ruíram com o Muro de  Berlim, em 1989, e de cuja ruína nasceu prematuramente o século  XXI. Assim, sociedade da informação, sociedade global da  informação, economia do conhecimento, sociedade do conhecimento,  são expressões que se equivalem, pertencem ao mesmo paradigma, e se  não recobrem exatamente os mesmos significados, têm, em comum,  contudo, a aspiração retórica da igualdade social, agora  articulada na figura do igualitarismo do acesso à informação.
  De que é feita essa retórica? Entre outras, de expressões como:  novo paradigma tecnoeconômico, resgatar a dívida social, alavancar  o desenvolvimento, constituir uma nova ordem social, excluir a  exclusão, economia baseada na informação, no conhecimento e no  aprendizado, onda de destruição criadora, evitar que se crie classe  de infoexcluídos, alfabetização digital, fluência em tecnologias  de informação e comunicação (TICS), aprender a aprender, inclusão  social como prioridade absoluta, democratização dos processos  sociais pelas TICS, vencer a clivagem social entre o formal e o  informal, agregar valor, redes de conteúdos que farão a sociedade  se mover para a sociedade da informação, igualdade de oportunidades  de acesso às novas tecnologias, condição indispensável para a  coesão social no Brasil ...
  Há mais, mas o que aí está ilustra essa retórica da virtualidade  igualitária que vai tecendo a cultura em que florescem as utopias  virtuais, uma cultura da qual a juventude se apropria, transforma em  território de ocupação. As utopias virtuais não são tristes, nem  são alegres. Tendem antes a ser chatas e aborrecidas com seus  mantras de autoajuda e de ajuda autômata, tentando compensar pelo  virtual uma igualdade meio abstrata, meio de artifício, que não se  dá na realidade.
  Um dos maiores feitos do mundo informatizado foi o de tornar-se  difuso, porque difundido, oferecendo as condições técnicas e  tecnológicas para que dele se desenvolvesse, em nós, uma percepção  feita de simultaneidade pura, abolindo as distâncias dos  acontecimentos, no tempo e no espaço, reduzindo e amplificando a  dimensão do simbólico, de modo a confundir a coisa representada com  sua representação coisificada em simulacro, agora independente do  próprio ato de representar.
  Uma das características marcantes da globalização torna-se  efetivamente realizável pelo desenvolvimento das TICS e consiste da  livre circulação do capital financeiro, capaz de migrar com  mobilidade incrível de uma praça de mercado para outra, num piscar  de olhos, em busca de condições sempre mais favoráveis a seu ganho  e a sua multiplicação, o que, em contrapartida, possibilita também  que condições desfavoráveis, sobretudo em países centrais, logo  reflitam crítica e, às vezes, catastroficamente, na periferia.
  Por isso, o bater das asas da borboleta nos Estados Unidos pode  provocar terremotos econômicos no mundo ou, ao menos, abalos  sísmicos, no equilíbrio econômico do planeta. Se a borboleta bater  as asas na China, podemos estar certos de que hoje a Terra treme  também. E, dependendo de baterem por júbilo ou desespero, viveremos  todos, mesmo estando do outro lado dos oceanos, a euforia ou a  disforia dos acontecimentos distantes, às vezes numa ciclotimia de  estados antagônicos capaz de pôr as sociedades planetárias em  ritmo de psicopatologia bipolar.
  O mundo globalizado, conectado, ligado na, e pela teia, de informação  e comunicação tecida pela internet é, assim, quando não  aborrecido e chato, um mundo ágil e instantâneo que se oferece sob  a forma da alegria fugaz e da fugacidade alegre da percepção do  tempo e do espaço como só presente, numa geografia de aproximações  na qual o viajante não se move, mas, no entanto, viaja, sem sair do  lugar. A esse mundo planificado, no sentido de tornado plano e no  sentido de planejado ao extremo, é preciso oferecer conteúdos que  adensem a superficialidade das imagens penduradas em si mesmas  e quebrem o ritmo monótono de ordenamento de mesmice e desencanto.
  As facilidades de comunicação e de circulação da informação  oferecidas pela rede global de computadores abre possibilidades reais  de programas e projetos culturais e de educação antes não  imaginados e sequer vislumbrados. Poder pensar na oferta de educação  formal pública e gratuita, com e pela utilização intensiva das  TICS, põe-nos diante de uma nova concepção da escola, com uma nova  geografia estendida, alargada, socialmente distribuída e que, dessa  maneira, permite, com propriedade, falar de uma boa utopia virtual  com os pés na realidade. 
  
  
 
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