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Reportagem
Os percalços do Nobel: deslizes e polêmicas do grande prêmio
Por Ana Paula Zaguetto e Tatiana Venancio
10/12/2014
Apesar da crença de que o Prêmio Nobel é a coroação das grandes descobertas da ciência, a história da premiação é cercada de críticas. No rol dos dissabores estão apontamentos como sexismo e eurocentrismo; pesquisas premiadas que sofreram resistência até obter reconhecimento; descobertas que foram simplesmente deixadas de fora enquanto outras, que receberam o prêmio, mostraram-se, com o tempo, não merecedoras dele.

Nessa última categoria está o notório caso do neurologista português Antônio Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, que ganhou o Nobel em Medicina de 1949 pelo desenvolvimento da lobotomia, procedimento que deixa graves sequelas nos pacientes. Em 2005, familiares de pacientes submetidos ao método criaram uma campanha para que fosse revogado o Nobel de Egas Moniz, o que foi negado.

As polêmicas que envolvem os ganhadores do prêmio não estão somente em suas pesquisas, mas também em suas declarações de cunho pessoal. O laureado James Watson, um dos responsáveis por revelar a estrutura de dupla hélice do DNA e sua função, afirmou, em 2007, que brancos são mais inteligentes que negros.  A rejeição que sofreu foi tanta que, em novembro, Watson anunciou que iria vender sua medalha para levantar dinheiro, e como forma de retornar à vida pública. No último dia 3, a medalha foi arrematada por mais de US$ 4 milhões em um leilão.

A 41ª cadeira


A história do Nobel também é feita de não-vencedores. Harriet Zuckerman, socióloga e professora emérita da Universidade de Columbia, especializada em sociologia da ciência, escreveu no artigo “The proliferation of prizes: Nobel complements and Nobel surrogates in the reward system of science”, que o prêmio “está longe de ser uma representação adequada dos trabalhos verdadeiramente significantes na ciência moderna”, o que resulta em uma lista de premiados que também “está longe de ser uma representação adequada dos grandes colaboradores da ciência”.

A socióloga aponta que as regras que governam o Nobel criaram os “ocupantes da quadragésima-primeira cadeira” (forty-first chair occupants), expressão que se refere a pesquisadores considerados merecedores do prêmio mas que não foram laureados. A 41ª é uma referência à Academia Francesa, que possui quarenta cadeiras para os imortais eleitos. Uma dessas regras é limitar a apenas três pessoas por prêmio, o que faz com que nem todos os colaboradores sejam premiados. Essa regra também faz com que fiquem de fora trabalhos que têm sua importância reconhecida, mas com “colaboradores independentes demais”.

Outra restrição é a de que o prêmio vai para “descobertas”, “melhorias” e “invenções”, excluindo pesquisas teóricas sem confirmação empírica. Os temas controversos também são preteridos, devido ao critério de premiar “trabalhos recentes”. Como pesquisas sobre esses temas levam tempo para serem comprovadas e aceitas, a esperança é que a regra de trabalho recente não seja aplicada, e que o cientista “tenha uma vida longa” (pois não são concedidos prêmios póstumos).

Podem-se encontrar diversas listas sobre as grandes omissões do Nobel, como as da revista Scientific American e da National Geographic. Nelas, estão casos como Dimitri Mendeleev, que criou a primeira versão da tabela periódica, e Josiah Gibbs, que estabeleceu as bases da termodinâmica química e da mecânica estatística.

Mendeleev foi indicado duas vezes, em 1905 e 1906, mas não levou a honraria. O historiador Burton Feldman, no livro The Nobel prize: a history of genius, controversy and prestige, conta que o motivo seria um membro do comitê considerar o trabalho muito antigo (a tabela periódica foi publicada em 1869). Já a barreira para Gibbs, que faleceu em 1903, seria a falta de visibilidade de seu trabalho, publicado em periódicos obscuros dos Estados Unidos. No entanto, três renomados químicos europeus conheciam seu trabalho: van`t Hoff, Arrhenius e Ostwald, que inclusive o traduziu para o alemão. Os três poderiam ter indicado Gibbs ao prêmio, mas o primeiro Nobel de Química acabou indo para van`t Hoff, que desenvolveu suas pesquisas na mesma área de Gibbs, embora com menor profundidade.

Outro caso é o da física Jocelyn Bell Burnell, que durante o doutorado observou pela primeira vez os pulsares, estrelas de nêutrons extremamente pequenas e densas. Ela publicou os resultados na Nature em 1968. Em 1974, seu orientador, Antony Hewish, recebeu o Nobel por seu papel na descoberta dos pulsares, juntamente com Martin Ryle. Burnell ficou de fora.

Nenhum Nobel para o Brasil

No site oficial do prêmio, o Brasil figura entre os países que já foram agraciados. O vencedor é Peter Medawar, Nobel em Medicina em 1960, nascido no país mas naturalizado na Inglaterra, onde desenvolveu suas pesquisas. Muito se especula sobre os brasileiros “quase” laureados, nomes cogitados para receber o prêmio, mas pouco se sabe ao certo os porquês da não premiação.

Grandes nomes como Carlos Chagas, pela descrição da doença de Chagas, Cesar Lattes, pela comprovação da descoberta da partícula subatômica méson pi, Adolfo Lutz, pelo estudo sobre algumas doenças tropicais, Jorge Amado pelas obras literárias e até o ex-presidente Lula, pelos avanços na redução da pobreza, já foram indicados.

Um dos casos mais discutidos – e sem conclusões – é o do médico Carlos Chagas, sem dúvida, um dos maiores marcos na história da medicina no Brasil e no mundo. Ele identificou agente etiológico, ciclo reprodutivo, inseto responsável pela transmissão da doença, modo de transmissão e sintomas. Após publicações na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Chagas recebeu duas indicações oficiais ao Nobel, em 1913 e 1921. Em 1913, Charles Richet levou o prêmio pela descoberta da reação anafilática, em que um organismo reage à injeção na corrente sanguínea de uma determinada proteína. E em 1921 não houve ganhador, cujo motivo nunca foi esclarecido.

Para José Eymard Pittella, médico, professor titular aposentado do Departamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFMG, a não premiação de brasileiros até hoje está atrelada às ligações dos membros do Instituto Karolinska e do Comitê Nobel com a comunidade científica internacional, composta, em sua maioria, por cientistas europeus e norte-americanos, que possuem grande influência nas escolhas de quem indica, dos indicados e, consequentemente, dos premiados. “A abertura, em 1974, dos arquivos do Prêmio Nobel na Academia Real de Ciências Sueca e a divulgação pela internet, a partir de 1995, do banco de dados de indicadores e indicados ao prêmio, permitiu que documentos datados do período 1901-1963 fossem analisados – exceto os referentes à premiação em Fisiologia ou Medicina, que cobre o período 1901-1953 – evidenciando essas ligações e escolhas” analisa.

Por que não?

Segundo Pittella, vários fatores podem explicar o porquê de cientistas brasileiros não terem sido premiados. “Na maior parte do período coberto desde a criação do Nobel, em 1901, a produção científica brasileira foi pequena, com pouca visibilidade internacional. Nas últimas décadas, ela tem crescido em quantidade, saltando de cerca de 3 mil artigos anuais, na década de 1980, para quase 50 mil em 2011, ocupando nesse ano o 13º lugar entre os países que mais produziram artigos científicos. Mas o aumento da quantidade não tem sido acompanhado pelo aumento da qualidade, medida pelo fator de impacto das publicações, que representa o número de vezes em que cada artigo foi citado por outros autores”.

Além disso, é importante ressaltar que os três maiores vencedores do prêmio em todas as categorias, Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, têm grande investimento em pesquisa científica. Nesse sentido, Pittella aponta outros fatores importantes, como relação entre número de artigos publicados, país-sede das revistas científicas mais prestigiadas e relevantes, condição econômica do país e investimento nacional em pesquisa. “No período 1995-2002, do total de 107.557 artigos publicados nas 50 mais importantes revistas biomédicas, os Estados Unidos contribuíram com 60%, seguidos pelos países da Europa ocidental (28%). Os Estados Unidos lideram também a publicação das revistas biomédicas mais prestigiadas, sendo a sede de publicação de 40% das revistas indexadas na base de dados Medline Express” explica.

“Pelo fato de não termos acesso aos arquivos do período mais recente, não poderemos saber se tem havido mudança na ligação dos membros do Comitê Nobel com a comunidade científica internacional, que poderia influenciar a escolha de indicadores e indicados. Podemos apenas supor que o grande crescimento da produção científica na China e, em menor grau, em países como a Índia, Coreia do Sul e Brasil, paralelamente ao aumento da qualidade da pesquisa e maior visibilidade dos cientistas desses países, aumenta a possibilidade de reconhecimento por parte da comunidade científica, ampliando, assim, a chance de indicação e premiação no futuro”, conclui o professor.

Enfrentando a rejeição


No entanto, o desafio para alcançar um Nobel pode começar na hora de publicar um artigo ou mesmo realizar a pesquisa. No artigo “Rejecting Nobel class articles and resisting Nobel class discoveries”, Juan Miguel Campanario, físico da Universidade de Alcalá, de Madri, discute 27 casos em que pesquisadores posteriormente premiados encontraram resistência no meio científico em relação às suas descobertas e 36 casos em que artigos sobre descobertas vencedoras do prêmio foram rejeitadas por periódicos. “Nós podemos distinguir alguns padrões comuns de resistência a descobertas científicas: artigos são rejeitados, colegas cientistas ignoram as descobertas, artigos não são citados, ou comentários são escritos contra os novos achados. Em outros casos, autores de artigos muito inovadores são abertamente criticados e frequentemente encontram obstáculos por parte de seus pares”, escreve Campanario.

Uma das revistas mais respeitadas no meio científico, a Nature, figura diversas vezes no levantamento realizado pelo físico espanhol. Em outubro de 2003, a revista publicou o editorial “Coping with peer rejection”, algo como “lidando com a rejeição pelos pares”, cujo subtítulo resume a questão: “relatos de rejeição de descobertas ganhadoras do Nobel destacam o conservadorismo na ciência. Apesar de maus julgamentos históricos, os editores dos periódicos podem ajudar, mas acima de tudo, visionários terão que ter absoluta resistência”. O texto faz um mea culpa das rejeições, inclusive citando o artigo de Campanario, dizendo que nem todos os casos apontados “são totalmente embaraçosos para nós”. Mas reconhece que há “gafes indiscutíveis em nossa história. Estas incluem a radiação de Cerenkov, o méson de Hideki Yukawa, o trabalho sobre fotossíntese de Johann Deisenhofer, Robert Huber e Hartmut Michel, e a rejeição inicial (mas posterior aceitação) da radiação de buracos negros de Stephen Hawking”.

Dan Shechtman, químico israelense ganhador do Nobel de 2011 pela descoberta dos quasicristais, é um exemplo das resistências sofridas por pesquisas inovadoras no meio científico. Shechtman observou pela primeira vez os quasicristais em 1982, que, diferente dos cristais, não tem seus átomos organizados em um padrão repetitivo. O químico foi criticado pelo chefe de seu laboratório, que o convidou a se retirar do grupo, alegando que o quasicristal ia contra tudo que já tinha sido publicado, e até por um ganhador do Nobel, Linus Pauling, que disse não haver quasicristais mas sim “quasicientistas”. Em 1992, a existência dos quasicristais foi oficialmente reconhecida pela União Internacional de Cristalografia.

“Tenacidade”, diz Shechtman em uma entrevista ao canal do Youtube ChemistryWordlUK, “tenacidade significa: se você descobre algo interessante e diferente, e você checou os resultados repetidas vezes e você sabe que está certo, não abra mão. Seja como um cão rottweiler, você morde, você não abre mão. Acredite em seus dados, tente convencer as outras pessoas. Se elas lhe falarem ‘olhe nos livros, é impossível’, isso não é suficiente. Descobertas mudam os livros, certo?”. E eventualmente ganham um Nobel.