Banquete para a morte

Por Ana Paula Palazi, Erica Mariosa Moreira Carneiro, Sophia La Banca de Oliveira

Comer pode ser perigoso. Da entrada à sobremesa, existe uma série de comidas que podem matar, e se engana quem acredita que esses alimentos estão longe do cotidiano

“(…) Melhor, se arrepare: pois num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. (…) Arre, ele (o demo) está misturado em tudo”.

Em 1956, João Guimarães Rosa, no livro Grande sertão: veredas já descrevia as potencialidades da mandioca. De fato, ela contém uma substância chamada ácido cianídrico, que, quando consumida, ocupa o espaço do oxigênio no sangue, causando asfixia e até a morte. O livro acerta quando fala de dois tipos de mandioca: uma tem ácido cianídrico na raiz, a outra não.

As variedades de mandioca usadas na indústria de alimentos para produção de farinha fécula e polvilho possuem ácido cianídrico. Apesar disso, não causam danos à saúde, porque a toxina é eliminada no processo de produção. “Para fazer a farinha, a raiz é descascada, triturada e vira uma massa. Nesse processo sai água, com alto teor de ácido cianídrico. A farinha empacotada não tem ácido cianídrico”, explica o professor José Carlos Feltran, do Instituto Agronômico de Campinas.

Já nas variedades de mesa, que normalmente consumimos, a raiz não possui o ácido cianídrico em quantidade suficiente para causar danos ao organismo, mesmo quando consumida in natura. Ainda assim, é necessário ter cuidado, já que outras partes da planta, como o caule e as folhas, podem ser tóxicas se consumidas sem o processamento adequado.

Como diferenciar a mandioca brava da mansa? “Quando a mandioca tem um teor alto de ácido cianídrico, ela tem um sabor muito amargo, mesmo após o cozimento, mais amargas que jiló cru, por exemplo”, explica Feltran. Outra dica para se proteger é descartar a água do cozimento, porque, se tiver ácido, sairá nesse líquido.

Baiacu: o peixe fatal

Não há um chefe de cozinha que não tenha ouvido falar do baiacu. Uma iguaria arriscada, o peixe é um dos mais comuns e venenosos do mundo. São poucos os profissionais que ousam prepará-lo – no Japão é preciso até uma licença especial. O fugu – nome típico do peixe no país – já foi proibido por um tempo e é o único que o imperador japonês não pode provar, por questão de segurança.

A receita é semelhante à de qualquer peixe, mas um milímetro de corte fora do lugar na hora de limpá-lo faz o veneno presente no fígado se espalhar, contaminando toda a carne, podendo levar quem o come à morte. A mesma toxina também está presente, em menor quantidade, na pele do peixe.

“O problema não é só o fígado, mas retirá-lo de forma que não contamine a carne. O profissional deve estar muito preparado e confiante, é um trabalho que não pode ser automático”, destaca o jornalista e chef de cozinha Manuel Alves Filho. A pesca e venda da espécie não são proibidas no Brasil. No país, a principal causa de envenenamento ocorre de forma caseira, por imperícia ou negligência de quem limpa o peixe.

Encontrado em praticamente qualquer mar tropical e temperado e também em águas doces, o nome baiacu pode designar uma centena e meia de peixes, que são capazes de inflar o corpo – como uma bexiga – quando se sentem ameaçados.

A principal neurotoxina é a tetrodotoxina, muito potente. Ela age impedindo que os nervos disparem seus sinais elétricos. Isso causa a paralisia dos músculos, incluindo o diafragma e intercostais, impedindo a respiração.

Batata: a queridinha na berlinda

De peixe tem gente que até consegue passar longe, difícil mesmo é resistir a uma porção de batata frita. Só no ano passado foram produzidas no país 4,3 toneladas de batata do tipo inglesa, de acordo com levantamento do IBGE.

A principal forma de consumo é a fritura – justamente um processo no qual se libera um composto tóxico. A batata é rica no aminoácido chamado l-asparagina. Quando exposto a altas temperaturas, ele se modifica, dando cor e crocância ao alimento, mas também dando origem à acrilamida, uma substância considerada potencialmente cancerígena. Na verdade, isso acontece com todos os alimentos ricos em amido (como pães e biscoitos) quando expostos a temperaturas superiores a 100°C. É a chamada reação de Maillard.

Diminuir a concentração da acrilamida nos alimentos é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), porque a substância é associada não só ao surgimento de câncer, mas também a danos no sistema nervoso e reprodutivo. Em março, a justiça da Califórnia determinou a inclusão de alertas sobre a presença da acrilamida nos cafés vendidos no Estado. No Brasil, não há qualquer regulação, ou estudos por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). As pesquisas, por enquanto, se concentram nas universidades.

Na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, pesquisadores já conseguiram inibir em 72% a formação desse composto a partir da seleção de uma enzima fúngica, chamada de l-asparaginase. A batata foi submetida ao tratamento com uma solução da enzima em água purificada a 50°C. “Em trinta minutos de imersão já conseguimos reduzir a concentração do aminoácido, o que leva a uma menor formação de acrilamida”, explica a pesquisadora Fernanda Furlan Gonçalves Dias.

Há um tipo de enzima, capaz de reduzir a formação de acrilamida, comercializado fora do país, mas tem um valor considerado ainda alto e altera as características sensoriais do produto. Fernanda garante que o processo brasileiro, não. “Aplicamos o fungo na batata crua, e se reduz apenas esse aminoácido. Fritamos a batata e ela continua com o sabor e aroma atrativos”, conclui.

Outro perigo encontrado na batata é mais fácil de detectar. Dá para ver de cara, na gôndola do supermercado, o chamado esverdeamento. A batata é um tubérculo que normalmente fica enterrado, armazenando o amido. Ao ser exposto à luz, em vez de produzir amido, passa a produzir clorofila, daí a coloração esverdeada – é uma toxina chamada solanina.

Esse processo não acontece somente no plantio, mas no caminho da roça até sua casa, como aponta o pesquisador Feltran: “A batata passa pelo processo de lavagem e, no mercado ou em casa, fica exposta à luz. Com essa exposição, ocorre o esverdeamento – e em todas as variedades”.

Isso faz parte do mecanismo natural da planta para se proteger de insetos e outras pragas, mas a solanina também é perigosa para os seres humanos. A toxina age danificando a membrana das mitocôndrias – organelas responsáveis por produzir energia nas células – o que acaba por causar a morte dessas células. Quando ingerida em maiores quantidades, o envenenamento pela solanina pode ser fatal.

Ainda não há como evitar o esverdeamento da batata, que já começa quando ela sai da terra. O jeito é escolher e comprar produtos que estejam com aparência mais nova. E, quando possível, dar preferência à batata escovada, que não passou pelo processo de lavagem, porque a terra protege a batata da luz, diminuindo a formação de solanina. Porém, se você só tiver batatas assim, não é preciso jogá-las fora. O pesquisador orienta retirar duas ou mais camadas quando for descascar.

Escondido num gole

Depois de ser condenado à morte por traição, o irmão do rei Eduardo IV, da Inglaterra, pôde escolher como seria a execução. Ele teria pedido para ser afogado num grande tonel de vinho, sua bebida favorita. Pelo menos, assim foi dramatizado por William Shakespeare, na peça Ricardo III.

Não é nenhuma novidade que consumir bebidas alcoólicas em excesso possa levar à morte – não como o personagem Duque de Clarence, mas tão trágica quanto. A dor de uma ressaca após uma bebedeira traz alguns indícios. A curto prazo, os efeitos do álcool passam de uma euforia momentânea e perda da coordenação motora (com doses menores) à depressão do sistema nervoso central, com perda de consciência e de memória, até a morte (em doses mais altas).

Os efeitos do álcool a longo prazo também são perigosos. No sistema digestório, pode irritar o estômago, causando gastrite, e impedir a absorção de alguns nutrientes, como a vitamina B1, causando doenças graves, como a Síndrome de Wernicke-Korsakoff – síndrome neuropsiquiátrica. O fígado também é afetado, o que pode levar à cirrose hepática (quando as células são substituídas por tecido fibroso) e hepatite alcoólica. Por último, o cérebro é impactado, e a exposição contínua ao álcool pode causar inflamação e alterar o funcionamento de alguns neurotransmissores, como a dopamina e o glutamato.

E esses não são os únicos perigos das bebidas alcoólicas. Se, no passado, já foram usadas para esconder venenos e, com isso, matar reis e imperadores hoje, os cientistas sabem que elas podem também conter substâncias indesejáveis.

A cachaça é a terceira bebida destilada mais consumida no mundo e a primeira no Brasil, segundo a Agência Embrapa de Informação Tecnológica. É obtida da cana-de-açúcar. Ao longo da produção e estocagem do produto, há a formação natural de diversos compostos, como o carbamato de etila. Ele é encontrado não apenas em cachaças, como em vários tipos de alimentos e bebidas (uísque, vinho, cerveja, pão, shoyu e iogurte). O problema é que seu consumo em altas quantidades pode provocar câncer.

Em 2007, o carbamato de etila foi considerado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, ligada à ONU, como substância potencialmente cancerígena, listado ao lado de produtos como anabolizantes, carne vermelha e gases de motores a diesel.

O consumo de carbamato de etila a partir de alimentos pode ser considerado insignificante. No entanto, a ingestão regular de bebidas alcoólicas aumenta à exposição ao composto. No Brasil o limite desse contaminante em cachaças é de menos de um miligrama por litro, de acordo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Uma pesquisa recente conduzida no laboratório de Biomarcadores Innovare, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp e publicada no mês passado na revista Frontiers in Nutrition analisou dezoito marcas de cachaças do estado de São Paulo. Em todas, o nível de carbamato de etila estava acima do permitido pela legislação.

Os pesquisadores desenvolveram uma nova metodologia, que elimina o açúcar natural ou que é adicionado durante o processo para melhorar o sabor do produto final, e, assim, foi possível ter mais precisão para identificar os níveis da substância. “É preciso ter cuidado na produção, desde a compra da matéria-prima, fermentação, até a finalização, uma vez que  o carbamato de etila pode ser adquirido em qualquer fase do processo”, pontua o coordenador da pesquisa, Rodrigo Ramos Catharino.

Contaminação cruzada: perigo na cozinha

Qualquer alimento manipulado de forma incorreta pode causar problemas, daí a importância do cuidado no preparo e na manipulação. Segundo o Instituto Pan-Americano de Proteção de Alimentos e Zoonoses (INPPAZ), a cada dez pessoas que ficam doentes após uma refeição, quatro são devido à preparação e manipulação incorreta dos alimentos.

Muita gente não sabe, mas o simples ato de cortar um frango cru e utilizar a mesma faca, sem lavar, para fatiar uma carne assada pode ser um risco à saúde. Carnes cruas e vegetais não lavados apresentam uma série de microrganismos causadores de doenças, eventualmente transferidos aos alimentos prontos.

“Esse tipo de contaminação cruzada pode acontecer por meio da transferência de microrganismos de um alimento ou superfície por meio de utensílios, equipamentos ou do próprio manipulador”, afirma Maria Cecília Brito, diretora da Anvisa. Por isso, a Organização Mundial da Saúde recomenda que os alimentos crus fiquem separados dos cozidos.

Dados do Ministério da Saúde indicam que alimentos crus, como ovos e carnes vermelhas, são responsáveis por 1/3 dos surtos de doenças transmitidas por alimentos que ocorrem no Brasil. Um cozimento adequado mata quase todos os microrganismos perigosos. “Estudos demonstram que cozinhar os alimentos a uma temperatura acima de 70°C garante um consumo mais seguro”, complementa Maria Cecília.

Se em casa esses cuidados são importantes, na produção diária e complexa de um restaurante o respeito aos procedimentos deve começar muito antes da preparação do alimento, desde a escolha do fornecedor até a armazenagem do produto. O cumprimento da legislação brasileira também deve ser observado para a garantir a segurança alimentar, orienta o chef e proprietário do restaurante Maialini, em Campinas, interior de São Paulo, Nicholas Callejas.

Ana Paula Palazi é jornalista (PUC-Campinas) e aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.

Erica Mariosa Moreira Carneiro é relações públicas (PUC-Campinas) e aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.

Sophia La Banca de Oliveira é formada em ciências farmacêuticas (UFPR), mestre em bioquímica (USP) e doutora em psicobiologia (Unifesp). É aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.