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Reportagem
População urbana aprofunda desigualdades entre escolas do campo e da cidade
Por Rodrigo Cunha
10/02/2012

No censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 84,4% da população brasileira já era urbana. Para se ter uma ideia do que isso representa, no relatório das Nações Unidas divulgado no 5º Fórum Urbano Mundial, realizado em 2010 no Rio de Janeiro, a previsão é de que a população mundial seja 60% urbana em 2030. Mesmo o Brasil sendo tão urbanizado, o censo escolar de 2011 registrou, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), 70.822 estabelecimentos rurais de ensino fundamental em todo o país (48% do total). O que os dados demográficos do IBGE apontam de mudanças nas últimas décadas que afetam diretamente a educação e que retrato os censos escolares do Inep nos permitem traçar da atual situação das escolas do campo e da cidade?

Nos anos 1980, a professora Ana Maria ia para o trabalho à pé e não precisava sequer atravessar uma rua para chegar à Escola Classe 415 Norte, no Plano Piloto de Brasília, para dar suas aulas de língua portuguesa. A maioria dos alunos daquela escola pública também residia naquela mesma quadra ou nas mais próximas. Hoje, os moradores de classe média do Plano Piloto, mesmo que tenham estudado em escola pública, preferem colocar seus filhos em escolas particulares. Enquanto a população brasileira cresceu pouco mais de 1% na última década, as escolas particulares aumentaram 15%. A maioria dos que estudam nas escolas públicas do Plano vem das cidades-satélites, que não conseguem atender toda a demanda de educação das famílias de baixa renda que vivem ali e trabalham em Brasília. Das satélites ao Plano, percorre-se um longo trecho de ônibus, um périplo diário enfrentado em todos os grandes centros urbanos do país.

O desafio do acesso à educação é ainda maior para aqueles que vivem em áreas rurais, como os moradores da comunidade de Aracati, no Ceará, que estudam no município vizinho, Itaiçaba: depois de um longo trecho à pé ou de bicicleta, eles atravessam o rio Jaguaribe para chegar à escola Padre Abílio, de canoa ou passando pela barragem, quando o nível da água está baixo. Apesar de 73% da população do Nordeste residir em área urbana, cerca de 60% das escolas nordestinas de ensino fundamental são rurais. Situação semelhante à dos alunos de Itaiçaba enfrentam os professores do Colégio Paulo Freire, no assentamento rural entre os municípios de Tangará da Serra e Barra do Bugres, no Mato Grosso: “O acesso mais fácil é pelo município de Tangará da Serra. Até o assentamento, são 80 km de estrada sem pavimentação. Assim, os professores que não são do assentamento devem ir para lá e ficar os dias de aula, pois o transporte para ir e voltar não é simples”, conta Ana Arnt, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).

O contraste entre a situação nas escolas públicas rurais e urbanas não se resume à questão do acesso. Ele existe há décadas, e se torna maior à medida que a população das cidades aumenta. Parte das mudanças que aconteceram na geografia da educação estão ligadas a duas tendências demográficas que se iniciaram no Brasil na segunda metade do século XX: o censo do IBGE de 1960 registrou uma queda na taxa média anual de crescimento da população, a qual se acentuou nas décadas seguintes – de acordo com o censo de 2010, a população brasileira ainda cresce, mas em um ritmo cada vez mais lento: a média anual da última década foi de 1,17% de aumento. Já o censo de 1970 foi o primeiro a registrar uma população urbana maior que a rural. O processo de urbanização foi mais acelerado no Sudeste, mas aos poucos atingiu as demais regiões do país. No censo de 2000, a população urbana do Sudeste e do Centro-Oeste já superava os 80% do total. Como se explica, então, que praticamente a metade dos estabelecimentos de ensino fundamental esteja em área rural?

Em 2010, as escolas rurais de ensino fundamental representavam 49,5% do total. No Nordeste, 63% das escolas eram rurais, e no Norte, eram 74%. “A zona rural brasileira representa boa parte do território nacional. Entretanto, apesar da grande extensão territorial, a estrutura de povoamento e distribuição espacial da população no Brasil faz com que o meio rural concentre pouco mais de 15% da população e dos estudantes. Esta característica demográfica repercute diretamente na estrutura educacional. A dispersão populacional e a extensão do território brasileiro explicam esses dados. O que ocorre, entretanto, é que essas escolas têm características bem peculiares, ou seja, são pequenas, em geral unidocentes (com apenas um professor), algumas vezes multisseriadas e atendem, em média, poucos alunos”, diz a assessoria de imprensa do Inep. Em 2010, a média nacional era de 16 alunos para cada professor em escolas rurais de ensino fundamental, onde os docentes representavam 18,5% do total do país. Enquanto no meio urbano o número total de professores é 16 vezes maior que o número total de escolas, no meio rural essa relação é quatro vezes menor. “O que se observa é que a infraestrutura disponível é bem inferior quando comparada com a disponível na zona urbana e não difere da infraestrutura do entorno em que está localizada”, completa.

Infraestrutura


Escolas rurais como essa, de Bom Jesus da Lapa (BA), sofrem com
infraestrutura precária. Foto: arquivo Secad/MEC.

Em 2007, o Ipea publicou o trabalho “A infraestrutura das escolas brasileiras de ensino fundamental: um estudo com base nos censos escolares de 1997 a 2005”, de Natália Sátyro, do Ministério de Desenvolvimento Social, e de Sergei Soares, do próprio Instituto. O estudo indicava uma melhoria considerável naquele período avaliado, principalmente nas escolas rurais, embora estas ainda permanecessem as mais representativas, em 2005, em termos de infraestrutura precária: das 4.224 escolas sem nenhum tipo de fornecimento de água, 92,6% estavam localizadas em áreas rurais; 25.831 escolas não eram atendidas por abastecimento de energia elétrica, das quais 99,5% estavam em áreas rurais; havia 14.226 escolas sem saneamento, sendo 98,7% em áreas rurais. De acordo com o Inep, o quadro atual continua apontando a tendência de melhora sinalizada naquele estudo, com uma queda, em seis anos, de 22% no total de escolas sem saneamento e de 56% nas que não tinham energia elétrica. Mas a concentração dos problemas permanece majoritariamente no meio rural: em 2011, a área rural detinha 98,1% das escolas sem esgoto sanitário e 99,6% das sem energia elétrica. Apenas em termos de abastecimento de água a situação piorou, aumentando em 85% o número de escolas sem esse atendimento, das quais 97,9% eram estabelecimentos rurais.

Soares, do Ipea, acredita que parte da razão pela qual as escolas rurais sempre terão menos infraestrutura é uma questão de escala, ou seja, elas são muito pequenas para terem as mesmas facilidades das escolas urbanas. “Frequentemente, uma escola rural com pouca infraestrutura pode ter um custo/aluno superior ao custo/aluno de uma escola urbana maior. Isso dito, é também verdade que as escolas rurais recebem pouco dinheiro pelo pouco poder político que os pais de seus alunos têm”, explica.

Outro dado apontado naquele estudo é que as escolas urbanas de ensino fundamental tinham mais de 60% dos seus professores com curso superior, enquanto nas escolas rurais esse índice estava abaixo dos 20%. O Colégio Paulo Freire, do assentamento rural de Mato Grosso, é um exemplo disso. “Até 2007, a escola tinha poucos professores formados em ensino superior, e não era em cursos de licenciatura (era em engenharia, por exemplo), ou davam aula fora da área de origem. O restante dos professores eram ex-alunos formados no ensino médio do próprio Paulo Freire, que davam aula seguindo livros didáticos oferecidos pelo governo”, conta Ana Arnt, da Unemat, que orientou uma pesquisa sobre esse tema e tem ex-alunas dando aulas na escola rural. “Quanto ao acesso, era precário. Em função da escola pertencer a um assentamento que faz divisa entre dois municípios (Tangará da Serra e Barra do Bugres), a cada ano um dos municípios é responsável pelo transporte escolar. Havia um ônibus que levava as crianças à escola quando não estava estragado. Até onde a pesquisa atuou, tivemos pouco mais do que 100 dias letivos em 2007, em função das condições da estrada”, relata.

Para Gilda Cardoso de Araújo, do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a educação rural precária oferecida aos moradores do campo também tem relação com a distribuição do ensino entre os entes federativos e com as condições desiguais de oferta educacional. Ela aponta que a partir da Constituição de 1988, acentuou-se um processo de municipalização do ensino: de 1991 a 2000, as matrículas no ensino fundamental cresceram 90% em escolas municipais, enquanto as escolas federais, estaduais e privadas apresentaram queda. De 2000 a 2010, o maior aumento percentual nas matrículas aconteceu nas escolas particulares – o que está relacionado com o aumento da renda média dos brasileiros nessa década –, mas ainda houve um aumento nas escolas municipais ante uma queda de 36% nas escolas estaduais. “O texto constitucional aprovado em 1988 inovou ao incluir o município como um terceiro ente federado autônomo, e ao atribuir-lhe protagonismo na descentralização de competências, principalmente na área social”, avalia. Mas ela considera que isso tornou ainda mais desafiadora a tarefa de equalizar as diferenças entre regiões, estados e municípios. “Se, por um lado, a inclusão do município como ente federado tem o potencial de ampliar a participação direta do cidadão na administração dos serviços públicos, por outro lado, significou também a ampliação das dificuldades na tentativa do estabelecimento do equilíbrio federativo e de medidas de igualdade na prestação dos serviços públicos à população, tendo em vista a heterogeneidade de demandas e de capacidade orçamentária dos 27 estados e dos cerca de 5.600 municípios brasileiros”, opina a pesquisadora.

A migração para a cidade e o envelhecimento da população

Uma terceira tendência demográfica começou no Brasil a partir dos anos 1980: até então, a população era predominantemente jovem, mas a base da pirâmide populacional por faixa etária começa a diminuir a partir do censo de 1991, redução que se mantém nos censos seguintes. A população até 14 anos de idade, que somava mais de 50 milhões no censo de 2000 (29,6% do total), chegou a 2010 com menos de 46 milhões (24% do total). Isso teve um reflexo direto nas estatísticas do ensino fundamental: a partir de 2000, o número total de matriculados em escolas brasileiras vem caindo ano a ano, pela crescente diminuição da população em idade escolar. “Se compararmos o número de vagas existentes no ensino fundamental com a população de 6 a 14 anos no Brasil, que é a população que deve estar na escola, podemos observar que há mais alunos matriculados do que a população que deveria estar no ensino fundamental. É preciso considerar que, se de um lado o problema do acesso está parcialmente resolvido, de outro, as questões relativas à distorção série-idade (alunos fora da faixa etária para o correspondente ano do ensino fundamental), ao abandono e à reprovação ainda são muito graves no Brasil. Os planos de educação precisam levar em conta esses problemas, simultaneamente ao desafio maior, que é o de ofertar uma educação de qualidade para todos os brasileiros”, avalia Gilda Cardoso, da Ufes.

A redução da população jovem associada ao aumento da população urbana fez com que a queda média de matrículas entre 2000 e 2010 fosse menor nas escolas urbanas (10%) do que nas escolas rurais (26%). A redução de professores no ensino fundamental nesse período foi bem menor, mas aconteceu de maneira acentuada nas escolas rurais das regiões Sul (28%) e Sudeste (26%). A maior diferença, no entanto, ocorreu no número de estabelecimentos de ensino, que aumentou 8% nos centros urbanos, especialmente no Sudeste – aumento impulsionado pelo crescimento de 15% das escolas privadas do país ante a redução das escolas públicas –, enquanto as escolas rurais diminuíram em média 34%, de modo mais acentuado no Centro-Oeste (53%) e no Sul (51%).


Fonte: Censos escolares de 2000 e 2010 (Inep/MEC)

“Claro que a redução no número de escolas rurais e suas matrículas acompanha as mudanças demográficas mais amplas em direção a uma população mais urbana, mas também reflete a política de nucleação. Nela, admite-se que pequenas escolas rurais não têm como ser boas e investe-se muito dinheiro em transporte para levar as crianças rurais seja a escolas urbanas, seja a escolas rurais com características das escolas urbanas em tamanho, escala, seriação”, afirma Sergei Soares, do Ipea. Segundo ele, há muitos que se opõem a essa política, e que acreditam que não se deve desistir das pequenas escolas rurais. Trata-se de uma polêmica também existente nos Estados Unidos, na França e na Colômbia.

A maior mudança no período de 2000 a 2010, no entanto, aconteceu no ensino médio. Enquanto o número total de matrículas no país permaneceu praticamente estável nas escolas urbanas – apesar da queda de 13% no Sudeste e de 8% no Sul –, nas escolas rurais de ensino médio o aumento foi de 190%, chegando a triplicar no Nordeste e a ficar quatro vezes maior na região Norte. “Isso se deve a dois fatores: a ampliação da oferta, que pode ser observada pelo número de escolas presentes nessas áreas, e o aumento do número de alunos que concluem o ensino fundamental, aspectos que estão intimamente relacionados”, explica a assessoria de imprensa do Inep.


Fonte: Censos escolares de 2000 e 2010 (Inep/MEC)

O número de estabelecimentos rurais de ensino médio saltou de apenas 679, em todo o país, para 2.301 na última década, chegando a 2.396 em 2011. Já o número de docentes apresentou queda apenas nas escolas urbanas do Sudeste, em torno de 4%, aumentando 27% nas escolas urbanas do Norte e 29% nas escolas urbanas do Nordeste. Mas o aumento do número de professores nas escolas rurais foi generalizado em todas as regiões do país, mais uma vez triplicando no Nordeste e multiplicando por quatro no Norte. Outro fator que vem impulsionando o crescimento do ensino médio, além do aumento do número de concluintes do ensino fundamental apontado pelo Inep, é a aprovação, em 2009, de uma emenda constitucional que estende a educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade.

O balanço da década revela, em suma, que onde a população urbana já era maior, como no Sudeste ou na capital federal, a diferença mais significativa foi o crescimento das matrículas no ensino privado, que acompanharam o crescimento médio da renda dos brasileiros. Já nas regiões menos densamente povoadas e menos desenvolvidas economicamente, como o Norte e o Nordeste, houve um crescimento vertiginoso no número de escolas, de professores e de alunos matriculados nas escolas rurais de ensino médio. Esse crescimento, mais uma vez, traz à tona o debate apontado por Soares, do Ipea, sobre apostar ou não nas pequenas escolas rurais.

“O campo não é apenas um espaço não urbano, é o território das florestas, da pecuária, das minas, da agricultura. É também espaço pesqueiro, caiçara, ribeirinho e extrativista. Sendo assim, é um lugar que liga os seres humanos à produção de suas condições de existência”, lembra Gilda Cardoso, da Ufes. “Entretanto, segundo dados oficiais, três quartos dos pobres do planeta estão no campo. No Brasil, o trabalho infantil ainda é fartamente utilizado no campo e a média de anos de estudo ali é muito baixa. Nessas condições, a reforma agrária é uma medida imprescindível para diminuir as enormes desigualdades socioeconômicas do campo. Dessa forma, políticas educacionais específicas para o campo são dimensões estratégicas extremamente relevantes. A educação do campo é uma forma de ação política e social. Não pode ser concebida como empobrecimento da educação oferecida nas áreas urbanas”, conclui.