REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
ONGs criam uma trincheira de luta contra a doença
Por Dilene Raimundo do Nascimento
10/05/2006

A Aids, pela forma como foi enunciada quando de seu surgimento no início da década de 1980, tornou-se sentença de morte para os homossexuais masculinos, para os usuários de drogas injetáveis e para os hemofílicos.

Os dois signos que identificaram a Aids - a transmissibilidade e a incurabilidade -, ao mesmo tempo em que definiam os limites do conhecimento médico-científico, contribuíram para que a experiência coletiva da doença fosse marcada pela estigmatização do doente, pois este como portador do agente infeccioso, passava a corporificar o próprio mal e consequentemente a morte.

Contudo, em resposta ao medo e atitudes preconceituosas e estigmatizantes em relação aos soropositivos para o HIV e doentes de Aids, organizaram-se grupos sociais comprometidos com o combate a essa doença e às respectivas formas de sua percepção. Em quase todos os países do mundo criaram-se organizações não-governamentais (ONGs) para lidar com a epidemia. As primeiras ONGs a serem criadas respondiam às necessidades de informação sobre a doença e logo originaram um movimento mundial que buscou desestigmatizar aqueles afetados pela doença, desconstruindo a identificação do doente com o fenômeno patológico.

No Brasil, quando a Aids surge em cena pública, no início dos anos 1980, a sociedade experimentava a emergência de movimentos sociais autônomos, herdeiros dos pequenos grupos clandestinos que vinham atuando desde o início da ditadura militar. O processo de construção democrática instaurado no Brasil, nessa década de 1980, levou as ONGs então existentes a se inserirem no projeto político de criação de uma nação democrática. A questão da cidadania e a estruturação de uma subjetividade apta ao exercício de direitos coletivos eram os principais itens de pauta das ONGs.

No caso das ONGs/Aids, o processo de construção da cidadania adquiriu uma característica especial em decorrência da própria origem social daqueles que primeiro foram diagnosticados soropositivos no país, em sua maioria intelectuais e artistas da classe média e, quase todos, com um ideal libertário de esquerda incorporado em sua história pessoal. Nessa medida, as ONGs que se organizaram no campo da Aids não eram apenas entidades de apoio aos soropositivos para o HIV, mas a trincheira avançada de reivindicações de direitos, de denúncia de preconceitos e de difusão de um exercício de cidadania numa sociedade onde essas atitudes eram há algumas décadas reprimidas.

Assim, os próprios indivíduos atingidos diretamente pelo HIV/Aids levantaram-se em defesa de seus direitos, na intenção de “fazer do fato de que todos somos mortais, uma garantia de que teremos todos uma vida plena, no gozo de todos os nossos direitos civis”. Nessa perspectiva ideológica, as ONGs/Aids reivindicaram o direito à saúde, que implica informação sobre a doença, educação para a prevenção do HIV/Aids, acesso aos serviços de saúde e assistência médico-hospitalar - tudo isto como expressão do exercício pleno da cidadania.

A Abia Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids e o Grupo pela Vidda são dois grandes exemplos de grupos comprometidos com a discussão da Aids. ONGs constituídas por segmentos da sociedade civil, distintas nas suas linhas de atuação, não foram as primeiras a serem criadas no Brasil, mas, no Rio de Janeiro, foram as de maior visibilidade pública desde sua fundação.

Criada no Rio de Janeiro em 1986, sob a liderança de Herbert de Souza, a Abia aglutinou cientistas, intelectuais de diversas áreas e militantes de vários grupos comunitários que, por entenderem a Aids como uma doença que envolve não somente a ciência médica mas a sociedade como um todo, colocaram-se como meta tanto o monitoramento das políticas públicas relacionadas ao HIV/Aids quanto a produção e disseminação de informação atualizada sobre a doença.

Em 1989, foi criado também no Rio de Janeiro, com o objetivo de lutar pela valorização, integração e dignidade do doente de Aids, o Grupo pela Vidda. Seu fundador, o jornalista Herbert Daniel, ele próprio contaminado com o HIV pôde experimentar o peso do estigma associado à doença.

Herbert de Souza, na Abia, e Herbert Daniel, no Grupo pela Vidda, trouxeram para a luta contra a Aids suas tradições oposicionistas, cunhadas numa militância política de esquerda, e acreditavam que a exclusão e a vulnerabilidade sociais eram facilitadores e potencializadores da infecção pelo HIV.

Com estratégias distintas - a Abia procurou agregar pessoas expressivas da sociedade brasileira, de forma que o seu discurso e suas ações ecoassem socialmente; o Grupo pela Vidda teve como objetivo dar voz aos portadores do HIV e doentes de Aids, retirando-os da posição passiva e vitimizada comum na época -, ambas caracterizaram-se num primeiro momento por um intenso ativismo de oposição ao Estado.

Sem ter a pretensão de assumir o lugar do Estado na responsabilidade de estabelecer uma política de controle da Aids que garantisse aos soropositivos e doentes o atendimento médico-hospitalar em todos os níveis de desenvolvimento da doença, um dos principais alvos das denúncias das ONGs era exatamente o Estado, que, além de não promover uma política mais efetiva de controle da doença, produzia campanhas de prevenção carregadas de preconceitos.

À medida que o Estado foi assumindo a responsabilidade com a epidemia de Aids no país, numa interlocução com a sociedade civil organizada em torno da questão, com ações concretas de controle da doença, seja a partir da promulgação de leis no sentido de viabilizar o enfrentamento da epidemia seja com o investimento de altos recursos financeiros num programa nacional de controle da doença, as ONGs, sem abandonar a posição crítica em relação às políticas governamentais de controle da Aids, também mudaram a estratégia, substituindo o confronto com o Estado por uma ação propositiva e co-responsável com o Ministério da Saúde.

A par de uma pressão internacional no sentido de minimizar mundialmente a incidência da Aids, essas ONGs/Aids também exerceram forte pressão para que o Estado assumisse o compromisso de combate ao HIV/Aids. E esse compromisso foi crescente: por exemplo, a partir de 1996, o governo distribui gratuitamente os remédios necessários ao tratamento da Aids. Além disso, sem dúvida, a organização de pessoas comprometidas, em diversos graus, com o problema da Aids significou avanços quanto a uma melhor assimilação, por parte da sociedade, da idéia de convivência com a doença.

Dilene Raimundo do Nascimento é pesquisadora e docente no Programa de História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: dilene@coc.fiocruz.br.