REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Neuroimagem dos infartos e hemorragias
Por Augusto Celso S. Amato Filho
10/06/2009

O acidente vascular cerebral (AVC) é um dos mais importantes diagnósticos referidos ao médico radiologista no setor de emergência, devido a sua frequência, sua gravidade e pela necessidade de um diagnóstico preciso no menor tempo possível. Com o advento de terapias para a fase aguda do AVC, os estudos por imagem ganharam um papel ainda mais fundamental. Quando realizados em tempo hábil, além do diagnóstico, fornecem informações críticas sobre a circulação do tecido cerebral, ajudando, inclusive, na escolha terapêutica. Este texto discute, de forma resumida e simplificada, os principais conceitos radiológicos nessa situação.

A tomografia computadorizada (TC) de crânio é o método mais utilizado na avaliação da fase aguda do AVC. Ela foi idealizada no início dos anos 1970 por Sir Godfrey N. Hounsfield e utiliza raios X (radiação ionizante) para a formação da imagem. Diferente da radiografia convencional, ela baseia-se no princípio de que a estrutura interna de um objeto pode ser reconstruída a partir de múltiplas projeções do mesmo. Para que ocorram essas múltiplas projeções, o paciente entra em um “túnel” onde existe um feixe de raios X que gira ao seu redor, obtendo-se, assim, imagens seccionais que podem ser combinadas para produzir reconstruções tridimensionais.

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Exemplo de exame de TC, notando-se a possibilidade de reconstrução em diversos planos após a obtenção das imagens primárias. As figuras 1A e 1B demonstram as imagens seccionais obtidas pela TC. As imagens 1C e 1D são reconstruções nos planos coronal e sagital, respectivamente. As figuras 1E e 1F são exemplos de reconstrução tridimensional da face e do crânio.

Com o avanço tecnológico, a TC tornou-se um método bastante rápido, além de mais acessível e mais disponível que a ressonância magnética (RM), características que são fundamentais no departamento de emergência e na situação crítica que é o AVC agudo. Considerando que o tempo ideal para o tratamento do AVC é extremamente curto, qual é o objetivo da realização de um exame de imagem nessa circunstância?

O AVC pode ser dividido em dois grandes grupos, o isquêmico e o hemorrágico. No isquêmico (AVCi), basicamente ocorre uma obstrução de grandes ou pequenas artérias que irrigam o encéfalo, por exemplo, por aterosclerose. A obstrução reduz o fluxo sanguíneo, o que impede a oxigenação adequada do tecido, levando à morte das células encefálicas em poucos minutos. Já no hemorrágico (AVCh), o mecanismo é a ruptura de vasos, por exemplo, por um aneurisma ou pico de hipertensão arterial, levando ao extravasamento sanguíneo no interior ou ao redor do encéfalo. Essa diferenciação é fundamental, pois, quando diagnosticado precocemente, o AVCi pode ser tratado com medicações trombolíticas, que agem dissolvendo o trombo no interior da artéria obstruída, com o intuito de restabelecer o fluxo sanguíneo e, assim, evitar um maior dano às células. A questão é que esse tratamento somente pode ser aplicado nos casos de isquemia (AVCi) e é totalmente contra-indicado quando existe hemorragia (AVCh), pois existe o risco de seu agravamento.

Assim, o primeiro objetivo da TC é afastar a presença de AVCh. Como isso é possível? O sangue, devido a seu alto teor de ferro, é consideravelmente mais denso do que o parênquima encefálico, que é formado, em grande parte, de água. Um dos princípios básicos do raio X utilizado na TC é a capacidade de distinguir tecidos com densidades diferentes. Assim, a hemorragia, na sua fase aguda, aparece na TC como áreas de maior densidade – representadas por áreas mais claras.

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Dois casos de AVCh, em 2A o sangue é mais denso (seta) e está ao redor do cérebro. 2B e 2C mostram um exemplo de hematoma agudo intra-cerebral, evidenciado por uma área mais clara no meio do parênquima (setas). Nesses pacientes, o tratamento trombolítico é totalmente contra-indicado.

Não é infrequente a TC estar normal logo após o desenvolvimento do AVCi. Isso ocorre porque os sinais de isquemia estão ausentes nas primeiras horas após o início dos sintomas. Os sinais mais precoces podem ser visíveis a partir de duas horas em alguns casos. A TC deve ser analisada minuciosamente em busca desses sinais, que são: a visualização do trombo no interior de um grande ramo arterial e/ou a presença de edema cerebral localizado no território vascular acometido. Quando ocorre uma isquemia, as células encefálicas ficam sem oxigênio e, portanto, sem energia. O oxigênio é fundamental para as células regularem a quantidade de água que entra e sai de seu interior e, com essa falta, permitem uma maior entrada de água. Consequentemente, o tecido isquemiado torna-se edemaciado, o que, em última análise, diminui a densidade do mesmo. Como citado anteriormente, a TC tem a capacidade de distinguir áreas com densidade diferentes, visualizando a área edemaciada de maneira mais escura (menos densa).

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Sinais precoces de AVCi. Em 3A e 3B, repare como existe uma maior densidade localizada na artéria cerebral média direita, representando um trombo no seu interior (setas). Em 3C, há um exemplo de edema do tecido cerebral visualizado pouco após o início dos sintomas. Note que a área edemaciada é mais escura que o cérebro ao redor e pode ser identificada com mais facilidade após processamento da imagem (3D).

Nos últimos anos, o desenvolvimento de tomógrafos mais rápidos (tomógrafos multidetectores), aliado à administração de contraste intravenoso, melhorou significativamente a informação obtida pela TC. Atualmente, é possível um estudo bastante preciso das artérias desde a aorta até os diminutos ramos intracerebrais. Anteriormente, esses dados seriam obtidos apenas por angiografia digital, um estudo mais invasivo que a TC. Além desse estudo anatômico, também se tornou possível uma avaliação dinâmica, que estuda a distribuição sanguínea e identifica áreas cerebrais com fluxo reduzido, o que é denominado estudo perfusional.

O princípio é bastante simples: ao injetar o contraste intravenoso, são realizadas imagens seriadas de uma mesma parte do cérebro por cerca de um minuto, com o objetivo de apreciar como o contraste é distribuído pelo tecido. É possível estimar o volume sanguíneo que chegou ao cérebro, o tempo que isso demorou e, consequentemente, o fluxo cerebral. Essa análise é muito elucidativa nos casos de AVCi agudo e talvez represente a informação mais importante que o radiologista possa fornecer nessa situação.

Isso porque, quando ocorre obstrução de uma artéria cerebral, uma extensa área sofre com a redução do oxigênio (chamada de área isquêmica). No centro da área isquêmica, os neurônios morrem em poucos minutos, pois a queda do oxigênio é mais intensa. Já na periferia, os neurônios são parcialmente irrigados por ramos arteriais adjacentes, o que permite que sobrevivam por um período maior (essa zona periférica é chamada de penumbra). Se não tratado a tempo, a zona de penumbra também morre, agravando significativamente o déficit neurológico. O estudo perfusional é capaz de demonstrar se existe ou não a zona de penumbra, e qual a sua extensão, direcionando, assim, o tratamento mais eficaz (veja imagem abaixo). Quando aplicada a tempo, a terapia trombolítica é capaz de restabelecer o fluxo sanguíneo, impedindo a morte neuronal na zona de penumbra, o que melhora, em muito, o quadro neurológico desses pacientes.

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Além da TC, a RM é muito útil na avaliação do AVC, principalmente porque tem a capacidade de demonstrar com clareza a extensão da isquemia no encéfalo. Para isso, usa-se um princípio muito interessante que é o movimento browniano. Esse fenômeno termodinâmico é caracterizado pelo movimento randômico das moléculas de água num meio qualquer. Lembrando que mais de 70% do encéfalo é composto de água, concluímos, de forma simplificada, que moléculas de água se movimentam livremente ao redor das células cerebrais. Como já foi dito anteriormente, quando existe isquemia e consequente redução da oxigenação, desenvolve-se um edema. Esse edema ocorre, principalmente, no interior das células, que aumentam de volume e depois morrem. Como as células estão maiores, diminui o espaço entre elas, o que dificulta a livre movimentação das moléculas de água. Essa restrição ao movimento natural da água é captada pela ressonância magnética e traduzida na forma de imagem. De maneira grosseira, essas células representam tecido infartado de maneira irreversível.

A RM, assim como a TC, é capaz de estudar a vasculatura cerebral e o seu fluxo sanguíneo e, portanto, identificar áreas com déficit perfusional, porém ainda viáveis, novamente caracterizando a zona de penumbra.

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Exemplo de AVCi agudo analisado por RM. Em 5A, nota-se com facilidade a delimitação da área cerebral infartada devido à restrição da movimentação das moléculas de água. Em 5B, o estudo perfusional demonstra um déficit sanguíneo (áreas vermelho, amarelo e verde) acometendo uma extensão muito maior que em 5A, indicando que essa é a zona de penumbra e que está em risco se nenhum tratamento for realizado. Em 5C, evidenciamos um estudo angiográfico por RM, que demonstra com clareza a obstrução vascular – repare na assimetria entre as artérias cerebrais médias.

O objetivo deste texto foi mostrar alguns conceitos radiológicos na situação crítica que é o AVC agudo, sendo ele hemorrágico ou isquêmico. É claro que os métodos atuais de imagem são fundamentais para a condução adequada desses pacientes e que, com o avanço tecnológico, fornecem cada dia mais informações pertinentes à decisão terapêutica. A TC destaca-se como a técnica mais utilizada, devido à sua maior disponibilidade e rapidez na aquisição de imagem. A RM, apesar de menos disponível, não é de menor importância, trazendo informações cruciais, principalmente, nos casos duvidosos e em alterações vasculares menores, como infartos embólicos ou lacunares. A disponibilidade dessa tecnologia, já difundida na rede privada, ainda está muito aquém do desejado na rede pública. Mas, com o notável esforço dos neurologistas vasculares em divulgar e protocolizar o tratamento imediato do AVC, esse quadro tende a mudar, beneficiando milhares de pacientes por ano.

Augusto Celso S. Amato Filho é médico radiologista do Hospital das Clínicas da Unicamp e médico neurorradiologista do Hospital Vera Cruz de Campinas (SP). Email: gutoamato@gmail.com