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 Marie  Curie nasceu Marya Sklodowska na Polônia, filha de professores.  Graduou-se como primeira da classe no colégio e não pôde  frequentar a universidade em seu país, pois o governo proibia o  acesso às mulheres. Mudou-se para a França, onde estudou matemática  e física e tornou-se a primeira professora universitária daquele  país. Casou-se e teve duas filhas. Trabalhou em laboratórios  improvisados pesquisando a radioatividade dos materiais, o que lhe  provocou leucemia e a levou à morte. Curie é uma das poucas  mulheres ganhadoras do Prêmio Nobel e a única a recebê-lo duas  vezes: o de Física em 1903 (que dividiu com o marido, Pierre Curie)  por suas pesquisas sobre os fenômenos da radiação, e o de Química,  em 1911, pela descoberta dos elementos rádio e polônio.
 Os  números do site oficial do Nobel apontam que, desde 1901, quando foi  criado o prêmio, até 2014, o número total de laureados foi de 889  – somadas pessoas e organizações. Apenas 46 mulheres receberam o  prêmio. O Nobel da Paz é a categoria que mais premiou mulheres até  hoje: foram 16 ganhadoras. Muitas delas se destacaram por lutarem  pelos direitos das mulheres, como as vencedoras do prêmio em 2011: a  presidente da Libéria Ellen Johnson Sirleaf, a militante liberiana  Leymah Gbowee e a ativista e jornalista iemenita Tawakkol Karman. A  paquistanesa de 17 anos Malala Yousafzai, ganhadora do Nobel da Paz  em 2014 e a mais jovem até hoje a ser premiada, tinha sido baleada  em outubro de 2012 pelos talibãs após escrever em um blog e  defender publicamente o direito das meninas e adolescentes de seu  país de frequentarem a escola.
 As  categorias em que elas menos aparecem como ganhadoras são Física e  Química. Apenas cinco mulheres foram laureadas com o prêmio se  somadas ambas: Marie Curie e Maria Goeppert Mayer, em Física, e  Curie, Irène Joliot-Curie (filha de Curie), Dorothy Crowfoot Hodgkin  e Ada Yonath, em Química. Outras 11 ganharam o prêmio em Fisiologia  ou Medicina, somando 16 o total de mulheres nas categorias  relacionadas à ciência no Nobel (Veja a lista completa das 46  ganhadoras aqui: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/lists/women.html).
 Por  que tão poucas?
 No  livro Mulheres  que ganharam o Prêmio Nobel em ciências – suas  vidas, lutas e notáveis descobertas,  escrito na década de 1990, a jornalista e escritora Sharon Bertsch  MacGrayne aponta que a explicação para o pequeno número de  mulheres laureadas está na biografia das cientistas. O resgate da  história de 14 delas – das quais apenas 9 receberam o Nobel (as  demais chegaram “bem perto” de receber o prêmio, segundo a  autora) – mostram dificuldades no acesso a universidades,  laboratórios e postos de trabalho, que lhes eram vetados por serem  mulheres, além da rotina de pesquisa somada aos cuidados do lar,  marido e filhos, entre outros obstáculos.
 “Utilizando-se  de uma entrada particular, Lise Meitner entrou em seu laboratório no  porão – e lá ficou. A antiga carpintaria reformada era a única  sala do Instituto de Química de Berlim em que podia entrar. Nenhuma  mulher – com exceção, claro, das faxineiras – poderia ir ao  andar de cima com os homens. Proibida até mesmo de utilizar o  toalete do edifício de Química, era obrigada a servir-se das  instalações de um hotel na mesma rua”, diz a autora no trecho que  inicia a biografia da física nuclear e mostra uma forma, entre  muitas, das encontradas pelas cientistas para driblar os empecilhos e  continuar fazendo ciência.
 “Eu  acho que a minha conclusão inicial estava correta”, diz MacGrayne  a respeito das biografias como forma de entender os números do  Nobel. “Dados os problemas ridículos que elas enfrentaram, é  notável que tenham seguido em frente. No entanto, agora, é óbvio  que o problema é mais complexo do que eu pensava na época. Mulheres  cientistas sabem como coletar e analisar dados concretos e elas o  fizeram para revelar ambos os padrões, conscientes e inconscientes, de  discriminação contra as mulheres na ciência e outras arenas  profissionais”, analisa.
 A  socióloga Maria Teresa Citeli, da Universidade Estadual de Campinas  (Unicamp), enumera alguns fatores que ajudam a pensar a ausência das  mulheres na ciência e como ganhadoras das premiações. Citeli  lembra que as dificuldades que as mulheres encontram como  pesquisadoras não são diferentes das presentes em outras áreas:  elas são minoria também na política, nos altos cargos das  empresas, ganham menos que seus colegas homens, entre outros  aspectos. “A escassez das mulheres na ciência não pode ser  atribuída a aspectos biológicos, é uma construção cultural”,  afirma.
 A  visão da ciência como campo da racionalidade e da objetividade  passou a ser questionada nos últimos 30 anos, segundo a  pesquisadora. “Os novos estudos sobre a ciência começaram a olhar  para a prática científica vendo o que os cientistas fazem no  cotidiano e percebendo que a produção da ciência depende muito  mais da relação que os cientistas estabelecem com o mundo do que  daquela capacidade de pensamento criativo”, aponta. Fatores,  portanto, como a maior disponibilidade de tempo dos homens para a  carreira e o lazer – por não estarem submetidos a múltiplas  jornadas (cuidar dos filhos, da casa e da família, além do trabalho  remunerado), as quais são socialmente atribuídas às mulheres –  têm impacto muito grande na presença e no sucesso das mulheres na  ciência, segundo Citeli. “Outro obstáculo muito sério é a  representação que as ciências, principalmente as biológicas,  criam sobre as incapacidades femininas para o mundo da ciência”,  destaca a pesquisadora. O que parecia ser um obstáculo do passado  ainda influencia o ingresso e o desempenho das mulheres em muitas  áreas das ciências.
 Apesar  de as mulheres serem 54,7% dos ingressantes nas universidades  brasileiras, de acordo com o Censo da Educação Superior 2013, e  59,2% dos concluintes, e de haver conquistas de direitos como a  garantia da licença-maternidade para as pesquisadoras que dependem  de bolsas de pesquisa, ainda há muito a ser feito para alcançar a  igualdade. A participação das mulheres ainda é menor quando se  comparam as ciências exatas às humanas e diminui quanto mais se  sobe na escala de postos nas universidades e de programas de  financiamento. O Censo da Educação Superior 2013 também mostra que  os cursos nos quais há a maior quantidade de matrículas masculinas  são as engenharias e ciência da computação; as mulheres são  maioria em cursos como pedagogia, enfermagem e serviço social.  Números do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e  Tecnológico (CNPq) apontam que o percentual de bolsas concedidas  para as mulheres pela instituição, no Brasil e no exterior, em 2013,  foi maior em áreas como as ciências humanas (61%) e linguística,  letras e artes (67%), enquanto que nas ciências exatas e da terra e  nas engenharias e computação elas são apenas 36% das bolsistas.
 “A  luta pela igualdade entre homens e mulheres não terminou, e as  mulheres de todo o mundo devem continuar a lutar pelos seus direitos  e pelos direitos das mulheres jovens em todos os lugares. Até agora,  em termos gerais, o mundo tem contado com o talento de apenas cerca  de metade da população, a metade masculina. Imagine o que  poderíamos fazer se pudéssemos desenvolver os talentos de todos no  mundo”, defende MacGrayne.
 À  altura das autoras?
 Depois  do Nobel da Paz, a categoria que mais premiou mulheres até hoje foi  Literatura. Desde 1901, dos 111 escritores laureados em 107 edições,  apenas 13 são mulheres, ou 12% do total. Questionado se a Academia  Sueca – encarregada da premiação – tem olhado para essa  questão, o secretário permanente e porta-voz da entidade, Peter  Englund, limitou-se a responder que, por um longo período, a  academia foi constituída apenas por homens.
 De  fato, o próprio site da instituição registra a disparidade de gênero em sua composição:  “O sexo feminino tem sido limitado: até agora, sete mulheres foram  admitidas na Academia”. Hoje, cinco delas ocupam as cadeiras  vitalícias e, ao lado dos outros 13 membros (são, no total, 18),  ajudam a eleger um comitê responsável por organizar a premiação a  partir da indicação anual de candidatos feita tanto pela academia  quanto por entidades literárias autorizadas no mundo todo, além de  escritores premiados em edições anteriores, literatos e acadêmicos  da área.
 A  escolha de nomes nessa categoria não está isenta de protestos, que  já atingiram, inclusive, as poucas escritoras laureadas. Em 2005,  por exemplo, um membro da Academia Sueca renunciou à sua cadeira um  ano depois da premiação da austríaca Elfriede Jelinek, por  considerar a obra da escritora uma “massa de texto removível, sem  estrutura artística”, além de “choramingas e dispensável  pornografia pública”, conforme transcreveu o jornalista brasileiro  Ludenbergue Góes no livro Todos  os ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura (1901-2010). A  força ficcional de Jelinek está, sobretudo, em abordar a face  sombria da violência contra a mulher na sociedade.
 Preconceito  e falta de reconhecimento com relação à qualidade da literatura de  autoria feminina são também proferidos fora dos portões da  academia. Em maio de 2011, o jornal britânico The  Guardian publicou artigo a respeito das críticas que o escritor premiado com o Nobel de  Literatura de 2001, V.S. Naipaul, fez às autoras em geral. Para ele,  “não há mulher escritora a quem considere sua igual”. Naipaul  desprezou, especialmente, a inglesa Jane Austen, a quem acusou de ter  uma “visão estreita e sentimentalista do mundo”.
 Essa  concepção agride a produção literária feminina desde a entrada  de mulheres no mercado literário por volta do século XIX, como  ressalta Rita Schmidt, professora do Instituto de Letras da  Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A publicação  de obras de autoria de mulheres não significou, necessariamente, o  reconhecimento de parte de letrados e críticos da época – um  grupo masculino que não via com bons olhos a entrada de mulheres na  esfera da literatura”, avalia.
 Para  Schmidt, trata-se de menosprezar a produção das escritoras em nome  de um valor definido como estético, que, segundo ela, remonta à  filosofia kantiana. “Muito se tem falado sobre o enfraquecimento do  estético no contexto do resgate de obras de autoria de mulheres.  Cabe lembrar que foi o estudo da autoria de mulheres e a visibilidade  de produções ignoradas pelo establishment crítico  que colocou em pauta a questão da institucionalização do literário  e da sua avaliação, escancarando a inseparabilidade do estético e  do político em discursos responsáveis por quadros de referências  para ler, explicar, legitimar ou desautorizar textos e leitores”,  explica. Como o valor estético se comporta como parâmetro de boa ou  alta literatura, os textos de autoria feminina são vistos como  deficitários, já que não pertencem ao padrão homogêneo de uma  composição social determinada.
 O  longo período de predomínio social masculino é apontado por Luísa  Cristina dos Santos Fontes, vice-coordenadora do grupo de trabalho  (GT) “A Mulher na Literatura”, da Associação Nacional de  Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll), como  um dos fatores que contribuíram para a manutenção do menosprezo à  literatura de autoria feminina. “Estamos vivenciando a repercussão  do acesso tardio das mulheres à leitura e à escrita, como destaca  Simone de Beauvoir. Nossa trajetória não foi lenta somente em  decorrência da ditadura masculina, mas da constatação de que a  mulher é escrava de sua própria situação, não tem passado, não  tem história, não tem religião própria e não produziu como  protagonista nenhuma civilização”, critica.
 A  escritora Lélia Almeida, vencedora do Prêmio Açorianos de  Literatura em 2013 e defensora ativa da literatura de autoria  feminina, concorda: “Em todos os âmbitos da sociedade e da cultura  patriarcal, as mulheres continuam sendo coadjuvantes, subalternas e  cidadãs de segunda categoria. Como há homens que não leem mulheres  e não sabem o que elas querem e o que têm para dizer, permanecem  privilegiados e valorizados”.
 Com  o objetivo de estabelecer novos posicionamentos em relação aos  estereótipos presentes em temas e gêneros literários nesse  contexto de desigualdade simbólica, social e política, o grupo de  trabalho da Anpoll vem, há trinta anos, congregando pesquisas que  buscam reavaliar as convenções da escrita produzida por mulheres.  “Ainda hoje se percebe uma participação desproporcional de  escritores e escritoras que contribuem para escrever a história  literária contemporânea”, analisa Rosana Cássia Kamita,  professora da pós-graduação em literatura da Universidade Federal  de Santa Catarina (UFSC) e coordenadora do GT da Anpoll.
 Respaldando-se  em dados apresentados por Regina Dalcastagné, que pesquisa as  desigualdades sociais na literatura brasileira, Kamita reforça a  ausência de participação equânime e plural no fazer literário,  já que, de 1990 a 2004, 72,7% dos romances publicados no Brasil  foram escritos por homens. “Os mesmos setores canonicamente  dominantes que argumentam sobre a neutralidade do fazer literário  são aqueles que tratam a literatura de autoria feminina em forma de  notas e rodapés nos livros de historiografia literária, celebrando  constantemente nomes das mesmas (poucas) escritoras, como uma espécie  de garantia de que as escritoras estão sendo consideradas, porém  restringindo essa participação até hoje”, revela.
 Quebrando  tabus
  O  intervalo entre a premiação literária de uma mulher e outra vem  diminuindo nos últimos anos (2004-2007-2009-2013),  sobretudo se for considerado que, de 1945 a 1991, apenas três  mulheres receberam o prêmio. A última a ser laureada no Nobel de  Literatura foi a canadense Alice Munro, que se sobressaiu não por  escrever romances, mas contos. “O pequeno gênero agigantou-se”,  qualifica Ana Julia Poletto, que estuda a obra da escritora em sua  pesquisa de doutorado na Universidade de Caxias do Sul (UCS). “A  intensidade e a tensão que Alice Munro é capaz de colocar em suas  páginas arrasta os leitores para o suprassumo da palavra: conto e  mulher habitam um espaço fulgurante, como ‘um tremor de água  dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência’”, compara  a pesquisadora citando as considerações sobre o gênero conto  escritas pelo escritor argentino Julio Cortázar. 
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