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                            10/07/2015
                            
 Esses  são os assuntos de que trata, nesta entrevista, Danilo Doneda.  Doutor em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro  (Uerj) e professor na mesma instituição, ele atuou como  coordenador-geral na Secretaria de Proteção ao Consumidor do  Ministério da Justiça (Senacon/MJ). É também consultor na  secretaria para o tema do projeto de lei sobre proteção de dados  pessoais no Brasil, que esteve em debate público até o começo de  julho, em uma plataforma online, tendo recebido cerca de 15 mil  visitas e mais de 600 comentários. Doneda também é autor dos  livros Da  privacidade à proteção de dados pessoais e A  proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da  informação creditícia.  
  O  que podemos classificar como dados pessoais?  
  Essa  é a questão que estamos enfrentando: a qualificação do dado  pessoal. A princípio, dado pessoal é qualquer informação sobre  uma pessoa. Seja o nome, o CPF, o número de telefone etc. O que não  quer dizer que todos esses dados pessoais vão ser protegidos da  mesma forma. Eventualmente, alguns desses dados podem ser de  conhecimento público, como, por exemplo, o fato de eu ser  proprietário de um apartamento: não posso evitar que as pessoas  saibam disso, tem uma lei que fala que é uma informação de  conhecimento público. E o fato de o dado ter circulação e ser  conhecido publicamente não quer dizer que ele não seja pessoal.  Chamar o dado de pessoal quer dizer que ele se refere à pessoa e  isso quer dizer que é preciso ter certo respeito por aquele dado.  Ele precisa ser verdadeiro e sua utilização não pode prejudicar a  pessoa, muito embora em algumas ocasiões ela não possa evitar que o  dado circule.  
  Quando  falamos em proteger o dado pessoal, não se trata apenas de evitar  que a informação circule, mas também corrigir um dado, fazer com  que ele seja atualizado. Muitas vezes a pessoa tem interesse, não  necessariamente em evitar que o dado seja conhecido, mas em ter a  certeza de que ele seja conhecido de uma maneira respeitosa, correta  e verdadeira. A proteção de dados é muito mais do que excluir do  conhecimento uma informação, embora isso também possa ocorrer. No  big data, na sociedade da informação, somos julgados, avaliados e  monitorados não a partir do que estamos fazendo, mas dos rastros que  deixamos. O cuidado com esses rastros é fundamental para você não  ser discriminado ou julgado de forma errada.  
  No  que os dados pessoais diferem dos chamados dados anônimos e dados  sensíveis, também citados no texto do projeto? 
  O  dado sensível também é um dado pessoal, só que é uma categoria  que, teoricamente, é mais propensa a discriminar o cidadão titular  do dado. Por exemplo, a religião de uma pessoa é considerada um  dado sensível, porque existem várias práticas sociais com  possibilidade de discriminar o cidadão por filiação religiosa. Os  dados sensíveis são dados pessoais que podem ser tratados mediante  uma justificativa legítima. Se, por exemplo, um banco vai fornecer  crédito a uma pessoa baseado nas opções sexuais, no gênero, na  religião e na filiação partidária, essas são informações  pessoais que estariam sendo usadas de forma discriminatória. Por  isso o nome sensível. Já um dado anônimo é, de certa forma, o  contrário de um dado pessoal. É uma informação que não está  ligada a uma pessoa. Por exemplo, eu moro em tal rua, tenho tal idade  e sou o Danilo. Se alguém fala que existe um sujeito com tal idade  que mora em tal rua, sem dizer que sou eu, esses são dados anônimos,  não se referem mais a uma pessoa.  
  Essa  lógica de dados anônimos não é parecida com o discurso das redes  sociais, que utilizam dados anônimos dos usuários, ou seja, sem  identificá-los, mas baseado em comportamentos, para fazer  publicidade online direcionada? 
  Existem  muitos instrumentos nas redes sociais e de publicidade online que  juntam informação sobre uma pessoa. Aí existe outra questão.  Esses dados podem eventualmente ser chamados de anônimos, sim, no  sentido de que eles não estão ligados a uma pessoa. Só que há uma  diferença: o dado meramente anônimo não está ligado a uma pessoa  e está solto no mundo. Agora, os dados referentes a um perfil são  todos referentes a uma única pessoa. Você somente não sabe quem é.  Digamos que o Facebook saiba muita coisa sobre mim, mas ele não  vende os dados, porque seria algo desnecessário. O que ele faz: vai  falar que tem tal usuário, com tal perfil, que está ligado na  plataforma tal hora, e de repente vale a pena vender tal publicidade  para esse usuário. Fazem isso a partir do meu perfil, estão usando  meus dados, não a minha identidade, mas estão fazendo com que uma  mensagem publicitária chegue até mim, baseada no meu perfil. E isso  é uma coisa interessante: o perfil de uma pessoa, mesmo sendo  anônimo, pode identificar alguém. Isso pode fazer com que algumas  escolhas sejam feitas. 
  E  o comércio usa isso a seu favor. 
  Por  exemplo, uma coisa que já acontece e não sabemos direito até que  ponto: imagine que uma certa loja mude o preço das mercadorias  baseada no perfil de navegação dos usuários. Ela não precisa  saber qual é o nome do usuário, se eu sei que aquele usuário  sempre loga naquele site, que tem tais hábitos de navegação e que  está em uma segmentação social de pessoas que são mais aptas a  gastar mais dinheiro com tal item do que em outro. Com essa  informação a loja vai mudando o preço, para ter a maior margem de  lucro possível. Ou seja, mesmo que os dados sejam anônimos, podem  causar algum efeito na vida de uma pessoa e isso pode discriminá-la.  Mudar o preço é uma forma de discriminação. A lei de proteção  de dados tem que se preocupar também com o uso que é feito dos  dados anônimos por dois motivos: primeiro, perfis de comportamento  podem identificar uma pessoa, causar algum efeito na vida delas e  podem ocorrer abusos. Segundo, é muito provável que dados anônimos  sejam tratados através de métodos de cruzamento de dados,  estatísticas etc. e que sejam reidentificados. Ou seja, a partir de  várias fontes de dados são feitos cruzamentos, relações e se  transforma aquele dado, que era anônimo, em dado pessoal novamente.  O fato de um dado ser anônimo pode facilitar o seu tratamento em  muitas ocasiões, sem prejudicar o cidadão, mas pode haver abuso,  como formas de discriminação. E o pior, essa discriminação é  feita através de algoritmos, são somente probabilidades.  
  Todas  essas esferas que utilizam dados pessoais, como as redes sociais, os  comércios e o próprio governo, possuem sistemas de armazenamento  desses dados. São informações como nome, telefone e endereço, e  também dados de prontuário médico, como no DataSus; ou de  comportamento do consumidor, como no Serasa Experian, que permite que  comerciantes consultem o histórico financeiro de clientes, de  dívidas a uma estimativa de seu salário. O uso desses dados, que  muitas vezes são repassados por terceiros, está amparado  judicialmente? Essa coleta de dados é legal? 
  Não  há uma lei de base que reúna tratamento de dados pessoais no  Brasil. Isso é ruim para todo mundo. Na falta de regras sobre  proteção de dados, a tendência é de que os projetos sejam feitos  sem muita preocupação com a privacidade, sem dar controle para o  cidadão sobre o que é feito com o dado, como o dado é utilizado  etc. Esses projetos acabam apresentando muitas qualidades, mas  aumentando os riscos ao mesmo tempo. Esse é o primeiro problema. O  segundo é que o fato de não haver uma regra geral sobre produção  de dados não quer dizer que não existam regras. Existe a  Constituição, que fala em privacidade, há várias normas que podem  ser aplicadas, como a Lei de Defesa do Consumidor etc., o que faz com  que muitos serviços públicos e privados existam numa espécie de  zona cinzenta jurídica: não se sabe muito bem o que é legal e o  que não é. E é difícil dizer, por que a lei não é clara, ela  não foi feita para esses casos. Muitas vezes, o sujeito fica  dependendo de uma decisão do Judiciário que não se sabe qual vai  ser. Isso serve para todo mundo. O setor privado não sabe direito  onde investir em algo mais responsável. Muitas empresas talvez  evitem o Brasil porque não têm certeza se estariam fazendo uma  coisa que é considerada errada. O próprio governo, quando lança  uma política pública, acaba deixando de lado algumas preocupações  com privacidade que poderiam aumentar as garantias do cidadão. Nesse  vazio todo mundo perde um pouco, e o cidadão perde também porque  ele sempre fica na desconfiança de que as informações sobre ele  estão sendo utilizadas de qualquer jeito. Não é que não exista um  amparo legal, o que acontece é que o amparo legal não fornece  segurança suficiente, nem para o cidadão e nem para aqueles que  fazem coletas de dados. Muitas vezes a coleta não é nem proibida  nem está claramente permitida.  
  O  que acontece se as empresas ou órgãos que recolhem dados pessoais  passam essas informações para terceiros? Como o projeto de dados  pessoais poderia auxiliar neste sentido? 
  Se  não tem uma lei de proteção de dados, não há uma regra básica.  Não há regra para a questão da finalidade, por exemplo. Tem uma  regra comum em dezenas de países que é a seguinte: a informação  pessoal, que é colhida para uma finalidade, só pode ser utilizada  para aquele fim. Não se pode vender nem ceder para um terceiro que  vai fazer outra coisa. Se isso ocorrer, o titular perde o controle  sobre ela. É por isso e por outros motivos que o Ministério da  Justiça elaborou e colocou em debate público o anteprojeto de lei  sobre proteção de dados pessoais. É preciso ter um conjunto de  regras para, mais do que a mera garantia genérica da privacidade,  dizer com certeza, com segurança, o que pode e o que não pode ser  feito com a informação. Hoje em dia existe o grande medo de que a  informação seja vendida. Eu diria que isso vai contra a boa fé,  contra os princípios do Direito, mas realmente não está cabalmente  claro, literal, escrito em mármore que não se pode praticá-lo. Por  isso, o anteprojeto procura fornecer vários instrumentos e  ferramentas para facilitar que o cidadão tenha esse tipo de  controle, sem que ele precise recorrer ao Judiciário, mas que ele  possa fazer pedidos diretamente nas empresas e nos órgãos públicos,  e que essas empresas tenham a obrigação de dar uma resposta de uma  forma rápida, correta. O anteprojeto entende que é imprescindível  a criação de um órgão público para intermediar e fiscalizar a  utilização de dados. Ela envolve uma tecnologia que não permite  que o cidadão veja como funciona – não se vê o dado sendo  processado. Sozinho, ele não vai conseguir controlar a utilização  desse dado, então, baseados em uma experiência estrangeira,  imaginamos que seja necessária a criação desse novo órgão  público que tenha meios de fazer essa fiscalização. 
  Como  funcionaria esse órgão?  
  A  ideia de como seria esse órgão não está diretamente colocada na  lei. Esse detalhamento ficou para um segundo momento. Como seriam os  integrantes, qual a natureza deles, tudo isso será desenvolvido. Mas  há muitas contribuições e sugestões feitas ao projeto no sentido  de que seja um órgão com participação multissetorial, que a  sociedade participe. Isso pode muito bem acontecer. Seria um modelo  que, no Brasil, já vem se consolidando para algumas coisas. Só que,  veja bem, se esse órgão tiver poder de polícia, de poder  fiscalizar, aplicar multas, essas funções vão ter que ser  exercidas por um órgão público no sentido estrito: não se pode  ter um órgão multissetorial multando alguém, isso é contra a  Constituição. Detalhes sobre isso serão definidos somente nos  próximos meses, certamente quando o anteprojeto sair do ministério,  após o final da consulta pública.  
  O  anteprojeto, de certa forma, supriria brechas deixadas pelo Marco  Civil em relação à proteção de dados dos usuários?  
  O  Marco Civil não é uma lei que pretendeu resolver todos os problemas  em relação à proteção de dados. Tem natureza regulatória da  internet no Brasil, mas não é de forma alguma ampla em relação à  proteção de dados. Por exemplo, ele nem define o que são dados  pessoais. Agora, entendo que é imprescindível que o Marco Civil  seja lido conjuntamente com uma nova lei de proteção de dados. No  artigo terceiro, ele diz que é um princípio do Marco Civil da  Internet do Brasil a proteção de dados pessoais na forma da lei. Já  há menção a uma lei de proteção de dados ou outras leis que  tratem do assunto.  
  A  aprovação de uma lei de proteção aos dados pessoais pode fazer  com que empresas de redes sociais tenham que modificar suas políticas  e licenças no país? 
  O  projeto tem vários pontos que podem interessar uma rede social, como  transparência, termos de uso de políticas de privacidade... Eu  diria que com as redes sociais isso é até mais visível, porque a  razão de ser delas é tratar de informação pessoal, como se o  capital da empresa fôssemos nós mesmos. As redes sociais têm que  ser tratadas com muita atenção e cuidado, mas há várias outras  frentes no mercado que são invisíveis, e que têm uma participação  tão grande ou até mais incisiva quanto, por exemplo, os chamados data  brokers.  Trata-se de empresas que servem para colher dados pessoais e  comercializá-los. Existem grandes empresas dessas que funcionam no  Brasil e no exterior, e a única função delas é gerar retorno  sobre as pessoas. Elas têm um tipo de atuação muito menos  transparente para o usuário do que uma rede social. Claro, não  estou aqui defendendo as redes sociais, mas alerto que o mercado é  muito mais denso e mais profundo do que essa ponta visível que é a  rede social. O grande desafio para a lei de proteção de dados é  que você tem que abarcar todas as possibilidades, desde o prontuário  do DataSus até uma rede social, uma empresa de data  broker e assim por diante. É um trabalho lento e difícil, porém deve  mudar essa cultura em todas as instâncias. Certamente as redes  sociais podem ser afetadas, mas elas existem em países com regras  muito mais estritas em relação à publicidade, então elas procuram  se adequar. 
  Pensando  um pouco na tão falada internet das coisas, ela vai ampliar a  utilização de dados pessoais de forma indiscriminada?  
  A  internet das coisas é basicamente uma internet de sensores. O que  interessa para os dados pessoais: cada vez mais dispositivos estão  sendo equipados com sensores; esses sensores vão se interligando, se  conectando e falando uns com os outros. E a internet das coisas  muitas vezes revela dados pessoais. Sempre se fala na geladeira, que  ela vai avisar que o leite acabou. Bom, isso não é somente uma  coisa que interessa entre a geladeira e o supermercado. Interessa  para saber se você está tomando leite. Se ela falar que a minha  cerveja acabou, esse dado pode interessar ao meu plano de saúde, por  algum motivo. Há ainda outra questão: quanto mais existirem  sensores por aí, por qualquer lugar que a gente vá, menos os dados  pessoais são fornecidos através de uma autorização minha, que eu  dou, mas são fornecidos pelo fato de eu estar vivo. Se eu entro num  prédio, minha imagem é captada; se eu faço uma determinada coisa,  um sensor registra o que eu estou fazendo, então a nossa vida vai  ser cada vez mais catalogada. Essa informação já está mudando um  pouquinho o escopo da lei de proteção de dados pessoais. Não se  pode confiar apenas na autorização para o fornecimento dos dados. 
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