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                             Um  só embrião, mas com o material genético de três pessoas. Parece  ficção científica, mas recentemente o Parlamento Britânico  aprovou um novo procedimento de fertilização in  vitro que utiliza o material genético de um homem e duas mulheres para  formar o embrião. O procedimento, que está sendo estudado e  discutido desde 2007, tem o objetivo de eliminar doenças genéticas.
 Mutações  em genes das mitocôndrias (organelas  presentes no interior das células animais, mais especificamente no  citoplasma)  causam doenças que afetam os sistemas nervoso e muscular da criança,  podendo levar ao desenvolvimento de cegueira, epilepsia, retardo  mental, fraqueza muscular e problemas cardíacos, entre outros.  Mulheres que têm essa mutação transmitem esses problemas a seus  filhos, pois as  mitocôndrias são recebidas exclusivamente da mãe – elas já  estavam no óvulo que gerou o bebê.  
O  que esse novo procedimento faz é um “transplante de mitocôndrias”,  ou seja, ele substitui as mitocôndrias mutantes por mitocôndrias  saudáveis de óvulos doados. Para isso, transplanta-se o núcleo do  óvulo da mãe para dentro do óvulo de uma doadora saudável,  contendo mitocôndrias normais. 
  
“Pensem  numa célula como um ovo: o núcleo é a gema e o citoplasma é a  clara. No núcleo ficam 99,998% dos nossos genes, que vêm metade do  pai (no espermatozoide) e metade da mãe (no óvulo). Já as  mitocôndrias ficam na clara, no citoplasma – e elas contêm os  outros 0,002% dos nossos genes. O funcionamento correto desses poucos  genes é fundamental para que nossas células produzam energia”,  explica a bióloga Lygia da Veiga Pereira Carramaschi, professora  titular no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do  Instituto de Biologia (IB) da USP.  
Esse  óvulo corrigido é fertilizado pelo espermatozoide do pai, e assim  dará origem a um bebê sem as mutações nas mitocôndrias.  Geneticamente, ele será 99,998% filho biológico de seus pais e  0,002% da mulher doadora de mitocôndrias. Segundo  os pesquisadores, o bebê desse óvulo teria os traços genéticos de  sua mãe biológica, mas levaria também o DNA mitocondrial da  doadora, ficando livre das doenças que poderiam ser herdadas da mãe.  “Daí  dizermos que essas crianças terão um pai e duas mães – e aqui,  muito cuidado: filho biológico,  porque do ponto de vista social, pai e mãe são os que criam a  criança”, enfatiza Carramaschi. 
Apesar  de poder evitar uma série de doenças genéticas, a técnica gerou  grandes discussões. “Apesar  de ser uma alteração mínima e por um motivo muito nobre, qual será  o limite? Além disso, do ponto de vista legal, deveremos modificar  as definições de “paternidade” e “maternidade” para que a  doadora de mitocôndrias não venha a ter direitos sobre a criança?  De qualquer modo, são questões que devem ser consideradas”,  alerta Carramaschi. 
 
  Após  a aprovação do procedimento pelo Parlamento Britânico, o diretor  da ONG Human  Genetics Alert,  David King, criticou o procedimento, comparando-o à criação de um  “Frankenstein”. “Assim como a criação do Frankenstein foi  produzida a partir da junção de partes de muitos corpos diferentes,  me parece agora que cientistas e seus assistentes bioéticos  ultrapassam o limite do grotesco, das normas da natureza e da cultura  humana”, avalia. 
Os  cientistas também questionam a segurança do procedimento em longo  prazo. A dúvida é se a técnica poderia ter alguma consequência na  saúde dessa criança quando ela se tornasse adulta, como maior  propensão ao desenvolvimento de câncer, por exemplo. No entanto, a  técnica  já foi utilizada por um curto período nos Estados Unidos, até ser  proibida pela Food  and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regula alimentos e procedimentos  de saúde). E algumas crianças foram geradas com esta técnica:  entre elas Alana Saarinen, nascida em 2000, que hoje é uma jovem  saudável. 
Espermatozoide  feminino, óvulo masculino 
Criar  um espermatozoide feminino parece ficção, mas a ciência vem  mostrando que é possível. Cientistas da Universidade de Newcastle,  no Reino Unido, afirmam ter criado espermatozoides a partir de  células-tronco da medula óssea feminina – abrindo caminho para o  fim da necessidade do pai na reprodução. 
A  pesquisa foi publicada primeiramente na revista científica Reproduction:  Gamete Biology,  em 2007, e ainda está em andamento. No estudo, os pesquisadores  extraíram as células-tronco da medula óssea e separaram uma  subpopulação especial de células. Elas  foram cultivadas em placas de vidro, recebendo substâncias que  favorecem a sua diferenciação. Os pesquisadores identificaram,  então, a presença de células-tronco espermatogônicas (fase  inicial do desenvolvimento dos espermatozoides).  
No  ano passado, os cientistas conseguiram transformar células-tronco da  medula óssea em espermatozoides imaturos. E o próximo passo seria  submeter os espermatozoides primitivos à meiose, um processo que  permitiria a maturação, tornando-os aptos para a fertilização. A  técnica já foi testada em  camundongos. 
A  princípio, não haveria barreiras para criar espermatozoides  femininos por meio desse procedimento. No entanto, a “mulher-pai”  só poderia ter filhas, já que não carrega o cromossomo Y. 
Em  entrevista à última edição da revista New  Scientist,  Karim Nayernia, um dos pesquisadores envolvidos no estudo, disse  estar esperando a permissão ética da universidade para dar  continuidade ao trabalho. “Em princípio, eu acredito que seja  cientificamente possível”, disse. 
Além  disso, uma pesquisa no Japão vem apontando para a possibilidade de  criar não apenas espermatozoides femininos, mas também óvulos  masculinos. A pesquisa, realizada na Universidade do Japão, foi  publicada na revista Science em 2012. A partir de camundongos  transgênicos (com genes de outra  espécie), os pesquisadores obtiveram células-tronco embrionárias e  pluripotentes induzidas (iPS, derivadas do organismo adulto). A  partir dessas células eles geraram células precursoras dos óvulos,  colocaram-nas junto a um agregado de células do ovário de roedores  e formaram uma espécie de ovário artificial. 
Esse  conjunto de células foi implantado em fêmeas de camundongos para  concluir o processo de maturação. Quando ficaram maduros, esses  óvulos foram extraídos e colocados em “mães de aluguel”,  submetidas à inseminação artificial. Após a junção com  espermatozoides, os óvulos deram origem a filhotes saudáveis. 
Em  tese, pela regressão a um estágio tão primordial de  desenvolvimento, seria possível manipular as células para dar  origem a espermatozoides. E, indo mais além, seria possível criar  espermatozoides a partir de células femininas ou óvulo a partir de  células masculinas Ou seja: casais do mesmo sexo poderiam ter um  filho biológico, carregando 50% dos genes de cada genitor. 
Clones 
Se  por um lado a ciência pode fertilizar um embrião com o material  genético de três pessoas, ou gerar espermatozoides  femininos e óvulos masculinos, por  outro também pode utilizar apenas o material genético de uma única  mulher. Esse é o caso da clonagem – procedimento que, no caso de  humanos, é proibido. 
Para  que ocorra a clonagem humana reprodutiva é necessário uma célula  somática, que pode ser extraída do tecido de qualquer criança ou  adulto. O núcleo dessa célula é retirado e inserido em um óvulo,  depois implantado em um útero (uma barriga de aluguel). “No caso  da clonagem humana prescindiríamos da figura masculina, pois seriam  necessários óvulos, células da pessoa a ser clonada e útero”,  aponta Carramaschi. 
A  clonagem é vista como uma possibilidade para casais inférteis,  porém, um documento assinado em 2003 pelas academias de ciências de  63 países, incluindo o Brasil, proíbe a clonagem humana  reprodutiva. E, de acordo com o documento, o procedimento é ainda  muito arriscado, abrindo diversas discussões sobre a ética do  processo.  
Em  2002, a diretora da empresa Clonaid, a química francesa Brigitte Boisselier,  anunciou que havia nascido o primeiro bebê humano clonado. Segundo  ela, os pais da criança contrataram a empresa pois o pai era  infértil, e o bebê foi gerado com células da pele da mãe. Porém,  após intervenção judicial, os envolvidos saíram de cena e nunca  foram feitos testes que atestassem a veracidade desse fato, nem a  apresentação do próprio bebê. 
Por  enquanto, a clonagem reprodutiva é considerada ineficiente. De  acordo com os testes feitos em animais, a maioria dos clones morre  logo no início da gestação e os outros têm defeitos ou  anormalidades. Sem contar as barreiras éticas para levar adiante as  pesquisas. 
Sociedade 
Essa  mudança do papel do pai – ou mesmo sua supressão –  proporcionada pela ciência ainda está longe de acontecer. E ainda  que as barreiras sejam ultrapassadas pela ciência, as questões  éticas se manteriam. A maior parte da sociedade vê com receio a  manipulação genética em embriões humanos. De acordo com a  Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da  Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a  Cultura (Unesco), assinada no anos 1990, todas as pesquisas na área  devem levar em conta suas implicações éticas e sociais. 
 “Imagino  que, mais do que a ciência, a sociedade já vem modificando a  definição do que é ser pai. Quem é o pai biológico? Fácil, o  dono do espermatozoide que deu origem à criança. Mas quem é o pai  social? Esse é quem cuida”, afirma Carramaschi. 
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