A
participação do conhecimento médico tradicional no sistema de saúde
indígena é cada vez menor. Entre os inúmeros fatores que podem
influenciar esse quadro destaca-se a falta de diálogo entre as ciências
médicas e os conhecimentos tradicionais. “O conhecimento produzido pela
medicina científica é excludente, pois é entendido como a verdade
absoluta”, analisa Maria Evanizia, gerente de planejamento estratégico
da Secretaria dos Povos Indígenas do Acre. A Secretaria aposta na
valorização da medicina indígena como forma de enfrentar os problemas
de saúde dos povos da região.
A
legitimidade dos saberes médicos de índios e profissionais de saúde
está em jogo nessa questão: “é muito complicado para um médico que
passa 10 anos em uma universidade querer respeitar um pajé, por
exemplo. Isso tem sido, de certa forma, um empecilho”, afirma Evanizia,
e continua, “eu acredito que por conta disso, algumas comunidades e
regiões têm se enfraquecido nos usos das práticas tradicionais, pois
algumas pessoas preferem usar uma pílula do que ir à floresta e colher
uma erva”. A medicina científica ganha ainda mais potência de verdade
quando pensada no contexto da globalização econômica e do
fortalecimento da indústria farmacêutica.
Evanizia
conta que os problemas relacionados à saúde indígena são bastante
discutidos. “No Acre somos 14 povos, cada um com uma realidade
diferente, cada centro indígena com uma característica própria. Somos
aproximadamente 15 mil indígenas só no estado”. Como uma integrante do
povo Toyanawa, Evanizia destaca que as políticas públicas de saúde
indígena do estado procuram trabalhar respeitando o conhecimento
científico e o tradicional. Uma aposta no diálogo entre esses
conhecimentos como forma de garantir a permanência das práticas
tradicionais entre as comunidades. A união entre cultura e ciência
poderia também minimizar a hierarquia que se estabelece entre esses
saberes. “Nós entendemos que ambos são conhecimentos e se
inter-relacionam, ou seja, o conhecimento científico depende do
tradicional e o tradicional do científico”.
O
Acre tem em sua história dados preocupantes. Em 2004, o estado
registrou o maior número de mortalidade infantil entre os índios.
Apenas o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Juruá
(AC) chegou a 115 mortes por mil nascidos vivos, enquanto no conjunto
da população brasileira, o índice de mortalidade infantil fica em torno
de 29 mortos em cada mil crianças nascidas vivas (Censo IBGE 2000).
A
Fundação Nacional de Saúde (Funasa), desde 1999, é responsável pela
atenção à saúde dos povos indígenas. Nesse sentido, Evanizia dispara
algumas críticas quanto à forma de gerenciamento dos recursos pela
Funasa. Ela explica que o programa de saúde usado pelos índios é o
Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da Funasa ter um recurso
específico para a saúde dos povos indígenas, o atendimento aos índios é
feito dentro do SUS. “Estamos sentindo um certo conflito, porque quando
foram escolhidos os agentes de saúde para fazerem a capacitação dos
agentes da comunidade, não foram levadas em consideração as estruturas
que existiam nas aldeias. O pajé era um médico da aldeia, assim como as
parteiras. Isso gerou um certo descontentamento dos pajés”, explica.
Para ela, a saída para esses problemas é fortalecer a cultura indígena,
desde o artesanato e a dança, até as práticas médicas tradicionais, e
reconhecê-la como produtora de saberes legítimos. (Leia mais na
reportagem Saúde: Índio quer controle social)
No Alto do Rio Negro
O
estudo de caso feito na região do Alto Rio Negro pelo pesquisador
Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), indica que
as mortes entre os índios naquela região podem estar relacionadas à
redução da transmissão de saberes médicos tradicionais entre eles. Em
sua opinião, a união entre o saber tradicional e o saber científico é
necessária e pode trazer benefícios para profissionais da saúde e povos
indígenas. “Após todos esses anos de forte presença missionária,
pode-se perceber que a medicina indígena não foi de todo destruída ou
abandonada. Na realidade, convive até certo ponto pacificamente, e
talvez, diríamos, complementa o sistema médico ocidental, isto é, o
oficial e biomédico com os sistemas indígenas de cura”.
Athias,
da Associação Saúde Sem Limites, informa que existe uma procura
crescente dos remédios de farmácia (como medicação analgésica e para
verminoses) entre os indígenas. A medicação mais procurada é a dipirona
e o AAS. “Muitos dizem que preferem tomar os remédios dos brancos para
passar a dor, do que utilizar o que normalmente usam, uma planta
conhecida como pinu-pinu, um tipo de urtiga, que passando no corpo,
sente-se um alivio das dores”.
A Funasa realizará entre os dias 22 a 24 de novembro (2006), em Brasília-DF, a 1° Mostra Nacional de Saúde Indígena.
O objetivo, informa o site da fundação, é colocar em prática as
propostas que surgiram da 4° Conferência Nacional de Saúde Indígena,
que aconteceu em Rio Quente-GO, em março.
Para saber mais:
Medicina tradicional ainda tem pouco espaço nas políticas de saúde indígena
Saúde indígena enfrenta entraves políticos
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