Vigilância das redes encontra as fronteiras físicas nos Estados Unidos

Por Mayra Trinca

Política de monitoramento das redes sociais de Donald Trump inibe manifestações vindas de imigrantes que possam ser contrárias ao posicionamento do governo.

Em março, os Serviços de Cidadania e Imigração dos EUA receberam ordens de checar as redes sociais de solicitantes de visto permanente no país. A nova política expande um monitoramento que já acontecia para turistas desde 2019.  Marco Rubio, líder do Departamento do Estado, diz que a medida busca identificar supostas ameaças terroristas. Entretanto, estudantes e pessoas envolvidas em atos pró-Palestina têm sido as mais afetadas.

Políticas de imigração restritiva já estavam presentes no governo anterior, de Joe Biden, mas foram um importante tópico na campanha eleitoral que elegeu Donald Trump em 2024 e permanece como ponto forte da administração atual. O discurso frequentemente recaí em preconceitos contra imigrantes, apontando-os como possíveis criminosos. Cria-se um clima de apreensão e medo generalizado: migrantes e não-migrantes se colocam em estado de alerta.

Agora, ao enviar o formulário de solicitação de vistos, as pessoas devem informar redes sociais ativas e e-mails utilizados nos últimos 5 anos. Imigrantes com vistos permanentes ou estudantis que já estão no país também terão suas redes monitoradas. Rúbia Marcussi Pontes, pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) destaca que há também relatos de requerimento para acesso físico a dispositivos móveis de imigrantes nas fronteiras, como forma de verificar movimentações recentes.

“Isso tem levado advogados e associações de direitos civis a recomendar que as pessoas sequer levem celulares e outros aparelhos para os Estados Unidos, algo inimaginável até então”, complementa a pesquisadora.

São analisados conteúdos postados e comentários em posts público e fotos pessoais. Mas, segundo Pontes, não se sabe ao certo a extensão do acesso das autoridades governamentais aos dados dos usuários das plataformas. Com isso, não há qualquer garantia de respeito à privacidade ou à liberdade de expressão dos usuários.

Além disso, a Embaixada dos Estados Unidos se manifestou em uma postagem no Instagram, dizendo que “a triagem de vistos dos EUA não se interrompe após a emissão do visto. Monitoramos continuamente os portadores de visto para garantir que cumpram todas as leis e regras de imigração dos EUA — e revogaremos seus vistos e os deportaremos se não cumprirem”.

Quem são os principais atingidos?

Em tese, o monitoramento é apenas para identificar possíveis associações terroristas ou outras ações que possam colocar em risco habitantes estadunidenses. Mas em pronunciamento no início de Abril, o Departamento de Segurança Nacional anunciou que a medida “busca proteger a pátria contra ações extremistas, incluindo ideologias antissemitas e de organizações como o Hamas”. Há, portanto, uma indicação clara de que a medida atinge de forma desproporcional pessoas com posicionamento político contrário ao do governo em questão.

Pontes também enfatiza que “as negativas para vistos, além das detenções e deportações já em curso, indicam um clara retaliação contra nacionais da Venezuela ou contra discentes e docentes que tenham denunciado o genocídio palestino”. Segundo a pesquisadora, há diversos relatos de estudantes que participaram de protestos pró-Palestina e que tiveram seus vistos revogados.

Já para Rafael Evangelista, pesquisador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), o monitoramento pode afetar populações periféricas como um todo, que se encontrem em uma situação política e econômica mais frágil. Populações que, por estarem residindo legalmente no país, teriam direito a uma atuação política, mas são limitados por esse monitoramento.

A vigilâncias nas redes sociais

A nova medida de Trump é exemplo de mais um dispositivo tecnopolítico do capitalismo de vigilância, como exemplificado por Gabriel Barros Bordignon no artigo “Dispositivos de vigilância como tecnologias de controle no capitalismo de dados: redes sociais e smart cities”. É um momento recente do capitalismo, em que as empresas de tecnologia começaram a utilizar a grande quantidade de dados pessoais que coletam como uma forma de gerar lucro. A partir da coleta e monitoramento dos dados, as empresas conseguem prever e modificar comportamentos.

O autor compara a vigilância das redes com a vigilância nas cidades, mostrando como questões como a segurança pública são utilizadas como motivadoras para políticas de controle. Ao apresentar imigrantes como um perigo para a sociedade, Trump cria uma pretensa justificativa para a regulação das liberdades individuais. Incluindo aqui as manifestações em redes sociais.

A vigilância é capaz de modular comportamentos a partir de um efeito inibidor. “Algumas tecnologias têm um efeito de paralisar as pessoas, porque elas imaginam as consequências. Quando pensa que pode estar sendo vigiado, ou que aquela produção política ou comunicacional pode ser utilizada para te prejudicar, você interrompe essa produção”, explica Evangelista.

As novas medidas de monitoramento extrapolam essa vigilância, trazendo efeitos concretos, borrando as margens do virtual e do real. É também mais um exemplo da aproximação das big techs com o governo estadunidense. Uma relação que não é nova. Ela apareceu pela primeira vez na eleição, com a utilização dos dados coletados pelas redes para direcionar a campanha de Donald Trump em 2016.

Entretanto, o uso explícito de informações das redes sociais não apresenta nenhum ganho óbvio para as empresas de tecnologia. Para Evangelista, a medida pode causar ainda o efeito oposto. Ao perceberem que estão sendo vigiadas, as pessoas tendem a procurar outras formas de estar nas redes.

Segundo o pesquisador, essa aproximação funciona por outros motivos, mais ideológicos do que práticos. Para ele, os empresários do Vale do Silício têm um visão de sociedade do futuro ainda mais hierarquizada. Eles dividem com Trump a ideia de uma população que precisa ser tutelada, ter seu comportamento gerenciado por uma classe dominante. Dentro desta lógica, o controle da população seria feito através da coleta e monitoramento dos dados obtidos pelas plataformas digitais.

Seguindo esta ideia, medidas como o monitoramento das redes sociais pelo governo aumenta o protagonismo das empresas de tecnologia como parte da administração pública. A indicação de Elon Musk, atual proprietário da rede X (antigo Twitter), para o Departamento de Eficiência Governamental é um bom exemplo do estreitamento das relações entre as grandes empresas de tecnologia com os serviços públicos de inteligência. Com isso, os donos das big techs crescem no cenário político e podem, cada vez mais, influenciar nas políticas públicas, governamentais e sociais.

Mayra Trinca é bióloga, mestre em divulgação científica (Unicamp) e especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).