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 É  difícil iniciar qualquer tipo de atividade humana – e a produção  de um texto não é muito diferente – sem situarmos em seus  diversos sentidos e práticas uma dimensão vivida. Seja por uma  razão puramente pragmática e pouco reflexiva – estamos vivos  enquanto realizamos nossas atividades – ou em virtude de uma  curiosidade profunda – quiçá atávica – que nos leva à  pergunta, “o que é a vida?”. Sem ignorar a relevância da  primeira motivação – que não deve ser considerada uma evidência  puramente retórica – permito-me debruçar-me sobre uma variação  do segundo impulso: “o que é uma vida?”. Paradoxalmente,  a presença de um artigo definido compondo a primeira questão  torna-a ainda mais genérica, como se as vidas de todos pudessem ser  agregadas em uma só resposta. Por outro lado, “uma vida” pode  ser algo tão concreto quanto complexo, o que demandaria a um  pesquisador a escrita não apenas de uma tese, mas de biografias.
 “O  que é a vida?” é forma corrente com que boa parte dos  cientistas – biólogos, químicos, físicos –, mas também  juristas e teólogos, têm se questionado na longa narrativa sobre a  trajetória humana sobre a Terra. Em compensação, “o que é uma vida?” é uma pergunta que ouvimos diariamente nos gabinetes de  trabalho de antropólogos, sociólogos e da maioria dos cientistas  sociais que conhecemos. Não devemos investir muito nessas  classificações que, sem muito esforço, podem se mostrar  equivocadas, mas elas são válidas apenas para modular algumas  ideias que pretendo desenvolver neste texto ao recuperar alguns  eventos na história recente das ciências naturais e sociais a  propósito do que pode (ser) uma vida humana.
 Não  seria exagerado afirmar que a última década do século passado foi  marcada pelo desenvolvimento de um dos mais ambiciosos projetos de big science já concebidos, o Human Genome Project (HGP), cuja  magnitude da pergunta, possivelmente, só pode ser comparável àquela  mobilizada no âmbito dos maiores aceleradores de partículas: o que  é um ser humano? O projeto que pretendeu decodificar, mapear e  sequenciar o genoma humano esteve desde o início ancorado na  promessa (em sua eloquência não cumprida ao cabo do empreendimento)  de entender toda a diversidade de traços e comportamentos humanos  que estariam contidos e seriam supostamente determinados pelas ações  de nossos genes. A iniciativa logo se viu envolta em uma aura mística  em que proliferaram expressões como o “Livro da vida”, o “Santo  graal da biologia” e a “Linguagem de Deus”. A propaganda da  divulgação pública do HGP ganhou ainda mais força quando o  renomado biólogo molecular líder do consórcio público do genoma,  Francis Collins, declarou em junho de 2000, durante a cerimônia de  apresentação do rascunho do sequenciamento do código genético  humano, que era para ele “um motivo de humildade e admiração que  captamos o primeiro vislumbre de nosso livro de instruções, antes  só conhecido por Deus” (apud Davies, 2001).
 Ao  ufanismo presente no “Livro da vida” uniu-se uma conotação de  totalidade expressa naquilo que foi considerada a “tabela periódica  da biologia”. À dimensão fisicalista, que encontraria no próprio  corpo humano a resposta para – e as evidências de – sua vida,  somou-se inicialmente uma redução no DNA do que era concebido como  a “natureza humana” e, por fim, no estabelecimento de um suposto  padrão humano calcado na ideia de sua finitude biológica. A vida  humana e sua gênese assumiam, portanto, uma generalidade que deveria  ser apreendida pelo controle da técnica, muito embora os principais  articuladores pouco se questionassem acerca do que, afinal, poderia  ser uma vida humana. As singularidades incomensuráveis  presentes nas vivências – e não necessariamente no evento  fundador “vida” – foram incansavelmente apontadas pelos  antropólogos e sociólogos envolvidos nos aspectos éticos e sociais  do projeto. E sua redenção veio com o encerramento pouco conclusivo  naquilo que se propunha (compreender o humano) o HGP. Compreendia-se,  enfim, que a vida é um fenômeno muito mais complexo e multifatorial  do que os nossos genes podem sozinhos comportar.
 A  pergunta “o que é uma vida?” retorna agora ao horizonte  das pesquisas de ponta em ciência e tecnologia, mais uma vez  agregada ao complemento que a qualifica, o humano. Uma vida humana é  justamente aquilo que ao mesmo tempo motivou e desorientou o HGP.  Influiu positivamente na mobilização de recursos, uma vez que a  nossa presença narcísica no mundo coloca as inquietações humanas  no topo da escala de prioridade em relação à toda a biodiversidade  existente no planeta. E é justamente daí que advém a  desorientação. O problema da espécie humana não é um problema da  “espécie”, mas sim do “humano”, ou seja, daqueles que são  pensados para caberem dentro desse qualificador. A vida humana. As  vidas de quais humanos?
 É  certo que as novas tecnologias da vida vêm contribuir para a  superação de males que afligem o aglomerado que chamamos de  humanidade. No entanto, a questão que devemos ter sempre em mente –  para o desenvolvimento de uma ciência ética e inclusiva – é o  quanto de diversidade a noção de humanidade com a qual estamos  operando comporta e quão normativo é preciso ser para  estabilizá-la. Assim, passamos a perceber que nem os corpos e nem as  vidas pertencem a uma espécie humana, mas sim pertencem a sujeitos.  Sujeitos que possuem histórias de vida, que ostentam e fazem seus  gêneros, que se identificam racialmente, e que se organizam em  função de biossociabilidades, nos termos de Paul Rabinow (1999),  para reivindicarem políticas públicas e científicas para si.
 Se  não parece ser mais politicamente admissível buscar em um  determinado padrão de corpo humano, ou no seu fracionamento, o  significado para a vida (projeto fisicalista), é preciso pensar o  que pode uma vida humana. Quantas vidas cabem num corpo?
 Em  última análise, por exemplo, as recentes pesquisas de  desenvolvimento de neuropróteses, que promovem interfaces  cérebro-máquina, invertem a busca pela vida, antes internalizada  nos genes, tornando-a compósita. As máquinas e as próteses  acopladas ao cérebro, o órgão mais racionalizado deste corpo (por  ser “relacional” e não como pensado intrinsecamente “racional”),  pretendem restituir a humanidade aos corpos socialmente  estigmatizados como “menos humanos”. A partir dessas pesquisas,  chegamos a um panorama interessante, que nos leva a um corpo ciborgue  capaz de restabelecer a humanidade de alguém1.  Ao contrário do projeto fisicalista, em que a redenção encontra-se  na natureza, aqui o humano se situa em sua capacidade de articulação.
 Mesmo  nesses novos campos de pesquisa, o risco de recaídas reducionistas  ainda é possível. Elas se encontram de forma discreta nas práticas  de desenvolvimento tecnológico e transparecem nos juízos que são  feitos na própria concepção do problema a ser resolvido. Assim  como a noção de humano não é unívoca, os problemas que afetam a  humanidade – ou pelo menos a forma como ela se vê – também não  são percebidos da mesma maneira por todos. Quando a proposta  ensejada trata de recompor as faculdades consideradas básicas de um  ser humano, como locomover-se, alimentar-se, enxergar e ouvir com  autonomia, é preciso ter clareza de que o que está em jogo  permanece sendo o que estabelecemos como norma para definir sua  humanidade. Esta última é facilmente identificada através de seu  contorno, o que supostamente justifica as mais arrojadas intervenções  tecnológicas em nome de um bem comum a toda espécie humana.  Entretanto, nem tudo é contorno quando lidamos com seres vivos.  Existe em cada indivíduo que exerce no mundo sua ação vital um  limite de potência ainda pouco explorado e que entre nós, humanos,  chamaríamos de condição. Fundamentalmente, são essas condições  de vidas humanas que virão em breve a sobressair nos tipos de  pesquisas científicas que serão realizadas. Trata-se, finalmente,  de firmar um acordo tácito entre o que se passa nas bancadas de  laboratórios e a sociedade civil, representada por seus legítimos  porta-vozes, humanamente afetados, institucionalizados em seus  corpos, unidos pelas condições que os diferenciam do padrão da  espécie. Contra os cultuados reducionismos eugênicos surgirão,  então, existências multicultivadas.
 Como  nos diz Michel Serres, os jovens de hoje não são mais como foram  seus antepassados – reflexos do resultado dos conhecimentos que  acumularam gradativamente ao longo da vida. Uma nova geração  de humanos surgiu concomitantemente com as novas tecnologias que aqui  foram mencionadas. “Eles não têm mais o mesmo corpo, a mesma  expetativa de vida, não se comunicam mais da mesma maneira, não  percebem mais o mesmo mundo, não vivem mais na mesma natureza, não  habitam mais o mesmo espaço” (Serres, 2013, p. 20). Agindo como  usuários dos aplicativos que “baixam”, esses “novos humanos”  são amálgamas daquilo que optam por se agregar ao longo de uma vida.
 No  passado, a controvérsia em torno da existência de vidas mais ou  menos humanas culminou com o seu encerramento em nome da unicidade da  espécie, e quanto a isso não há o que se contrapor. Faz-se  necessário, no futuro, pensar que as formas humanas de existir são  heterogêneas e para elas não há denominador comum, apenas  múltiplos possíveis. Cabe, portanto, às nossas ciências e  tecnologias criar oportunidades para que as diversas condições  humanas sejam manifestadas livremente sem ser preciso evocar a crença  em sua natureza única.
 Guilherme  José da Silva e Sá é professor do Departamento de Antropologia da  Universidade de Brasília (UnB).
 
 
  Referências bibliográficas
 Davies,  K. Decifrando o genoma: a corrida para desvendar o DNA humano.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
 Haraway,  D. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista  no final do século XX”. In: Silva, T. T. da (org.). Antropologia  do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte:  Autêntica, 2000.
 Rabinow,  P. Antropologia da razão: ensaios de Paul Rabinow. Rio de  Janeiro: Relume Dumará, 1999.
 Serres,  M. Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
 
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