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                             O termo “probabilidade geométrica” se refere à área da matemática que
 estuda problemas que, ao mesmo tempo, envolvem o conceito de 
probabilidade e situações de caráter geométrico. Neste artigo, vamos 
mostrar a evolução dessa área da matemática desde sua fundação no século
 XVIII, as dificuldades que se apresentaram ao seu desenvolvimento, a 
crise gerada pelo aparecimento do Paradoxo de Bertrand, e como o rigor 
da matemática foi incorporado ao corpo da teoria levando à criação de um
 conjunto de resultados e teoremas extremamente elegantes e ricos em 
aplicações.  
 Origens 
 É consenso entre os estudiosos da Teoria de Probabilidade Geométrica 
que o seu texto fundador é o “Ensaio de aritmética moral”, de 
Georges-Louis Leclerc, conhecido como Conde de Buffon, de 1777.  
 Buffon foi um grande iluminista francês do século XVIII, muito reconhecido como naturalista e autor da monumental obra História natural,
 da qual o “Ensaio” é um apêndice. Buffon foi admitido na Academia de 
Ciências de Paris com um trabalho sobre probabilidade e geometria, do 
qual não sobreviveram cópias. Aparentemente, o “Ensaio sobre aritmética 
moral” recupera partes daquele trabalho anterior.  
 O título do ensaio merece um comentário: por que chamá-lo de 
“aritmética moral”? Na verdade, o texto dedica-se a analisar situações 
“reais” em que uma pessoa possa se valer de conhecimentos matemáticos 
para tomar decisões “acertadas”. Buffon se preocupa em analisar certas 
situações com caráter de jogo entre duas ou mais pessoas e verifica em 
que condições as chances de vitória dos participantes são idênticas. 
Nessas condições, o jogo é “moral” (ou honesto).  
 O conteúdo do “Ensaio de aritmética moral”  
 Nesse trabalho seminal, Buffon começa com considerações sobre uso de 
matemática elementar em situações do cotidiano. São análises simples e 
pouco profundas. O primeiro tema profundo tratado no texto é o chamado 
Paradoxo de São Petersburgo.  
 Imaginemos um jogo entre duas pessoas com as seguintes regras:  
 •  O jogador “A” paga uma taxa para entrar no jogo. Em seguida, joga 
uma moeda e se sair cara na primeira tentativa ele ganha do jogador “B” o
 equivalente a um real.  
 •  Se na primeira tentativa não sair cara, o jogador “A” joga a moeda
 novamente e se obtiver cara no segundo lançamento ganha de “B” o 
equivalente a 2 reais.  
 •  Se nas duas primeiras não saiu cara, o jogador “A” joga novamente e se obtiver cara na terceira tentativa ganha 4 reais.  
 •  O jogo segue dessa maneira: “A” vai jogar a moeda até obter cara. 
Quanto mais lançamentos ele tiver que fazer, maior será seu prêmio: 1, 
2, 4, 8, 16 reais e assim por diante. “A” ganhará sempre.  
 A pergunta é: quanto vale a pena o jogador apostar para entrar no 
jogo? A resposta clássica é obtida calculando-se o valor esperado de 
ganho do jogador “A”. (Isso é definido como a soma das probabilidades de
 ganho em cada etapa multiplicada pelo valor ganho naquela etapa: E= 
1/2x1 + 1/4x2 +1/8x4 +1/16x8 +...) Ocorre que o valor esperado é 
infinito!  
 Ora, algo está errado aqui. Ninguém apostaria uma enorme fortuna para
 jogar esse jogo. Buffon trata o problema nos mesmos termos que os 
matemáticos contemporâneos. Não há solução lógica ao paradoxo. A melhor 
análise, em minha opinião, é considerar que modelos matemáticos têm 
aplicação limitada. O conceito de valor esperado não é adequado para 
situações em que os valores considerados são infinitos.  
 O teorema pelo qual o “Ensaio” é sempre lembrado é o problema das 
agulhas, inspirado em jogos de salão comumente praticados pela nobreza 
francesa da época. Considera-se um tipo de piso, que pode ser de tábuas 
paralelas, lajotas quadradas ou com outro formato e, nesse piso, jogamos
 uma agulha (dessas de tricô, crochê ou de cabelo) e perguntamos qual é a
 chance dela parar exatamente dentro de uma tábua ou lajota sem cruzar 
uma linha divisória.  
 Após resolver (ele só apresenta os resultados, sem as contas) os 
casos de lajotas quadradas, triangulares, hexagonais e outras, que, na 
verdade são de solução direta, Buffon aborda o caso das tábuas paralelas
 de largura “ d ”, onde se joga uma agulha de comprimento “ l ”. A probabilidade de que a agulha jogada aleatoriamente não cruze uma linha divisória é, surpreendentemente, dada por: p= 2 l/ p d.  
 Também aqui Buffon não finaliza as contas, deixando-as indicadas. A 
ênfase dada por Buffon nesse trecho, como no resto do livro, estava na 
equidade do jogo. Assim, ele recomenda aos jogadores que observem os 
tamanhos relativos da agulha e da largura das tábuas: os jogadores terão
 chances iguais de ganhar se a relação entre o comprimento da agulha “ l ” e a largura das tábuas, “ d ”, for aproximadamente igual a ¾.  
 Vinte e cinco anos após a publicação desse trabalho, Laplace retomou 
essa fórmula e fez a seguinte abordagem: podemos obter “p” de maneira 
experimental jogando uma agulha muitas vezes e anotando o número de 
sucessos e fracassos. O valor de “p” será o quociente entre o número de 
sucessos (não cruzar as divisórias) e o número total de lançamentos. 
Conhecendo-se “p”, o valor de p pode ser obtido como sendo 2 l/ p d.  Este se revelou um método muito acurado para calcular valores aproximados de p.  
 O Paradoxo de Bertrand  
 No final do século XIX, a Teoria das Probabilidades havia percorrido 
um longo caminho e já haviam sido publicados vários livros fundamentais 
sobre o assunto. Em 1989, Joseph Bertrand, um matemático francês, 
publicou o livro Calcul dês probabilités, obra de referência para o desenvolvimento do tema.  
 Nesse livro, Bertrand analisa situações em que o espaço amostral de 
um determinado experimento é constituído por infinitos elementos e obtém
 alguns paradoxos muito interessantes. Vamos nos fixar sobre um deles, 
conhecido como o Paradoxo de Bertrand.  
 Considere uma circunferência de raio fixado e sobre ela escolha 
aleatoriamente uma corda (segmento que liga dois pontos quaisquer da 
circunferência). Determine a probabilidade que o comprimento dessa corda
 seja maior do que o lado do triângulo equilátero inscrito nessa 
circunferência.  
 Bertrand apresenta três diferentes soluções desse problema, as três 
claras e “corretas”, levando a três respostas diferentes! Qual resposta 
está certa?  
 Vamos mostrar as três soluções.  
 •  Na primeira solução, escolhemos um ponto ao acaso sobre a 
circunferência e em seguida escolhemos um segundo ponto. Como é fácil 
ver na figura 1 abaixo, existem três arcos de igual tamanho sobre a 
circunferência e, se o segundo ponto estiver sobre um deles, o 
comprimento da corda será maior do que o do triângulo; se estiver sobre 
os outros dois, será menor. Logo, a probabilidade pedida é igual a 1/3.  
 •  Na segunda solução, escolhemos um ponto e em seguida observamos o 
raio por ele determinado. Consideremos as cordas perpendiculares a esse 
raio. Existem duas regiões nesse raio, uma central, de comprimento 
metade do raio, tal que, se a corda cortar o raio nessa região, seu 
comprimento será maior do que o lado do triângulo equilátero inscrito; e
 se a corda cortar na outra região de igual tamanho, seu comprimento 
será menor. Concluímos que a probabilidade procurada é ½. Veja figura 2.
  
 •  A terceira solução leva em conta uma ideia sutil: toda corda pode 
ser parametrizada pelo seu ponto médio, isto é, existe uma 
correspondência um a um entre cordas e pontos médios. Veja figura 3. A 
região central formada pelo interior de uma circunferência de raio com 
metade do tamanho do raio original tem a propriedade de que, se o ponto 
médio da corda estiver nela, o comprimento será maior do que o lado do 
triângulo. Como seu raio é metade do raio original, sua área é um ¼ da 
área da circunferência original. Assim, a probabilidade pedida é ¼.  
   Figura 1                                               Figura 2                                             Figura 3Bertrand, diante desse paradoxo, postulou que, das soluções acima, 
nenhuma estava correta e nenhuma estava errada. O problema é que não 
estava bem posto. Situações em que o espaço amostral possui infinitos 
elementos não poderiam ser consideradas na Teoria de Probabilidades.  
 Na virada do século XIX para o XX, o conceito de medida foi 
introduzido para trazer o rigor da matemática para o estudo de 
probabilidades. Os probabilistas contemporâneos diriam que as três 
soluções estão corretas, cada uma correspondendo à escolha de uma medida
 diferente no espaço de probabilidades. Já a geometria do século XX 
acrescenta um ingrediente a mais: das três medidas acima, apenas a 
segunda possui uma propriedade geométrica específica, a de ser 
invariante pela ação do grupo de isometrias do plano.  
 Essa medida se revela mais rica em aplicações geométricas e possui 
consequências em outras áreas da ciência. Uma aplicação notável, devida a
 Crofton, é que a medida do conjunto de retas que intercepta uma curva 
fechada convexa é igual ao comprimento da curva. Assim, podemos concluir
 que dadas duas curvas fechadas convexas a e ?, com a contida em ?, 
então a probabilidade que uma reta aleatória (segundo esta medida!) do 
plano que encontra ?, também encontre a ?, é dada pelo quociente de seus
 perímetros: L( a )/ L( ? ).  
 Claudio Possani (cpossani@ime.usp.br) é professor do Departamento de Matemática, no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP).  
 Referências bibliográficas 
 Bertrand, J.. Calcul de Probabilités. Gauthier-Villars et Fils, 1889 
Buffon. Essai d'Arithmetique morale. 1777 
Crofton, M. “On the theory of local probability, applied to straight 
lines drawn at random in a plane, the methods used being also extended 
to the proof of certain new theorems in the integral calculus”. Philosofical Transactions of the Royal Society of London, n. 158, 1868. 
Roger, J. Buffon. Cornel University Press, 1989. 
Seneta, E; Parshall, K. H; Jongmans, F. “ Nineteenth -century 
developments in geometric probability: J.J.Silvester, M. W. Crofton, 
J.-É. Barbier, and J. Bertrand”. Archives for the history of exact sciences, n. 55, 2001. 
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