REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Fazendo história popular através da leitura dos viajantes
Por José Carlos Barreiro
10/06/2006

Provavelmente, caro leitor, você já experimentou a sensação de se divertir, mas pouco conhecer ou descobrir com passeios promovidos por pacotes de viagem, tão à moda da próspera atividade turística contemporânea. Isto se deve à perversão do significado original da viagem, vinculada à aquisição de conhecimento e à formação científica e cultural dos indivíduos. Neste sentido, todos os esforços são válidos para a reversão da tendência atual de desconsideração de seu sentido maior. Em sua significação primeira, são bastante ilustrativas certas experiências em períodos anteriores da história, em que a realização de uma viagem, às vezes a lugares remotos e de costumes desconhecidos, ampliava enormemente o universo cultural dos viajantes. É este, por exemplo, o caso do pensador francês Montaigne (1533-1592) que para realizar o desejo de toda uma vida, fez sua primeira viagem ao exterior percorrendo 5000 quilômetros em 17 meses. Montado a cavalo, passou por Roma, pela Alemanha, Áustria e Suíça, juntamente com quatro jovens da nobreza, incluindo seu irmão e doze servos. A viagem ajudou-o a entender que povos e modos de vida diferentes não eram necessariamente piores ou melhores entre si, mas simplesmente diferentes.

Mas essa visão pioneira sobre a diversidade entre povos e culturas nem sempre predominou entre os viajantes da época. Muitas vezes a necessidade de conhecimento aliava-se às pretensões de conquista e dominação de povos. As fantásticas viagens do genovês Cristóvão Colombo (1451-1506), dos portugueses Vasco da Gama (1460-1524) e Afonso Albuquerque (1485-1547) e do espanhol Hernando Cortez (1460-1521) estiveram muito associadas a esses objetivos. A partir da ousadia desses navegadores, as expedições científicas e “civilizadoras” multiplicaram-se por todo o mundo.

Sob vários aspectos o Brasil, que recebeu viajantes estrangeiros desde o século XVI, teve muitas vezes sua identidade cultural obscurecida pelo que eles escreviam e divulgavam, sobretudo, no continente europeu. Foram muitas as visitas dessa natureza recebidas pelo Brasil, facilitadas e intensificadas, a partir de inícios do século XIX pela transferência da corte portuguesa para o Brasil e pela abertura comercial proveniente da queda do monopólio colonial. Alguns desses viajantes eram comerciantes, atraídos pelas possibilidades de lucros como a nova situação do Brasil. Outros eram cientistas ou artistas, apoiados pelo próprio rei D. João VI.

Particularmente dignas de interesse são as descrições que fizeram sobre o conjunto de práticas, ritos, relações de parentesco, costumes, crenças e sociabilidades das populações pobres mestiças, indígenas e negras das várias regiões brasileiras por onde passavam. Porem, muitas vezes em tais narrativas encontra-se uma das formas mais incisivas de se promover a diluição da memória histórica da cultura das classes subalternas. De devoção coletiva de um povo, as crenças e rituais populares que aqui encontravam eram em suas descrições transformadas em coisas para serem vistas e consumidas como mero entretenimento. Não raro, a partir de seu olhar etnocentrista, tratavam o tema com zombaria, desconsiderando o valor e a importância daquelas manifestações.

Ainda assim os relatos de viajantes constituem-se em fontes históricas fundamentais para o conhecimento da cultura, das tradições e da resistência em relação ao modo violento com que a população era tratada nos primórdios da formação do Estado brasileiro. É através do entendimento das dimensões histórico-antropológicas dessas tradições que podemos perceber as diversas formas através das quais o povo se transformava às vezes em co-participante decisivo da nova construção política que se anunciava em nossa sociedade desde fins do século XVIII.

Tais tradições manifestavam-se, dentre outras formas, através de rituais, cujas origens eram de dimensões atlânticas, com contribuições culturais de africanos, indígenas, europeus, que acabaram por ganhar uma conformação própria na Colônia, e depois Estado brasileiro. Este é o caso do ritual da malhação do Judas, relatado por Debret, viajante e artista que veio ao Brasil em 1816, acompanhado da missão francesa. Debret recolhe detalhes preciosos desse ritual caracterizado por componentes culturais e religiosos mais especificamente portugueses. O ritual era encenado com efeito teatral extraordinário, animado por um grupo bastante agitado e barulhento de pessoas, entremeadas por turbilhões de fumaças e petardos detonados. Dois bonecos compunham o cenário central, um representando Judas e outro o Diabo, que servia de carrasco. Sob o ponto de vista de sua cacofonia rude, a Malhação do Judas guardava similaridades com as rough music (expressão de difícil tradução, mas que se referia a música grosseira e barulhenta), tal como as estudou Thompson, normalmente empregadas para dirigir zombarias ou hostilidades contra indivíduos que desrespeitavam certas normas da comunidade, na Inglaterra do século XVIII. Desde a vinda da Corte portuguesa ao Brasil em 1808, as autoridades policiais tentavam impedir os ajuntamentos em torno de desses rituais, temerosas de protestos populares. Zombarias e hostilidades eram impingidas, sobretudo contra personagens importantes do governo, como foi o caso da malhação do Judas do sábado de Aleluia de 1831, em que vários deles foram submetidos a enforcamento ritualizado, dentre os quais o ministro intendente geral e o comandante das forças militares da polícia do Rio de Janeiro.

Um pouco antes, mas nessa mesma conjuntura tensa da crise do sistema colonial e da formação do Estado nacional, uma curiosa manifestação popular é realizada em Pernambuco, provavelmente testemunhada por viajantes e depois reproduzida por folcloristas. Às vésperas da partida de Dom Tomás, quando este deixava em 1798 o governo da capitania, ouvia-se, segundo os relatos, o povo cantar em versos jocosos, o fato de o governador ter sido “chifrado” por sua amante, Dona Brites. Os versos foram cantados quando Dom Tomás partira, e diziam que Dona Brites aparentava chorar de tristeza, mas disfarçadamente sorria. Tão logo Dom Tomás virara as costas ela já estava nos braços de Chiquinho da Ribeira, o arrematante de dízimos do mercado público do bairro Santo Antônio, que Dom Tomás construíra. Não se tem detalhes a respeito dessa zombaria hostil do povo contra seu governador, exceto a de que os versos eram cantados com música inventada pelos próprios manifestantes. Contudo, eram versos fáceis de serem memorizados pela multidão, o que na Inglaterra do mesmo período recebia a denominação de nominy. Não há também informações a respeito do acompanhamento instrumental rude e primitivo que normalmente compunha esse tipo de ritual. Sabendo, contudo, da forma draconiana com que o povo era tratado naquela província, é possível que essa zombaria fosse desencadeada de forma mais ou menos contida, para evitar reprimendas. De qualquer forma, tratava-se de uma manifestação popular que respondeu aos maus tratos e abusos desfechados pelo governador, ridicularizando-o no que havia de mais sagrado numa sociedade de tipo patriarcal: a traição e a infidelidade feminina. Estes eram temas sempre explorados quando a plebe inglesa queria hostilizar seu rei ou alguma outra autoridade importante, caracterizando também os rituais franceses denominados charivari, conforme mostram os estudos de Zemon Davis.

A rua era sempre o cenário principal utilizado pela população para ridicularizar personagens que se destacavam nas fileiras dos infames. O viajante inglês Luccock assistiu e registrou no Rio de Janeiro, rituais cuja estratégia era a de introduzir letra jocosa com o nome do indivíduo visado, em música conhecida, geralmente que se tocava pelas ruas, como por exemplo, a que acompanhava diariamente os militares no Rio de Janeiro, quando marchavam do quartel até o palácio. O ridículo era aplicado de forma tão eficiente que o indivíduo visado às vezes perdia o cargo e tinha que desaparecer. Uma dessas reprimendas foi aplicada em inícios do século XIX a um ilustre membro das elites, como castigo por liderar uma reforma do catolicismo no Brasil, que contrariava os interesses e as crenças populares.

Esses não constituem os únicos exemplos de rituais de protestos que podem ser encontrados na história das classes subalternas e sua co-participação na formação do Estado e da nação no Brasil. Nem mesmo poderíamos dizer que se trata de manifestações desconectadas umas das outras. É plausível concebê-las como parte de uma luta popular contínua contra os desmandos cometidos pelas autoridades contra os pobres da Colônia e contra a forma excludente com que dos acordos entre as elites ia se desenhando o retrato conservador da Independência no Brasil.


José Carlos Barreiro é professor do Departamento de História da Unesp, campus de Assis.


Bibliografia


BARREIRO, J. C. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo, Editora Unesp, 2002.

DAVIS, N. Z. Culturas do povo. Sociedade e Cultura no início da França Moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998.

DEBRET, J. B. Viagem pitoresta e histórica ao Brasil. 6a. ed. São Paulo: Martins, Brasília: INL, 1975. 3 vol.

LUCCOCK, J. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: EDUSP, Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais pernambucanos. 1795-1817. Recife, Arquivo Público Estadual, 1962.

SILVA, M. (Org.) Dicionário Câmara Cascudo. São Paulo, Perspectiva, 2003.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.