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 “Liberdade é palavra que o sonho  humano alimenta/ 
  que não há ninguém que explique 
  e ninguém que não entenda” 
Cecilia Meireles 
 
 
“Abre as asas sobre nós 
  Oh, senhora Liberdade” 
  Nei Lopes 
 
Liberdade, oh, liberdade! Quantas páginas de reflexão filosófica já  foram escritas em teu nome? Quantas letras de samba? Quantos hinos? Quantas  enciclopédias? Quantos panfletos? Quantas lutas de libertação e quantas guerras  imperialistas já foram declaradas te usando como bandeira? Quanto sangue  derramado? Mas afinal de contas, o que estamos defendendo quando defendemos a  liberdade? Do que estamos falando quando falamos em liberdade? É ela um valor  universal ou muda de acordo com grupos e indivíduos? É inerente ao ser humano  ou foi criada no calor dos ideais que povoaram o imaginário europeu no século  XVIII? É uma ideia eterna ou varia conforme o tempo e o espaço? Malgrado o  alerta da poetisa tentemos, se não uma peremptória explicação, pelo menos alguns  esboços de aproximação. Nosso objetivo, longe de alcançar uma conclusão, é  lançar provocações, perguntar muito e responder pouco. 
 Primeiramente, há uma diferença entre liberdade de e liberdade para. O  consumidor quer ser livre para… consumir. O escravo, supõe-se, queria ser livre  do senhor. Mas na prática as coisas eram mais complicadas, como sentiram na  pele os escravos recém libertos, principalmente os sexagenários, que depois de  uma vida inteira de servidão, não tinham ideia do que fazer com essa liberdade  (acabaram fazendo, entre outras coisas, o samba). O que fazer com uma liberdade  que não foi solicitada e que traz consigo uma série de consequências? Ser livre  significa não ter ninguém para mandar, tampouco alguém para cuidar de si. 
 Do ponto de vista iluminista, ser livre é saber pensar por si próprio.  É ter a coragem e não ter a preguiça de pensar com a própria cabeça. Sapere  aude, dizia Emanuel Kant. “Tenha a coragem de fazer uso de tua própria  razão”. “Ousa saber”. A ideia de maioridade, utilizada por Kant, representa a  passagem do homem do estado de heteronomia, em que a lei está fora do sujeito e  em que ele apenas crê, para o estado de autonomia, em que ele próprio é autor  consciente de sua própria lei, e ele pensa. 
 Liberdade é não ser nem se sentir oprimido mas é também a abertura  para um campo de possibilidades de realização. É fácil perceber sua existência  quando ela é de alguma forma negada, tolhida ou retirada. O cárcere é o exemplo  paradigmático. Buscamos nos libertar de tudo que nos aprisiona, como as  barreiras físicas das grades de uma prisão ou as barreiras psicológicas de um  relacionamento. Fugimos da opressão e da injustiça, como a realizada por  regimes tirânicos e truculentos. Buscamos recursos cada vez mais desenvolvidos  para nos libertar das limitações do tempo e do espaço. Buscamos ajuda na  tecnologia para que possamos nos sentir cada vez mais livres. Mas será que tais  objetivos são alcançados? Voltaremos ao tema. 
 Seria a liberdade uma especificidade humana ou podemos dizer que haja  liberdade na natureza? Um pinto saindo de dentro do ovo, uma borboleta ao  deixar o casulo, não anseiam, a seu modo, por liberdade? E o mesmo que vale  para o indivíduo, não podemos dizer que vale também para outras espécies? Os  peixes que se tornaram anfíbios, sobrevivendo às intempéries e opressões e  transmitindo assim sua herança genética não estão também, a seu modo, buscando  liberdade? Certo é que apenas com o surgimento do Homo sapiens sapiens e a produção do pensamento simbólico passamos  a ter consciência do tema da liberdade (bem como de todos os demais...). Ela  então passou a ser um problema. Se ao animal basta existir, sem questionar-se  sobre se é livre ou não ou sobre o modo como gasta seu tempo, ao homem, ao  contrário, é imperativo que reflita. Pode abdicar de fazê-lo, é certo. Pode  utilizar sua própria liberdade para apenas viver sem jamais se perguntar coisa  alguma, como a beata do conto de Voltaire. Pode, segundo Albert Camus, escolher  não mais escolher, deixar de viver tomando a mais filosófica das decisões: o  suicídio. Mas de acordo com Sócrates e a turma que o seguiu através dos tempos,  uma vida sem questionamentos não é uma vida que valha a pena ser vivida. 
 Gostamos de pensar que somos livres, que decidimos soberanamente sobre  nosso destino. Não gostamos de pensar que somos determinados, que forças mais  poderosas do que nós dominam nossa minúscula existência. Sentimos pena do pobre  Édipo, o poderoso e justo rei de Tebas que cai em desgraça por conta de uma  profecia oracular da qual não consegue se livrar. No mundo grego, a Môira,  o destino, era uma deusa inexorável e nem sempre justa que guiava o caminho de  cada um. Édipo busca uma resposta, é um solucionador de enigmas. Mal sabe ele  que o verdadeiro enigma não é aquele colocado pela Esfinge mas aquele colocado  pelo destino. Ao perguntar por sua origem, seu passado, Édipo descobre que não  é quem pensava ser. O passado muda o presente, o presente desencadeia o futuro.  O poderoso rei transforma-se em títere. 
 Que fazer, portanto quando, tal como Édipos pós-modernos, nos damos  conta de que não somos senhores absolutos de nossos destinos e que ideologias e  corporações são muitas vezes os verdadeiros mestres por trás de nossas ações? É  possível ainda utilizarmos a palavra liberdade quando tomamos consciência do  papel poderoso que sobre nós exercem tais forças? É possível ser livre vivendo  em um tempo em que, por toda parte, impera um sistema que capitaliza todas as  forças, maquínicas e humanas, transformando vida em lucro e o resto em lixo?  Pode-se falar em liberdade diante do mundo que se nos apresenta, em que um  terço da população do planeta sofre de fome e guerra desnecessariamente  enquanto menos de um por cento concentra riquezas incalculáveis? Jean-Paul  Sartre diria que sim. 
 Somos livres e fim de papo. Independente do que se diga ou faça, e já  que não existe essência ou natureza humana, o que nos resta é a liberdade. E  não é pouco. Esta é a afirmação concisa que nos lega o pai do existencialismo  francês. Não se trata de uma benção nem tampouco de uma maldição, embora por  vezes se pareça com uma ou com outra, dependendo da circunstância. Trata-se de  um destino, portanto, de um certo tipo de profecia. Sartre afirma que estamos  irremediavelmente condenados a ser livres. Desde que nascemos, e antes até, da  mesma forma que Édipo, nosso destino está traçado: somos mortais e somos  livres. E a profecia se confirma e se constrói passo a passo, dia a dia. Um  destino existencial que encontra-se em nossas mãos a cada instante, a cada  decisão que tomamos ou deixamos de tomar. Liberdade aqui é sinônimo de  responsabilidade. Não implica em fazermos o que quisermos mas em, ao fazermos o  que fazemos, assumirmos as consequências de nossos atos. Somos  irremediavelmente responsáveis por tudo o que fazemos e deixamos de fazer, cada  frase dita ou não dita, cada mensagem enviada ou não enviada, cada gesto  produzido ou evitado. Cada domingo passado em frente à televisão. 
 Em sua busca por liberdade, o homem já foi longe. Já aboliu a  escravidão em massa e pisou na Lua. Libertou-se da ideia de que alguém possa  ser dono de outra pessoa (embora ainda não se tenha livrado da ideia de que se  possa comprar o tempo da outra) e libertou-se da prisão da gravidade terrestre.  A tecnologia talvez seja o grande exemplo da busca humana por mais e mais  liberdade. Mas aí também reside um paradoxo. Não é sem ironia que, ao  percebermos criticamente os diversos avanços tecnológicos que nos cercam,  notamos que toda tecnologia, na mesma medida em que liberta, produz, por sua  vez, um novo tipo de aprisionamento e, na mesma medida que aproxima, afasta. 
 O filósofo Emanuel Carneiro Leão costumava relatar uma narrativa  budista em que um monge descia diariamente até o fundo de um poço para pegar  água. Um dia lhe foi sugerido que utilizasse um sistema de cordas e roldanas  que iria facilitar sua vida, permitindo que realizasse a função em menos tempo  e com mais eficiência. O sábio agradeceu o conselho mas optou por dispensá-lo.  Talvez temesse que a técnica o afastasse do mundo real, criando uma intermediação  da qual ele se veria, imediatamente, prisioneiro. É o paradoxo de toda técnica  e de toda tecnologia. Além disso, deveria ser muito estranha ao monge a ideia  de que uma tarefa deva necessariamente ser feita no menor tempo possível de  modo que se possa ganhar tempo para realizar outras tarefas. Ele não sabe que  tempo é dinheiro. Mas sabe sentir o tempo do mundo. 
 Será que as inúmeras tecnologias, especialmente aquelas que  revolucionaram as comunicações, mudando nossa percepção de tempo e espaço, não  criam tanta ou mais dependência do que a liberdade que oferecem? Não nos  tornamos mais vulneráveis e, portanto, menos livres quando dependemos cada vez  mais de dispositivos complexos, cujo funcionamento muitas vezes desconhecemos?  E o suposto tempo que ganhamos ao utilizar essas tecnologias, será que  refletimos sobre a forma como ele será utilizado? 
 Adianta mesmo “ganhar tempo” fazendo uso de um dispositivo tecnológico  comunicacional se o tempo que for ganho reverter em uma ainda maior utilização  desses mesmos dispositivos? Vale a pena poupar tempo se todo ele será  reinvestido na produção? Estão todos obcecados em ganhar tempo, em realizar  cada vez mais tarefas em cada vez menos tempo. Mas isso é sinal de liberdade ou  de uma nova forma de aprisionamento? O tempo ganho é realmente ganho? O fato é  que na maioria das vezes o tempo que ganhamos graças à tecnologia acaba sendo  capitalizado pela própria tecnologia e raras vezes pode ser dedicado ao ócio, à  criatividade, às artes ou à filosofia. Mas que se há de fazer? Afinal, somos ou  não somos livres para fazer o que quisermos de nosso tempo e de nossa vida? 
 Marcio Acselrad é professor  de teoria da comunicação, de estética e de psicologia social da Universidade de  Fortaleza (Unifor). É coordenador do Cineclube Unifor, do Cineclube Gazeta e do  Laboratório de Estudos do Humor e do Riso (LabGraça). 
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