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                            10/11/2014
                             A dor da perda, a confusão de pensamentos.  Uma mistura de desejos não realizados e a projeção de situações que poderiam  ter acontecido. A narrativa combina com o turbilhão mental pelo qual o autor  passa após a morte da mãe e, na segunda parte, pela morte do filho. Ou seria a  visão da própria mãe diante da morte do filho? Em Os verbos auxiliares do  coração o escritor Péter Esterházy, expoente da literatura húngara, não tem  preocupação com linearidade de histórias. 
 Cada página – nenhuma delas numerada – está  diagramada em formato de lápide e pode ser lida quase como um fragmento  independente. Na parte inferior, uma reflexão, muitas vezes de relação  enigmática com o que foi dito acima. Para explicar sua proposta, Esterházy opta  por um prefácio, que reconhece não ser muito utilizado em literatura. Fazia  duas semanas que sua mãe havia morrido, o ano era 1980. “Tenho de me entregar  ao trabalho antes que a necessidade demasiado ardente de escrever sobre ela  recue para o mutismo covarde com que reagi à notícia da morte”. Mais adiante  comenta: “Eu me horrorizo, e assim me sinto bem de novo: o tempo que passa não  dói”. 
Não há pudores na escrita de Esterházi. Sua  linguagem é coloquial e direta. Utiliza as gírias do momento e inventa  palavras. Por um instante isso trouxe maior dificuldade para o tradutor para o  português, Paulo Schiller, mas que contou com total apoio do autor, que reúne  as principais dúvidas de seus tradutores e está sempre em contato com eles.  
Logo nas primeiras páginas há o reencontro  com os familiares e amigos. Os últimos e dolorosos dias no hospital. O velório.  Ali o espaço é para o humor ácido da descrição dos presentes, os conflitos com  o pai, o irmão e a irmã. As fofocas familiares, o incômodo em ter que fazer  sala para tantos convidados quando só se quer estar só. Delírios e sonhos sobre  sexo e desejo também estão muito presente nessas páginas. Algo inevitável para  um autor que trabalha muito a pornografia em seus textos. Paulo Schiller diz que esse o humor  sarcástico de Esterházy e os traços sexuais nas situações mais trágicas são traços  de escritores da Europa central, como Kafka. 
A liberdade com que escreve parece contrastar  com sua formação, que pode remeter à outra imagem. Péter Esterházi é  matemático. A ideia de colocar sonhos no papel tem inspiração na sua mãe, que  parece ser a narradora da segunda parte do livro. Em uma das reflexões do pé da  página está escrito: “Chega de perder tempo na vida. Todos os dias, de manhã,  anote seu sonho. Sem acrescentar nem suprimir nada. O que você acha? A partir  disso vamos escrever um livro, eu darei a ele uma forma artística, e vamos  encher o bolso de dinheiro!”. Essa foi uma proposta real à sua mãe, como o  autor comenta em entrevista ao editor da Cosac  Naify, Emilio Fraia. Não houve tempo, ela morreu pouco tempo depois. 
A presença da autobiografia é constante em  suas obras. Parte de uma tradicional família da aristocracia húngara, Esterházi  escreveu um livro sobre sua linhagem familiar, Harmonia Caelestis, considerado  a grande obra-prima do autor, dentre 30 livros publicados. Em todos os  casos, os nomes são preservados. A mãe, nesta obra, tem o nome de Beatriz  Viterbo, personagem de Jorge Luis Borges em O  Aleph. Sobre a questão, ele faz um alerta novamente no prefácio: “Não uso a  língua, não quero descobrir a verdade, e menos ainda expô-la diante dos  senhores. Também não me ocorre nomear o mundo, e, consequentemente, não nomeio  coisa alguma, pois nomear é o mesmo que sacrificar para sempre o nome à coisa  nomeada...”. 
Seu estilo é descrito na edição brasileira de Uma mulher peloescritor alemão Ingo Schulze. “Os livros dele  representam o conjunto das condições para uma experiência. Ele não é um avô  contador de histórias, não quer ninar ninguém com suas fábulas. Ele sempre  interrompe para gritar: corta! E então você lê mais três páginas e pensa:  “Cara! Quantas coisas esse homem viveu!”. 
A edição brasileira foi lançada em 2011 pela  Cosac Naify, mais de 15 anos após sua publicação original e um ano depois de  publicar Uma mulher, obra que o tornou um dos destaques da Feira  Internacional de Paraty e onde foi lançado Verbos auxiliares do coração.  A escolha pelo título não é um acaso: não existem verbos auxiliares em húngaro.  Como promessa, ele diz “Um dia vou escrever tudo isso com mais precisão”. 
Os  verbos auxiliares do coração  
  Péter Esterházy, 1985 
  Tradução Paulo Schiller 
  Cosac Naify, 2011 
  72 páginas 
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