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Editorial
O mistério da impiedade¹
Por Carlos Vogt
10/06/2014
Assisti, há alguns anos atrás, a uma apresentação de Billy Budd, de Benjamin Britten, na Ópera Nacional de Paris – Bastille, numa belíssima encenação de Francesca Zambello e com um cenário deslumbrante de simplicidade, em que a iluminação tem um papel comovente. Não conhecia a versão lírica do romance de Herman Melville, que li há alguns anos, e pelo qual me interessei profundamente, tanto quanto minha geração, também por outros romances em que o tema da violência, sob a forma do binômio crime e castigo, é preponderante. Entre outros, Dostoiéwski, Melville e Camus, com O estrangeiro, em particular, compõem marcos de referência consagrados no imaginário ético e estético de diferentes épocas e estilos.

Quando o autor de Moby Dick morreu, em 1891, este breve romance histórico – Billy Budd, marinheiro – estava, depois de incessantes revisões, praticamente pronto, embora só viesse a ser publicado anos mais tarde, em 1924, e tivesse tido como ponto de partida um poema de 32 versos de autoria do próprio Melville a respeito do mesmo tema que depois será desenvolvido em prosa.

Como em outras obras de Melville, trata-se do embate do bem e do mal representado nas alegorias da nau do Estado e da nau da individualidade mas apresentado de forma viva e tocante pela densidade humana dos personagens e pelo peso divino de suas contradições e conflitos.

O enredo do romance tem origem num fato histórico ocorrido em 1842, quando a bordo do navio de guerra americano Somers, três homens tentam organizar um motim e são julgados por um conselho formado pelos oficiais que os condena à forca e à execução imediata. Em terra, os oficiais são julgados por homicídio e absolvidos, embora estigmatizados para sempre. Entre esses oficiais, um primo-irmão de Melville, Guert Gansenvoort, para quem a narrativa de Billy Budd é também uma forma de reabilitação ensejada pelo romancista.

Em 1846, um jovem marujo da marinha americana, Samuel Jackson, é enforcado por ter batido em um oficial que havia ordenado que seus sapatos fossem jogados no mar porque haviam sido encontrados onde não deveriam estar.

Depois do fracasso de público de Moby Dick e de vinte anos de silêncio, em 1888, já com 69 anos, Melville começa a escrever Billy Budd.

A história é simples: Billy Budd é jovem e simpático, bonito, cheio de sincera devoção à vida e aos valores morais consagrados na época.

Levado a bordo do navio britânico Bellipotent tem, desde logo, em oposição e adversidade à sua "dignidade natural", a inteligência, esperteza, e o interesse apaixonado da "depravação natural" do contramestre Claggart.

O comandante do navio, capitão Edward Fairfax Vere, correto, disciplinado e disciplinador viverá pelo resto de sua vida a tragédia de ter permitido e autorizado a execução de Billy Budd por ter este golpeado e morto o contramestre Claggart que o acusa, diante do capitão, de incitação ao motim.

Billy Budd, perfeito, simpático, divino mesmo, tem, contudo, um forte traço de humanidade: é gago. Toda vez que se vê envolvido em forte emoção não consegue falar. Quando é acusado por quem tinha como amigo, tamanho é seu acesso de indignação que, não conseguindo falar, explode num gesto de repulsa e golpeia Claggart, matando-o. É julgado por três oficiais convocados para tanto pelo próprio capitão Vere que funciona, no julgamento, como testemunha que, embora compadecido pela compreensão das razões da atitude do marinheiro, procede formalmente à narrativa oficial que o levará à condenação e à morte.

Billy Budd , a ópera, foi encomendada a Benjamin Britten para o Festival of Britain em 1951 e o livreto, baseado na novela de Melville, foi escrito em colaboração com E. M. Forster e Eric Crozier.

Ópera moderna, rara, por não comportar papéis femininos, sua estreia deu-se no Convent Garden de Londres no dia primeiro de dezembro daquele mesmo ano, numa versão em quatro atos. Treze anos mais tarde, uma segunda versão, mais próxima ainda da novela de Melville foi encenada no mesmo teatro.

Foi a essa versão em dois atos, mas ainda assim com quase três horas de duração, à que assisti na Opéra Bastille.

Aqui o navio mercante de onde vem Billy Budd chama-se Rights of man (Os direitos do homem), numa clara alusão alegórica aos ventos revolucionários franceses que dão calafrios nos britânicos; o navio de guerra para onde vai, com mais dois companheiros, chama-se agora Indomitable (O indômito); ter vindo de “Os direitos do homem” constituirá o fundo dos argumentos de amotinação com que o contramestre Claggart o acusará para o comandante, o capitão "Starry Vere" (Vere, o magnífico), como é chamado pela tripulação.

Culto, leitor de Plutarco, sensível, correto, corajoso, justo e íntegro, antes de ser enforcado, tanto na novela, como na ópera, Billy Budd o abençoa: "God bless Starry Vere" (Deus abençoe Vere, o magnífico). Mas nem o perdão sincero do condenado, exaltando na hora da morte o juiz de seu malogrado destino, aliviará a consciência trágica do capitão sem dela eliminar a dúvida moral sobre o acerto ou o desacerto de uma decisão que custou a vida de um jovem simpático, leal e de futuro promissor. O perdão exaltado de Billy Budd, ao contrário de aliviar suas penas, acentua o seu remorso, fazendo crescer suas dúvidas.

Configura-se, desse modo, um dos dilemas do livro de Melville e da ópera de Britten: os limites e os embates entre a certeza e a ignorância moral e aquilo que por duas vezes aparece em Billy Budd pelo uso da expressão bíblica "o mistério da impiedade", a qual contempla o esforço malogrado de humanidade tanto em Billy como em Claggart.

Não conhecemos nosso destino e nem as circunstâncias interiores e exteriores que o levarão ao sucesso ou ao malogro de nossas intenções de vida. O mal não necessita de nenhuma intrepidez de caráter: multiplica-se como sombra sem fonte de luz definida. O bem requer um esforço de sociedade e uma disposição de vontade individual tais que sua realização é sempre um ato de coragem, como, aliás, a verdadeira alegria.

A distinção entre um e outro é objeto da ética e de seus finalismos morais.

A violência é a loucura do mal e a sua banalidade, para lembrarmos Hannah Arendt, pode ser mais danosa do que todos os maus instintos juntos.

Não podemos perder nossa capacidade de indignação.

A indigência ética – para lembrar agora uma expressão de Heidegger – de nossa época é o grande desafio de nossa sociedade. Buscar arrancá-la de um relativismo absoluto no qual tudo se compreende e tudo se perdoa, sem deixá-la resvalar pela pirambeira metafísica dos universalismos místicos e racionalistas, em que tudo se explica e nada se entende, é a tarefa maior que devemos nos propor realizar.

Estudar, sob os seus mais diferentes aspectos, os mecanismos da violência é, sem dúvida, um passo importante para o seu entendimento, mas não necessariamente para o seu perdão. Um pouco de Nietzsche não fará mal a ninguém!

Notas:

1-Como a nossa ComCiência volta ao tema da intolerência e da violência, julguei oportuno reproduzir agora o texto que escrevi em 2011 para o nº 26 da revista e que foi também integrado, com pequenas alterações, ao conjunto de artigos e ensaios que compõe o livro A utilidade do conhecimento, a ser publicado pela editora Perspectiva. É esta versão que vai aqui reproduzida.