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                             Seria  a liberdade uma condição intrinsecamente humana à qual estamos eternamente  condenados, como preconizava Sartre, ou uma aspiração humanamente inalcançável  como condição individual, conforme postulou Spinoza? Historicamente moldada, a  concepção de liberdade foi ganhando diferentes contornos no decorrer do tempo.  Objeto de muitas teorizações filosóficas, o termo, em sua origem grega – eleutheria –, nos remete à liberdade de movimento do corpo pela ausência de restrições e  limitações externas. Partindo de uma condição física decorrente da ausência de  debilidade do corpo, na antiguidade clássica, a liberdade designava também uma  qualidade política, uma vez que se considerava livre aquele que não possuía  impedimentos em virtude de seu status como cidadão da polis. 
Como  explica a filósofa Marilena Chaui no livro Convite  à filosofia, existem três grandes concepções filosóficas acerca da  liberdade. A primeira grande teoria filosófica teria sido concebida por  Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco, na qual a liberdade é  apresentada como sinônimo de autodeterminação, podendo, assim, ser entendida  como aausência de constrangimentos externos. De acordo com essa concepção, o  agente é a causa de seus atos, sendo ele livre para escolher entre as  alternativas possíveis de acordo com a sua própria vontade, não estando, de  forma alguma, coagido pela necessidade. Já para o estoicismo, uma escola  filosófica helenística fundada em Atenas no início do século III a.C., a  liberdade não é concebida como uma característica individual, mas sim a  consequência de uma atividade do todo, ou seja, da Natureza. Na concepção  estoicista, embora a liberdade também preserve as características de  autodeterminação e ausência de coação, a mesma difere da concepção aristotélica  por não ser afirmada através do ato de escolha como resultado da vontade do  indivíduo. O pensamento dessa escola teve seu ressurgimento a partir do século  XVII com o filósofo Benedictus de Spinoza, para o qual o todo era tido como a  Cultura e, posteriormente, no século XIX com Hegel e Marx, que tratavam o todo  como a formação histórico-social. 
O  filósofo Emanuel da Rocha Fragoso, da Universidade Estadual do Ceará (Uece),  explica que, na concepção de Spinoza, a liberdade ocorre em função da  necessidade e não da vontade, de forma que, para ele, tanto a vontade quanto o  entendimento são modos do pensamento e, por isso, não podem ser  autodeterminados. “Por consequência, a vontade, como um modo, seja finito ou  infinito, é sempre determinada por uma outra causa”, diz Fragoso no artigo “O conceito de liberdade na ética de  Benedictus de Spinoza”. Dessa maneira, a liberdade constituiria um atributo do  todo dentro do qual o indivíduo não teria o poder de se autodeterminar, podendo  ser descrita como um poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo,  sendo necessariamente o que é, fazendo necessariamente o que faz, pois nas  palavras de Chaui, “a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação  social não escolhe”. 
A  partir dessa concepção podemos ainda indagar: se a liberdade é um atributo do  todo, onde estaria o livre-arbítrio? Fragoso afirma que a negação da vontade do  indivíduo como algo absoluto, feita por Spinoza, não implica necessariamente na  negação do ato de escolha; ele simplesmente o aponta como ilusório. Pelo fato  de que no momento em que escolhemos uma coisa e não outra, não pensamos  necessariamente no que levou a essa escolha precisa, temos a tendência a  acreditar que essa decisão veio de uma vontade que pode produzir uma infinidade  de escolhas a partir do nada. “O livre-arbítrio não é mais do que a ilusão de  escolha, ignorando as causas que determinam a minha escolha”, conclui o  filósofo da Uece acerca do pensamento de Spinoza. 
Partindo  da ideia de que nossas escolhas são sempre condicionadas pelas condições  naturais, culturais e históricas nas quais estamos imersos, uma terceira  concepção de liberdade introduz uma noção de possibilidade objetiva. “O  possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós,  mas é também, e sobretudo, alguma coisa inscrita no coração da necessidade,  indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas  direções e sob certas condições”, explica Chaui. Trata-se da liberdade de fazer  e não de querer, uma vez que “o homem não dispõe de tudo que quer, quando quer  e onde quer”, não podendo se considerar independente de toda a realidade  externa a si, observa o filósofo Paulo César Nodari, da Universidade de Caxias  do Sul (UCS), do Rio Grande do Sul. 
Modernidade  e racionalidade 
Embora  as concepções filosóficas de liberdade apresentadas acima tenham suas raízes na  Antiguidade, é na era moderna que a noção passa a se alicerçar sobre os pilares  da racionalidade. Como argumenta Nodari no artigo intitulado “O conceito de  liberdade na antropologia filosófica de Lima Vaz”, é a partir do século XVIII,  considerado o Século das Luzes, que a razão assume tarefa primordial na  construção da vida humana, libertando o homem dos jugos da autoridade e do  poder da tradição. Desse momento em diante, uma nova concepção de ser humano  desponta, bem como uma nova compreensão do que viriam a ser as características  desse ser humano livre e racional. O sujeito do Iluminismo, dotado de  capacidades de razão, de consciência e de ação, emerge com uma identidade  individualista. Nodari explica que, a partir daí, o projeto de vida passa a ser  protagonizado pelo indivíduo autônomo, que busca com muito afinco satisfazer  seus desejos e necessidades pessoais, de modo que a liberdade passa a ser  compreendida como algo contido no interior de cada indivíduo. 
Em Contrato social, ainda que a liberdade seja designada como componente  essencial da natureza humana, o filósofo iluminista francês Rousseau já  pressente a tensão entre indivíduo e sociedade, vacilando constantemente entre  a ideia de um Estado como produto das vontades individuais e a de um Estado em  que cada indivíduo se aliene em função dos interesses da comunidade. É nesse  sentido que ele emprega a distinção entre o que chama liberdade natural, ou  seja, aquela que encontra seus limites na força dos indivíduos, e liberdade  civil, conquistada através da passagem do estado natural ao civil, encontrando  seus limites na vontade geral. 
Outra  distinção em relação aos tipos de liberdade foi feita por Benjamin Constant, no  início do século XIX, ao contrastar o que denomina a liberdade dos antigos à  liberdade dos modernos. Pode-se afirmar que, ao discorrer sobre a concepção do  termo na Antiguidade, Constant se referia à liberdade no sentido político, ou  seja, à soberania de representação dos indivíduos na esfera pública. Por outro  lado, a liberdade dos modernos estaria atrelada a uma concepção individualista  de vida, característica do sujeito do Iluminismo.  
Direitos versus práticas sociais 
A  partir do período concebido por alguns autores como modernidade tardia, que tem  início na segunda metade do século XX, uma série de fatores associados ao  processo de globalização leva ao descentramento do sujeito. Nodari explica que,  como expôs Lima Vaz em sua obra antropológico-filosófica, na atualidade, tal  problemática se amplifica em vista da fragmentação da imagem do homem na  pluralidade dos universos culturais nos quais ele se socializa e se politiza  efetivamente, dificultando a adequação das convicções do indivíduo e da sua  liberdade de ideias e valores universalmente reconhecidos e legitimados num  sistema de normas e fins aceito pela sociedade. O filósofo da UCS explica que nesse  fenômeno, Lima Vaz identifica a raiz provável do paradoxo de uma sociedade  obsessivamente preocupada em definir e proclamar uma lista crescente de  direitos humanos e, por outro lado, impotente para fazer descer do plano de um  formalismo abstrato e inoperante esses direitos e levá-los a uma efetivação  concreta nas instituições e práticas sociais. 
A  exemplo disso, a despeito do amplo reconhecimento do direito à liberdade  religiosa, enquanto liberdade de consciência e de pensamento, são crescentes os  debates e polêmicas em torno de questões referentes à expressão religiosa em  espaços públicos, como no caso do uso da burca por mulheres muçulmanas na  França, bem como denúncias sobre intolerância  religiosa ao redor do mundo, inclusive no Brasil. O advogado Aloisio  Cristovam dos Santos Junior, que estudou o tema em seu mestrado,explica que, as  circunstâncias envolvendo a afirmação histórica da liberdade religiosa resultam  da quebra da unidade teológico-política da cristandade e da eclosão do  constitucionalismo moderno. Com isso, o valor que se sobressai como fundamental  ao reconhecimento do direito à liberdade religiosa é o princípio da igualdade.  Santos Junior conta que, historicamente, a conquista dessa liberdade foi  motivada pelas perseguições e discriminações infringidas contra as minorias  religiosas e teve como base a busca pela igualdade de direitos. “É impensável  falar em liberdade religiosa quando os indivíduos não podem adotar esta ou  aquela opção religiosa sem que receiem sofrer tratamento discriminatório por  parte da comunidade política”, afirma o advogado, enfatizando a necessidade de  que haja respeito à igualdade de direitos entre os cidadãos. 
Além  dessa igualdade de direitos, de acordo com Santos Junior, a existência de um  Estado laico é também quesito imprescindível para a existência de liberdade  religiosa. “Todavia, não se deve interpretar laicidade como antagonismo e nem  mesmo indiferença à religião”, enfatiza. Ele lembra que existem diversos  modelos de Estado laico, alguns mais abertos, como no caso da Inglaterra, que  convive com a existência de uma Igreja Oficial,e outros mais fechados à  expressão religiosa no espaço público, como é o caso da França, onde o  ordenamento jurídico, capitaneado pela Lei de Separação, tende, de um modo  geral, a afastar o máximo possível a expressão religiosa do espaço público,  tratando-a como mera questão de foro íntimo. 
Já  no Brasil, o Estado é laico mas sem essa separação extremada que se vê na  França, na medida em que a própria Constituição Federal contém dispositivos que  claramente incentivam a expressão religiosa – a exemplo daqueles que preveem a  imunidade tributária dos templos de qualquer culto, o ensino religioso nas  escolas públicas, a objeção de consciência por motivos religiosos e a  assistência religiosa em estabelecimentos civis e militares de internação  coletiva. Mas, na prática, os direitos relacionados à liberdade religiosa,  exigidos do Estado, não são respeitados pela própria sociedade. A esse  respeito, Nodari observa, a partir do pensamento de Vaz Lima, que é possível  afirmar que “o niilismo atual é consequência do fracasso da virada  antropocêntrica do pensamento moderno, que, contra suas próprias intenções, não  foi capaz de oferecer um fundamento sólido ao universo dos valores éticos e,  por conseguinte, ao direito e à comunidade política”. 
Além  da intolerância religiosa verificada em diferentes contextos na atualidade,  cresce o número de denúncias sobre a violência  homofóbica registradas pela Secretaria de Direitos Humanos. A negligência dos  governos de diversos países com relação a esse tipo de discriminação foi  denunciada pelo primeiro relatório global das  Nações Unidas sobre os direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais,  divulgado em 2011. Esses e tantos outros tipos de discriminação social fazem  inúmeras as oportunidades de observar os reflexos do vazio ético mencionado por  Nodari, que se manifesta nas diversas formas de intolerância à expressão das  liberdades alheias e de violação de direitos humanos básicos na sociedade. 
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