| 
                            09/11/2010
                            
 Partindo do simples Google  Maps, passando pelo Google Earth até chegar no sofisticadíssimo Google Street  View, vimos nos últimos anos acontecer uma revolução em termos de cartografias  digitais. Os mapas como os do Google trazem um nível cada vez mais detalhado de  informações e imagens, possíveis pela popularização de tecnologias e fotos de  satélites até então utilizadas apenas por governos e setor militar.  
Com esses avanços, surgem novas  formas de se lidar com o espaço, como a elaboração de mapas colaborativos, assim  como uma invasão de privacidade viabilizada pela disponibilização na internet  de fotos em alta resolução como as produzidas pelas equipes do Google Street  View. Que consequências esse acesso sem limites pode trazer para a sociedade? É  possível confiar nos dados que estão sendo disponibilizados?  
Em entrevista para a ComCiência, Rodrigo José  Firmino, pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e  membro-fundador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância responde a  algumas dessas questões e oferece pistas de como compreender o espaço urbano e  suas relações com a sociedade, num contexto cada vez mais sujeito à vigilância.  
ComCiência - O  que pode ser entendido por cidade digital, e de que forma esse conceito se  relaciona com os atuais mapas cartográficos digitais?  
Rodrigo  Firmino - A expressão  "cidade digital" pode ser entendida de várias formas, e já foi  atribuída a diversas manifestações que relacionam a cidade às tecnologias da  informação e comunicação. Em síntese, nos anos 1990, cidade digital era  simplesmente a representação de cidades e municipalidades na internet – ou ciberespaço,  como preferem alguns. Alessandro Aurigi publicou em 2005 um livro  bem interessante sobre o assunto chamado Making the digital city no qual  explica em detalhes o nascimento da expressão e sua associação a portais e  websites na internet. Ele diferencia dois tipos básicos de cidades digitais: a  mais comum, onde há relação direta com municípios e cidades reais, que chama de  "grounded digital city", e aquelas sem relação alguma com uma cidade  real, criadas exclusivamente no meio digital. Uma cidade imaginada, ou um  website qualquer que se utiliza da metáfora do espaço urbano para facilitar a  navegação de seus visitantes.  
ComCiência - É  possível dizer que está surgindo uma nova forma de cartografia? 
Firmino  – Acredito que a  cartografia sempre será uma representação de espacialidades e não se deve nunca  ter a pretensão de substituí-la. Assim, mapas sempre serão mapas, mas eles  podem complementar/esclarecer/ampliar a percepção que temos de nossas  realidades espaciais; podem nos ajudar a compreender melhor, de forma mais  completa, diversas complexidades presentes no espaço, nos lugares, nos  territórios. Assim, além da facilidade de acesso a cartografias territoriais  tradicionais (topográficas, de relevo, de corpos terrestres, corpos d'água etc)  hoje temos possibilidades quase infinitas de mapear, de forma colaborativa,  qualquer tipo de relação que temos com o ambiente, com o espaço, dependendo de  nossos interesses e do nosso acesso aos dados para construir essas  cartografias. É isso que vem acontecendo atualmente com a construção de  cartografias colaborativas que, na minha opinião, são importantes porque  ampliam a percepção do espaço que nos cerca e nossa capacidade de interagir com  elementos complexos constituintes desse espaço. 
Em 2003 publiquei um artigo no Journal of Urban Technology, "Not  just portals: virtual cities as complex sociotechnical phenomena",  em que defendo a ideia de um fenômeno  urbano chamado "cidades digitais" onde tecnologias e experiências  digitais misturam-se a materiais e a vivências mais tradicionais do/no espaço  para ampliá-lo, alargando, assim, nossas capacidades comunicativas na  constituição do que hoje chamo de espaço ampliado.  
ComCiência - O  que muda com o surgimento desses sistemas? 
  Firmino - 
  É possível  estabelecer várias relações a partir dos diversos tipos de cartografias que  estão sendo criadas. Um bom exemplo é a criação de "mapas do crime"  utilizando plataformas do Google Maps.  Embora essas iniciativas não me pareçam muito saudáveis, são um exemplo  interessante. Nesses mapas, os usuários postam livremente suas impressões sobre  o "perigo" de determinados lugares em diversas cidades e, em alguns  casos, chegam a atribuir culpa a certos suspeitos – com descrição meticulosa de  supostos criminosos. A questão é que dessa forma estamos rotulando lugares e  pessoas, criminalizando lugares, indivíduos e grupos, antecipando e  caracterizando a suspeição com base em impressões pessoais, sem julgamentos  adequados, à maneira da ficção Minority  Report: a nova lei, dirigida por Steven Spielberg.  
ComCiência – E  como funcionam os mapas digitais disponibilizados na internet como os da Google? Como foi o aperfeiçoamento que  permitiu um nível tão alto de detalhamento? 
Firmino  – Esses mapas funcionam  por meio de uma composição complexa de mapas e imagens em alta resolução e são  possíveis somente pela construção contínua de empresas e diversas bases de  dados. O início dessas construções parte de alguma iniciativa isolada ou  privada (o Google Earth, por exemplo, vinha sendo desenvolvido por uma outra  empresa, Keyhole, comprada pela Google posteriormente) e que depois ganha complexidade,  de dados e de uso, pela adição de ferramentas, funcionalidades e informações de  forma colaborativa e individual ao mesmo tempo. Ou seja, ao mesmo tempo em que  a empresa desenvolvedora incrementa novas ferramentas como o Street View – em  que faz o levantamento de fotos a partir de pontos de vista dos próprios  lugares, com veículos munidos de câmeras especiais –, outras funcionalidades, como  links para a Wikipédia e fotos pessoais no Panoramio são acrescentadas e  desenvolvidas pelos próprios usuários.  
Os edifícios em 3D, por exemplo, são  modelados por usuários em todo mundo utilizando outro aplicativo adquirido pela  empresa Google, o Sketch Up, e depois adicionado ao Google Earth  individualmente. Assim, o avanço nessas ferramentas e aplicativos, além de  depender da própria empresa que os fornece – na atualização das fotos de  satélite, por exemplo –, deve grande parcela de seu sucesso à colaboração de  usuários anônimos. Isso acontece de forma semelhante com aplicativos  cartográficos que utilizam mapas e imagens de satélite. E, claro, há versões  menos e mais sofisticadas, sendo que as gratuitas têm menos funcionalidades que  as versões pagas (Google Earth x Google Earth Pro, por exemplo). 
ComCiência - Recentemente,  a China lançou o Map World, sua versão para o Google  Earth, produzida pelo Serviço Estatal de Agrimensura e Mapeamento. Trata-se de uma ação do governo chinês  frente a uma empresa privada. Como o senhor vê essa iniciativa? 
Firmino  – A China tem uma relação  especial com a internet e monitora completamente o que pode ou não ser usado e  visualizado pelos usuários chineses. Recentemente o Google anunciou que não  obedeceria mais aos controles do governo e vejo o lançamento desse aplicativo  como uma alternativa aos próprios programas do Google. Para entender melhor a  situação na China, é interessante ler um artigo de Zixue Tai, em número do International Journal of Advanced Pervasive  and Ubiquitous Computing (Ijapuc): "Casting the ubiquitous net of information  control: internet surveillance in China from golden shield to green dam".   
ComCiência - Qual  o uso que governos e militares fazem de mapas digitais? São usados sistemas  próprios ou eles apenas mudam a maneira de usar os mapas já disponíveis? Em  termos técnicos e de qualidade das imagens há alguma diferença em relação ao  que é disponibilizado ao público?  
Firmino  – Claro que as diferenças  são enormes. Os órgãos militares utilizam satélites dedicados, com resoluções e  especificações técnicas desconhecidas dos civis. Empresas como a Google  utilizam imagens de diversos satélites, mas todos comerciais, com alcances  sabidamente menores que os militares, mas que mesmo assim geram preocupações  aos militares. Diversos governos já se manifestaram publicamente contra as  imagens fornecidas por aplicativos como o Google Maps ou Earth. O próprio Pentágono,  do governo dos EUA, já solicitou a retirada de certas imagens do ar. Não sei  qualificar exatamente o que não é liberado e a comparação desses dados com os  que se tornam públicos, mas certamente há diferenças enormes em termos de  resolução e detalhes. 
ComCiência - Nos  últimos meses diversos países vêm se mobilizando em relação à invasão de  privacidade causada pelas fotos veiculadas no Google  Street View. Na Europa, Estados Unidos, instalações militares, residências e  até cidades pediram ao Google para que algumas imagens fossem removidas, além  do fato de o serviço ter sido completamente banido na República Tcheca. Da  mesma forma, o Map World chinês  também restringe o acesso às imagens em determinadas áreas, de acordo com seus  interesses. Taiwan, que a China  define como província traidora, não pode ser vista na mesma resolução que a  China continental. Como trabalhar  com a confiabilidade dos dados diante desse quadro? 
Firmino  – Até onde eu conheço o  sistema e essas discussões sobre segredos militares ou invasão de privacidade,  não deve haver problema com relação à confiabilidade das imagens  disponibilizadas, já que, em tese, as imagens não são "alteradas",  mas há a exclusão de imagens sensíveis ou de interesse específico. É bem claro  que sistemas e aplicativos que envolvam informações sensíveis – com discussões  transferidas diretamente para os níveis aceitáveis de invasão de privacidade  pessoal e coletiva, ou ainda de interesse governamental ou militar –, envolvem  questões de ordem política, econômica e cultural.  
Entretanto, o caminho até a  disponibilização desses dados e informações é uma outra história e sempre  corre-se o risco de uma série de pedidos comerciais e judiciais de bloqueio de  informações e, isto sim, pode comprometer o uso desses aplicativos, se  acontecer em larga escala, o que acho possível, porém improvável. Por outro  lado, as discussões em torno da privacidade são importantes e devem ser  colocadas à mesa, para que seja possível debater quais são os limites  aceitáveis econômica, política, social e culturalmente desse equilíbrio entre o  controle de informações – governamental e comercialmente – e a privacidade de  grupos e indivíduos. 
ComCiência - Como  a sociedade está reagindo a essas novas formas de se relacionar com o espaço e  a privacidade, como no caso do Street View, por exemplo, em que pessoas  são literalmente representadas e inseridas no mapa cartográfico?  
Firmino  – Essas questões são  fundamentais e devem ser mais bem discutidas. Infelizmente, não estamos fazendo  isso no momento, a não ser em círculos restritos, acadêmicos e institucionais.  A população não tem sido chamada para essa discussão, principalmente no Brasil.  
Ainda assim, avanços importantes começam a  aparecer, como no caso da construção do novo marco civil da internet no Brasil,  aberto à consulta pública e debatido por vários indivíduos e grupos  interessados na liberdade civil. Esse foi um momento muito importante e  produtivo, pois profissionais de diversas áreas puderam dar sua opinião em  trechos específicos do texto, defendendo a liberdade de expressão e o uso da  internet em vários aspectos, e garantindo o direito da privacidade em várias  instâncias na regulação do uso da internet. Resta saber como isso será  absorvido e aproveitado institucionalmente até tornar-se efetivo. Esse é o  caminho a ser perseguido, o da discussão aberta, da participação e da  colaboração.  
Ainda discutimos pouco, especialmente no  que diz respeito ao uso cada vez mais intensivo de tecnologias de informação e  comunicação no controle e vigilância de grupos, indivíduos e espaços. No Brasil  há uma tendência em imputar aos sistemas tecnológicos a responsabilidade de  correção e resolução de problemas que na verdade têm outra ordem. Não são  técnicos, mas sociais, políticos e econômicos. O caso do Google e seus  dispositivos entram certamente no contexto mais amplo de todos esses meus  argumentos sobre as discussões e preocupações com a privacidade no Brasil, ou  seja, é um tema que não é debatido como deveria. 
ComCiência - Já  existe alguma pesquisa que mostre a reação dos brasileiros diante dessa nova  tecnologia? 
Firmino  – No contexto acadêmico  há algumas pesquisas que caminham para tentar compreender essas relações  sociais, culturais e espaciais entre a sociedade contemporânea e as tecnologias  de vigilância e controle, em diversas áreas do conhecimento. Colaboro,  atualmente, no levantamento e mapeamento de pesquisas, pesquisadores,  ativistas, políticos, indivíduos, grupos, empresas e tecnologias que se inserem  nesse contexto no Brasil e na América Latina. O grupo que estamos iniciando,  chamado pretensamente de Rede Latino-Americana de Estudos Sobre Vigilância,  envolve pesquisadores de diversas partes do Brasil (PUC-PR, UFRJ, Unicamp, FGV)  e do México (Uaem, Unam), com recursos de uma instituição canadense de  financiamento a pesquisas. Um dos objetivos principais é descobrir qual a pauta  atual das discussões e pesquisas sobre vigilância na América Latina. Estamos  apenas iniciando e nossa intenção é incluir todos os países latino-americanos  nessa rede, para fortalecer as pesquisas e, quem sabe, as próprias preocupações  da sociedade nesses países com questões que envolvam controle, vigilância,  privacidade, direitos civis etc. 
ComCiência - Há  uma polêmica em relação à  possibilidade de o serviço desses sites ser usado para planejamento de assaltos  e sequestros. Por outro lado, a  própria polícia já saiu em defesa da ferramenta em alguns países dizendo que,  na verdade, o auxílio em termos de localização e monitoramento é bastante  relevante. Qual a sua opinião sobre esse assunto? Já existem leis específicas  para o julgamento de crimes com o uso comprovado da ferramenta? 
Firmino  – Creio que os limites do  uso dessas ferramentas deve ser discutido pela sociedade e regulamentado em  marcos e leis. Em países com altos índices de criminalidade, como os  latino-americanos, há uma forte tendência de governantes, da mídia e da  população exaltarem o papel da tecnologia como instrumento de prevenção ou  punição de crimes e delitos. Não tenho conhecimento específico do uso de  aplicativos cartográficos nesse sentido, a não ser aquele já descrito, como mapeamento  de suspeições e riscos a partir de impressões individuais, por exemplo, e muito  menos de legislação específica para o uso dessas tecnologias com esse  propósito. Entretanto, isso já ocorre com outros dispositivos, como o uso da  vídeo-vigilância, por exemplo, em que há uma crença altamente discutível sobre  a eficiência desses aparatos na prevenção e controle de crimes e delitos em  várias cidades do Brasil e do mundo.  
Sabe-se, apenas para citar um exemplo, que  no Reino Unido – país com o maior número de câmeras de vigilância no mundo – a  vídeo-vigilância não serve como forma de prevenção de crimes e, segundo  relatórios do próprio governo britânico, as câmeras já nem criam mais a  sensação de segurança nos cidadãos. Esses dispositivos têm sido utilizados tão  somente, ao contrário do que se anuncia comercialmente, como forma de produção  de provas criminais na justiça, nada mais. 
Assim, como venho insistindo, o maior  problema não é com este ou aquele uso específico que se faz desses dispositivos  que despertam nossa preocupação em um primeiro momento, mas com qual equilíbrio  entre controle e privacidade queremos para nossas sociedades. Precisamos  discutir essa forma de construir nossas relações individuais e coletivas, e só  a partir desse entendimento teremos condições maduras de regular o uso  específico de dispositivos tecnológicos para o controle e a vigilância. 
                         |