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                            10/11/2014
                             Como começou seu  interesse pela morte como linha de pesquisa na psicologia? Comecei  por razões pessoais. Uma tia muito doente queria falar sobre o assunto e eu  achava que devia dizer que estava tudo bem, que ela ia se recuperar. Mas ela  chamou minha atenção sobre como eu não me abria para falar sobre o assunto,  sendo psicóloga, e me passou algumas leituras principalmente na área esotérica.  Comecei a ler e depois achei que seria interessante transferir esse estudo para  o que acontece antes de as pessoas morrerem, a questão do luto e das perdas.  Comecei a ler material de psicologia por volta de 1982, quando ainda não era  nada tão disseminado como hoje. No Brasil, descobri a Wilma Torres, no Rio de  Janeiro, que já fazia estudos sistematizados sobre o assunto. Ela ministrava um  curso, mas não dentro da faculdade, e me deu dicas. Fiz o meu mestrado em cima  de um estudo sobre o medo da morte, depois houve a introdução da disciplina  psicologia da morte na graduação de psicologia, em 1986.
 Como é trabalhar com  um tema que, no senso comum, tem uma conotação pesada, triste?  
  Para  um profissional de saúde – e eu considero o psicólogo nesse grupo de  profissionais – faz parte lidar com as perdas no processo da vida, o  adoecimento, a perda de pessoas e situações significativas. Logicamente, do  ponto de vista pessoal, é muito difícil, e é muito complicado se temos que  exercer os dois papéis. Há alguns anos perdemos uma colega muito querida do  departamento e eu estava nesse duplo papel, de ser a pessoa que trabalha na  área, mas de luto, porque perdi minha amiga. Aí não dá para ser objetiva, você  está muito envolvida na situação. As pessoas, às vezes, têm uma concepção  errônea de que porque estudamos o assunto sabemos lidar com todas as situações,  o que não é verdade. 
 Por que a morte é um  tabu e quais as principais consequências disso na sociedade?  
  A  morte na sociedade ocidental contemporânea é considerada tabu porque, de alguma  forma, a questão médica e os tratamentos sofisticados dão a ideia de que  podemos adiá-la para sempre. O que não é verdade, pelo menos não do ponto de  vista científico. Em lendas e mitos até é possível, com os deuses imortais. Mas  entre a humanidade, não. Então temos essa ideia de que não se deve falar do  assunto e que falar dele causa sofrimento. Mas observamos que é não falar sobre  o assunto que causa sofrimento, principalmente para quem está vivendo a  situação, está doente ou perdeu alguém. E não é verdade que as pessoas não  querem falar. Algumas pessoas não querem falar, outras querem. Se uma pessoa  está em sofrimento, doente, por exemplo, e dizem para ela 'ah, vai ficar tudo bem,  você vai ficar boa', mas ela está quase morrendo, faz mais mal do que não falar  nada ou não deixá-la falar sobre os medos e sobre a separação. O tabu tem como  consequência um silenciamento que pode causar mais sofrimento. 
 A partir da década de  1970, se popularizou a teoria de 5 estágios para lidar com a perda, da  psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross – negação, raiva, negociação, depressão,  aceitação. Eles ainda são válidos?   
  A  Kubler-Ross trouxe uma contribuição muito importante, não pelos cinco estágios  em si. Houve uma compreensão errônea de que seria um modelo de enfrentamento, e  não é. Na verdade, ela observou em muitos pacientes essas várias formas de  lidar com a situação, mas não são estágios sequenciais. A grande colaboração da  Kübler-Ross sobre o processo de luto, e também de finalização da vida, é a  possibilidade de se sintonizar com o que a pessoa está vivendo e responder de  acordo. Por exemplo, o sentimento de raiva que pode acontecer entre pessoas que  têm uma doença deveria ser compreendido pelo profissional de saúde não como um  ataque, embora ele seja dirigido àquela pessoa que está cuidando. É muito mais  uma manifestação do que a pessoa está vivendo do que obrigatoriamente um ataque  direto ao profissional. É possível compreender isso e não revidar na mesma  moeda, mas entender como um processo que a pessoa está vivendo, dar espaço para  esse processo, desde que não haja agressão, evidentemente. O fato de estar com  raiva ou magoado não autoriza a agressão à outra pessoa, mas a expressão do seu  sentimento. Então, a compreensão dela foi muito grande nesse sentido. Para nós,  foi um grande desenvolvimento na área da psicologia.  
 Que mudanças  ocorreram nessa área de estudo?  
  Eu  observo que na disciplina da graduação temos mais alunos, e não só da psicologia,  como muitos da área de exatas, por exemplo, que vêm para conhecer, ter um  espaço para debater. Aumentou muito o número de trabalhos, pesquisas, mestrados  e doutorados sobre o assunto. Hospitais, escolas, outras instituições têm  buscado o laboratório para conversar, capacitar os profissionais. Um exemplo é  o serviço funerário, que pediu um curso sobre morte para abordarmos questões  humanas, psicológicas, sobre como lidar com uma família que acabou de perder  alguém, precisa comprar os materiais, fica discutindo na frente do funcionário,  briga ou chega desesperado, chorando. Outro exemplo interessante é que hoje o  luto pela perda do bicho de estimação é considerado legítimo, com direito a  sofrimento, assim como a perda de um ser humano. Muitos profissionais têm nos  procurado para saber como conversar com os donos de bichos. 
 Vivemos também um  momento na sociedade em que não há tantos rituais relacionados ao luto. Como a  sociedade lida com a experiência de morte hoje, em geral?  
  Não  tem um “em geral”, infelizmente. Claro que há aspectos sociais e culturais que  são importantes, e vivemos em uma cultura que veda a questão da morte. Mas por  outro lado, noticiários, novelas, filmes e documentários têm muito assunto  sobre morte, cada vez mais. É uma coisa meio ambígua, quer e não quer falar  sobre o assunto. A questão dos rituais é extremamente importante, eles são  elementos organizadores de um momento de crise. Houve a situação trágica  daquele acidente dos estudantes de Borborema-SP, em outubro de 2014. Naquela  cidade, a comoção é total, tanto que eles decretaram o luto, e velório  coletivo. Os rituais, para essas pessoas, são extremamente importantes, pois  estão juntas, dividindo a dor, fazendo oração juntas e depois talvez haja  missa, algo público. Vejo que a minimização desses rituais hoje é muito ruim,  causa uma ideia de que você não faz parte, que tanto faz estar vivo ou morto,  ou que ninguém compreende a sua dor. Estimulamos, na psicologia (ou  profissionais que lidam com saúde mental) desenvolver e propor os rituais.  
 Como a morte poderia  ser melhor abordada na mídia? Tem alguma forma?  
  Dependendo  do tipo da mídia e de ideologia que gerencia, irá enfatizar certos aspectos em  detrimento de outros. Em certas mídias são valorizadas as imagens, a  destruição, o lado espetacular, o lado sombrio. Em outras, você vê uma busca de  compreensão do processo, de reflexão. Deveríamos favorecer a informação e o  esclarecimento, mas acompanhado de reflexão. Às vezes vejo exagero na  reprodução de notícias. A morte sempre capturou o ser humano de alguma maneira,  e hoje as imagens, as coisas espetaculares, prendem muito a atenção, e a  audiência aumenta. Não dá para dizer “vamos fazer o que o usuário quer” de  qualquer jeito, só para aumentar a audiência. Vamos capturar as pessoas, mas vamos  dar espaço de reflexão, de debate. 
 Outra coisa que tem a  ver com as mídias é a valorização da jovialidade e da beleza e, por outro lado,  a morte associada à decrepitude. Isso tem relação com a dificuldade em debater  e lidar com a morte? Há mudanças ao longo dos anos?   
  A  morte tem atingido cada vez mais pessoas jovens. Há associação muito forte  entre acidentes, abuso de substâncias, álcool e drogas, e suicídio entre os  jovens. Essas mortes estão aumentando de maneira exponencial, o que não se  justificaria pelo processo natural do desenvolvimento humano, em que se espera  que as pessoas envelheçam e morram. Por outro lado, as pessoas estão vivendo  mais tempo, mas o lado ruim é um prolongamento para além do que seria razoável,  e há pessoas muito doentes com sérios problemas físicos sendo mantidas vivas  por meio de aparelhagem ou tratamentos sofisticados. Isso, hoje, é responsável  por um grande medo das pessoas de morrer com dor, com sofrimento, com processo  de morte prolongada, o que aumenta por sua vez o debate sobre eutanásia e  suicídio assistido. Há várias coisas que precisam de uma discussão importante.  Muitos jovens morrendo e muitos velhos que não conseguem morrer. 
 Como o sistema de  saúde brasileiro vem se preparando para essa mudança?   
  Não  é exatamente a minha especialidade, mas diria que ainda há muito o que se  preparar. Principalmente para o atendimento da chamada terceira idade, um grupo  absolutamente heterogêneo, dos 60 aos 100 anos, com necessidades muito  diversas. Não adianta só prolongar a vida se não tem recursos para o  atendimento do idoso saudável e, mais ainda, daquele que está doente e precisa  de cuidados. Por exemplo, no Brasil, temos o mesmo tipo de envelhecimento que  nos países desenvolvidos, mas não os recursos, lugar de internação ou hospital  adequado. São pontos para serem discutidos.  
 E na formação para  lidar com os cuidados paliativos?  
  Tentamos  desenvolver aqui no país tanto a formação em geriatria, gerontologia, quanto em  cuidados paliativos em nível de graduação, mas principalmente de  especialização. O Brasil ainda está muito para trás em relação a isso, mas  observamos nos últimos anos um crescimento na área de cuidados paliativos,  principalmente porque na oncologia eles já são colocados como obrigatórios. Nas  outras áreas ainda não está tão desenvolvido. A área que está mais para trás é  a de cuidados de pessoas com demência, doença de Alzheimer ou doenças  neurodegenerativas como Parkinson e ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). 
 Em relação aos  direitos das pessoas que estão no final da vida, como está essa discussão?  
  Essa  discussão está bastante forte e no Brasil também. O Conselho Federal de  Medicina lançou a resolução da ortotanásia, que é o não prolongamento do  processo de vida, e o médico não é obrigado a fazer todos os procedimentos  quando a doença é irreversível e pode desligar os aparelhos sem infringir a  ética. Em 2012 foi criada a resolução que envolve as diretivas antecipadas da  vontade. Você pode escrever ou comunicar o seu desejo de não passar por  determinados tratamentos quando estiver na condição X, Y, Z. Essa declaração de  vontade tem que ser respeitada pelos médicos e familiares. Não é lei, é  resolução, mas já é um grande passo. 
 Para finalizar, o que  é uma boa morte na perspectiva da psicologia?  
  Não  vou falar do ponto de vista da psicologia porque o conceito de boa morte é  altamente subjetivo. Podemos até ter algumas coisas mais gerais, mas é  importante que cada um possa definir para si o que consideraria uma boa morte.  Mas eu diria que é quando não houvesse dor, sofrimento, angústia, com algum  tipo de preparação. Que não houvesse um impedimento do processo por medidas  médicas ou de outras áreas que impeçam o processo de morrer. Que possam ser  feitos rituais considerados necessários pelo sujeito. Ter ou não a presença dos  familiares também é uma escolha. Tem gente que quer morrer sozinho, ou seja,  quer se despedir e que as pessoas saiam e depois a pessoa morre. Às vezes isso  é dito conscientemente, outras vezes acontece. Esses são alguns dos parâmetros,  mas é muito importante que as pessoas possam, de alguma forma, se organizar, se  preparar para isso, ter o respeito dos familiares e dos profissionais. 
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