REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO


Editorial
O cerrado e os frutos da infância*
Por Carlos Vogt
10/12/2016

Diz-se que o Triângulo Mineiro é o Portal do Cerrado. Como nasci em Sales Oliveira, nas franjas do rio Grande, perto das Minas Gerais, acho que posso dizer que cresci na varanda do Cerrado que por ali já se estendia pelo Campo da Coruja, como quem fosse para Orlândia, São Joaquim da Barra e Guará, pela Fazenda Três Barras, pela mata do Taboão, na direção de Franca, passando por Batatais.

Na Coruja, havia um campo onde a meninada jogava futebol e ali, no meio do Cerrado, assisti pela primeira vez ao pouso de um teco-teco que, diziam, estava com pane de combustível e precisava urgentemente aterrissar para evitar o pior e para abastecer. O piloto, quando o aeroplano parou, desceu da aeronave para subir no imaginário do pessoal que se aglomerava para acompanhar o evento.

Vestia-se como um piloto que só se via em filmes exibidos no Cine Santa Rita: polainas marrons, calças claras, casaco de couro da cor das polainas, casquete acompanhando o material e a cor dos dois outros apetrechos e os indefectíveis óculos de proteção puxados sobre a testa. Foi desse modo que o Cerrado se descortinou em voo para mim, como as aves que têm nele seu habitat natural, como O gavião e a flecha, de Jacques Tourner, filme com Burt Lancaster que, não sei por que cargas-d’água, por que caminhos da imaginação, também se aninhou no porão das lembranças confusas, mas precisas.

No caminho da Fazenda Três Barras, aonde, em bando de moleques, íamos nadar na corredeira de pedras de um ribeirão ligeiro, íamos colhendo, comendo e chupando, onde encontrávamos, gabiroba, mamica-de-cadela, marolo, marmelo,  coquinho, mangaba, goiaba, jatobá, carambola, caju, manga. Pela estrada poeirenta, apanhávamos nas beiradas, dos pés que se debruçavam sobre elas, dos barrancos, as frutas-de-lobo verdes, com as quais simulávamos um jogo de bochas comprido e desordenado e que era um princípio de organização do tempo para encurtar distâncias: um passatempo, um tempo passando, passado no tempo. As frutas-de-lobo caíam maduras sob as lobeiras e, como sabíamos, por ouvir contar, que os lobos-guarás delas se alimentavam – por isso o nome –, aguçávamos a curiosidade na esperança de ver um deles aparecer em busca das frutas. Nunca os vimos, embora muitos houvesse na região, os quais eram caçados e mortos pela predação humana que, na época, não tinha ainda muita consciência da devastação que promovia e cujos efeitos sistêmicos não conseguia ver nem avaliar. É claro que não se sabia também do potencial medicamentoso da fruta-de-lobo, revelado por pesquisas científicas, que, para além do uso caseiro, pode ser utilizada na produção de esteroides que constituem matéria-prima de diversos medicamentos como antibióticos, anticoncepcionais e anti-inflamatórios. Tampouco sabíamos que, em busca do ouro no centro-oeste do país no século XVIII, os portugueses, que, com dificuldade para encontrar marmelo de que fizessem o doce apetitoso, inventaram uma “marmelada” de fruta-de-lobo para matar as saudades da guloseima. Talvez essa seja a origem do sentido figurado do termo que designa arranjo e conluio entre adversários que fingem disputar uma contenda sobre a qual já se entenderam: é doce, mas não é o doce que era mais doce nem é o doce de batata-doce. Enquanto isso, íamos nadar na Fazenda Três Barras, jogando fru-tas-de-lobo da satisfação do presente ao acaso do futuro, no mesmo caminho que, ao se aproximar dezembro de cada ano, percorria com meu pai para recolher musgo no Taboão e preparar os campos de peregrinação do presépio montado na casa da selaria, onde moravam meus tios e que havia sido a casa de meus avós alsacianos. Eram campos por onde transitavam outros animais, outros personagens e onde reinava outro bucolismo artificial e alegórico, mas feito também do Cerrado, no musgo que envolvia de pastagens a manjedoura, Jesus menino, os reis magos, São José, os bois, as vacas, os bezerros, os cervos, tudo em celuloide e todos com a cabeça móvel por um artifício que enganchava os pescoços aos corpos de cada animal. O fundo do quintal de minha casa fazia limite com a Fazenda Boa Sorte; logo passando o sítio de “seu” Minucci, começava, por efeito de erosão contínua, o que chamávamos de Buracão, onde, no fundo, corria um riozinho que, em determinados trechos, produzia quedas-d’água e bacias nas quais, meninos, íamos nadar acompanhados sempre das preocupações dos pais e, em particular, dos receios das mães. Por lá apareciam, às vezes, pequenos jacarés, pacas, tatus, cutias não. Mas o que distinguia o Buracão, ao menos na lembrança que agora tenho dele, eram as frutinhas de veludo em suas ribanceiras e um magnífico pé de jenipapo sobraçando o vazio da erosão. Como a fruta era de difícil acesso, grande era sua disputa e forte acabou sendo sua inscrição na memória esse Cerrado da infância.

O Cerrado não era ainda o Sertão, mas estava em tudo, em toda parte: nos marolos que achávamos e comíamos, saboreando os gomos amarelos de cheiro forte, muito doces, de sabor cortante; nos que trazíamos para casa e viravam licor para rivalizar com o de jabuticaba feitos ambos pela habilidade de grande cozinheira de minha mãe. Objetiva e subjetivamente, nossas vidas estão ligadas ao Cerrado e, de uma forma ou de outra, aos demais biomas identificados. Na Fazenda Três Barras, no Campo da Coruja, na fruta-de-lobo, no lobo-guará, no jenipapo, no licor de marolo, na gabiroba, no jatobá, na goiaba, no voo do gavião, em tudo que a natureza dá e o homem transforma e na transformação que a própria natureza faz de si e também do homem, o Cerrado é parte essencial do que fomos, do que somos e do que poderemos ser na afirmação inadiável de que a vida é um sistema de diferenças funcionando em harmonia.

Este texto constitui a parte II do capítulo “Álbum de retalhos”, do livro de minha autoria A utilidade do conhecimento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015, p. 149-178.