O  pai acha que está para morrer e diz pequenas verdades à família. A esposa  revela ao marido a tatuagem inspirada no ex-namorado. São cenas de uma peça  publicitária veiculada na TV em horário comercial que faz parte de campanha  realizada pela Associação dos Pacientes Renais de Santa Catarina para informar sobre a necessidade de manifestar à família o consentimento para  a doação de órgãos post mortem. Mesmo  tratado com essa leveza, é um assunto que afeta emocionalmente pois evoca o  tema da morte de pessoas queridas e a necessidade de uma decisão que envolve  convicções pessoais, o respeito ao corpo e aos rituais fúnebres e, por outro  lado, a possibilidade de prolongar a vida dos que aguardam nas filas de  transplante.
 De  acordo com números do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) da Associação  Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), de janeiro a setembro deste ano,  foram realizados 5.900 transplantes de órgãos sólidos e 26.818 de tecidos. No  mesmo período de 2013, foram 5.662 transplantes de órgãos sólidos. Um  levantamento do Registro Internacional em Doação de Órgãos e Transplantes  (IRODaT) coloca o Brasil em 31º lugar quando se compara o número de doadores  falecidos entre os países, e o índice é 12,6 doadores por milhão da população. 
A  doação de órgãos, nesses casos, implica que seja declarada a morte encefálica  do doador, questão que passa pela discussão do próprio conceito de morte. “O  critério encefálico para determinação da morte de uma pessoa é embasado em uma  longa experiência de acompanhamento de pacientes em estados de inconsciência  avançada. Antes deste critério os pacientes recebiam o diagnóstico de coma depassé,  isto é, que ultrapassaram o estado de coma, que nunca se recuperam e entram em  falência corporal em um curto período de tempo”, afirma o professor adjunto de  bioética da Faculdade de Medicina da PUCRS e chefe do Serviço de Bioética do  Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA/UFRGS), José Roberto Goldim. 
O  professor explica que essa questão foi normatizada no Brasil pela Resolução 1.480/1997, do Conselho Federal de  Medicina, que descreve os procedimentos necessários – que incluem uma série de  exames clínicos realizados por diversos profissionais – para assegurar o  diagnóstico correto. “O corpo do paciente falecido é mantido em funcionamento  com o auxílio de tecnologias de suporte de vida, que uma vez retiradas geram o  fim da atividade biológica ainda remanescente”, constata Goldim. 
No  Brasil, o transplante de órgãos é regulamentado por legislação específica.  “Diante da atual redação da lei, tem-se que, para a vontade do próprio doador  ser levada em consideração, ela deve ser expressa. Entendo que, havendo a  manifestação, não há necessidade de consulta aos familiares. Se nada disser, há  que se perquirir a vontade os familiares para o ato. Percebe-se uma valorização  da autonomia privada, seja do próprio doador, seja dos seus familiares”,  explica a professora do programa de  pós-graduação da PUC Minas e coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos  em Biodireito (Cebid), Maria de Fátima Freire de Sá. 
No entanto, um longo percurso, repleto de medidas  provisórias, foi galgado para se construir a legislação dos transplantes  brasileira. Em 4 de fevereiro de 1997, o então presidente Fernando  Henrique Cardoso assinou a  Lei 9.434 que disciplinava a remoção de órgãos e tecidos para fins de  transplantes. Um ano antes, o senador José Eduardo Dutra propusera o Projeto de  Lei 1.579 que dispunha sobre a remoção de tecidos, órgão e partes do corpo  humano para esses fins. Pouco mais de um ano se passaria da sanção da lei, até  que a Medida Provisória 1.718/1998 fosse emitida pelo Palácio do Planalto em 6  de outubro. Seria a primeira de uma série de 32 reedições – incluindo  modificações da redação ao longo do tempo – até a conversão da MP na Lei  10.211/2001.  
Do compulsório ao declarado  
O  principal alvo das sucessivas modificações da lei dos transplantes foi o  dispositivo da doação presumida, prevista no artigo 4° da versão original da  Lei 9.434/1997,  no qual se lia: “Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta  Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo  humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem”. Para a coordenadora do Cebid, essa previsão da  presunção da doação era o aspecto mais polêmico da redação inicial da lei de  doação de órgãos. “Ou seja, caso não houvesse a manifestação expressa contrária  à doação em vida, ela deveria ser realizada pelo médico, independente da  vontade, inclusive, da família do doador, o que foi expressamente consagrado no  artigo 14 do Decreto n. 2.268/97”, diz.  
“Previu  a lei que a manifestação contrária à doação, por meio da expressão ‘não doador  de órgãos e tecidos’ deveria vir expressa na Carteira de Identidade Civil e na  Carteira Nacional de Habilitação do doador. Tal manifestação também poderia vir  junto ao ato de última vontade – testamento, codicilo ou outro ato autêntico”,  elucida a professora. Segundo ela, que à época escrevia sua dissertação de  mestrado sobre o tema, a “disposição não foi vista com bons olhos por grande parte  da população brasileira, que se sentiu amedrontada e insegura, temendo,  inclusive, que seus órgãos pudessem ser retirados sem o correto diagnóstico da  morte encefálica”. “Instaurou-se uma corrida aos centros de atualização dos  documentos civis para registrar a frase “não doador de órgãos e tecidos”,  recorda.  
Apesar  de o objetivo da legislação, então recém-implementada, ser o aumento no número  de doações de órgãos, a reação obtida foi oposta. Um levantamento do Instituto  Datafolha mostrou que, em janeiro de 1998, 63% dos 640 paulistanos  entrevistados afirmavam que seriam doadores voluntários; em 1995, antes da  aprovação da lei da doação presumida, 75% diziam o mesmo. “A disposição despertou  outro sentimento na população: o de desrespeito à família do morto. É cediço  que os mortos são importantes para suas famílias, principalmente porque o corpo  sem vida ainda é a representação física da pessoa viva, tal como uma imagem  congelada – não fala, não sente, mas projeta a pessoa querida, de forma com que  ela faça parte da sua convivência e do seu dia a dia, muitas vezes como um  ‘pano de fundo’, dependendo do grau de afetividade que as ligava ao falecido”,  analisa Freire de Sá. 
Essa  foi a razão, segundo a professora da PUC-Minas, de o poder executivo incluir,  por meio da MP  1.718/98, o parágrafo 6º  no artigo 4º da lei de 1997 que dizia que “na ausência de manifestação de  vontade do potencial doador, o pai, a mãe, o filho ou o cônjuge poderá manifestar-se  contrariamente à doação, o que será obrigatoriamente acatado pelas equipes de  transplante”. “No intuito de acabar com a problemática da doação presumida, a  alteração perpetrada pela medida provisória trouxe outras questões polêmicas”,  pondera Freire de Sá. “É que quando veio permitir a manifestação contrária à  doação pelo pai, mãe, filho ou cônjuge deu margem a outras dúvidas, tais como:  a vontade de todos tem que ser homogênea? Como solucionar a questão de  discordância de vontades entre os familiares? Poderia ser proposta uma ação de  suprimento de consentimento quando da negativa de algum parente em manifestar  sua vontade?”, questiona. 
Após  várias medidas provisórias foi estabelecida a doação declarada, prevista na  redação do artigo dada pela Lei 10.211/2001 e que é a vigente hoje: “A retirada  de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou  outra finalidade terapêutica dependerá da autorização do cônjuge ou parente,  maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo  grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à  verificação da morte”. “Importante ressaltar que a participação da família na  formação da vontade para a realização da doação resulta em maior tranquilidade  na atuação do profissional da medicina, eis que não precisa invocar o Código de  Ética Médica para recusar-se a cumprir a lei, pois conta com a decisão do  próprio doador, em vida, e/ou com o auxílio da vontade dos familiares”, conclui  a coordenadora do Cebid.  
Premissas corretas, aplicação  errada?  
Alemanha  e Áustria são dois países europeus vizinhos, de populações majoritariamente  germânicas e com vários traços culturais e históricos em comum. Em pesquisa da Eurobarômetro em 2006, 46% dos adultos alemães  responderam positivamente à pergunta “Se lhe  perguntassem no hospital para doar um órgão de um membro familiar próximo  morto, você consentiria?”. Entre os austríacos, apenas 35% (contra uma  média de 53% na União Europeia).  
Apesar  do resultado de declarações, na prática havia uma inversão: somente 12% dos  alemães adultos eram doadores de órgãos, enquanto 99,98% dos austríacos o eram,  segundo os psicólogos americanos Eric J. Johnson  e Daniel Goldstein, que fizeram a pesquisa em 2002, quando ambos estavam na  Columbia University (Goldstein atualmente é pesquisador da Microsoft Research  Center em Nova Iorque). 
A  principal diferença deve-se ao fato de a legislação alemã valer-se da doação  declarada – para ser um potencial doador de órgãos, o indivíduo deve  declarar-se como tal em documento -; já na legislação austríaca, a doação ser  presumida – para não ser um potencial  doador de órgãos, o indivíduo deve declarar-se como tal em documento. Além do  estudo de Johnson & Goldstein, vários outros confirmam que o sistema de  doação – declarada (opt-in) ou  presumida (opt-out) – afeta o número  de doadores potenciais no país. Com o sistema de doação presumida resultando em  uma fração muito maior de doadores adultos.  
O  psicólogo da Universidade de Cornell Shai Davidai (2012) mostrou que essa diferença  deve estar ligada ao modo como os indivíduos percebem os valores e significados  da adesão à doação. Quando o sistema era de doação declarada, americanos,  alemães e austríacos entendiam que a adesão era um ato muito mais significativo  do que o sistema de doação presumida – que viam como uma ação de maior  denegação de responsabilidades. Em um país com o sistema opt-in, a doação tende  a ser vista como o equivalente a doar mais da metade da riqueza para a caridade  quando da morte; já em um país com sistema opt-out, a doação tende a ser vista  como algo entre ceder o lugar na fila ou dedicar algum tempo a um trabalho  voluntário para ajudar os pobres. 
Havia  uma base científica, portanto, para a redação original da lei de transplantes.  Porém, a base cultural brasileira, em sua relação com os mortos, parece ter  sido desconsiderada inicialmente.  
Na lista de espera  
Em  2003, de acordo com dados do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), havia 56.364  pessoas na lista de espera por uma doação. Na mais recente contabilização  divulgada pelo órgão, em agosto deste ano, a fila para órgãos sólidos e tecido  ocular somava 39.690 pessoas. De acordo com Freire de Sá, outro ponto  importante que foi estabelecido após a reformulação da lei é a existência de  uma lista única de espera. “Tal lista única aplica-se apenas às doações post mortem, porquanto as doações em  vida, preferencialmente, são feitas a familiares ou dependem de autorização  judicial quando o receptor for terceira pessoa”, explica. 
“A  lista é extremamente rígida. Tanto é assim que há quem entenda não ser possível  a alteração da ordem de colocação das pessoas em razão de sua condição  peculiar, eis que é difícil aferir se não existem outras pessoas que estejam na  mesma situação de maior necessidade. Contudo, atualmente, a Portaria nº  2.600/2009 do Ministério da Saúde, que aprova o Regulamento Técnico do Sistema  Nacional de Transplantes, permite, nos termos do seu artigo 30, a utilização de  critérios expandidos, previstos na própria portaria, objetivando reduzir o  tempo de espera e melhorar a qualidade de vida dos receptores. Logo,  verifica-se que condições clínicas de urgência do receptor devem ser  consideradas para a preferência no recebimento do órgão (artigo 43)”, completa  a professora. 
Ela  destaca ainda que o critério expandido deve constar no Termo de Consentimento  Livre e Esclarecido que é assinado pelo receptor ou pelo representante legal  deste. Esta é inclusive, outra questão que a lei regulamenta (§1º do artigo  10): a necessidade de consentimento do receptor do órgão. “A motivação para a  elaboração da lei foi salvar vidas (bem jurídico). Como o diagnóstico de morte  encefálica é amplamente aceito, uma legislação que permita a retirada de órgãos,  a partir do diagnóstico da morte, viabiliza uma vida digna aos receptores”,  resume Freire de Sá. 
Goldim  ressalta ainda que “um importante componente  bioético dos transplantes é garantir a confidencialidade do doador e do  receptor”. “Os profissionais de saúde devem salvaguardar as identidades destas  pessoas, impedindo que por meio dessas informações possam ocorrer situações de  encontros entre o receptor e familiares do doador”, pontua o professor. Segundo  ele, esse cuidado ajuda a preservar a família do doador da eventualidade dos  órgãos doados não serem utilizados – o que pode acontecer, por exemplo, por  problemas médicos ou logísticos. “A garantia da não identificação é uma das  salvaguardas da adequação dos transplantes de doador falecido”, complementa Goldim 
“É importante ressaltar que o mais importante é conversar com  os familiares sobre o tema. Abrir suas opções de ser ou não doador, ainda que o  sistema legal brasileiro não reconheça esta manifestação de vontade. Contudo, a  manifestação anterior pode ser um importante elemento na tomada de decisão dos  familiares. Falar abertamente sobre o tema, não elimina, mas atenua o impacto  de sua discussão quando da morte de um familiar”, finaliza o professor da  PUCRS.  
  
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