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Artigo
Bioetanol combustível brasileiro: economicamente sustentável?
Por Flávia Gouveia
10/10/2013

O bioetanol combustível brasileiro, produto de tecnologias de produção do etanol (a partir, principalmente, da cana-de-açúcar) e de motores a explosão desenvolvidos nacionalmente, é alvo de posicionamentos controversos referentes aos três grandes aspectos da sustentabilidade: ambiental, social e econômico. Diversos grupos de atores – como entidades ligadas ao governo federal, empresários do agronegócio, organizações da sociedade civil – posicionam-se a favor ou contra o biocombustível, embasados em pesquisas científicas que geram dados e informações muitas vezes divergentes.

O âmbito econômico da sustentabilidade do bioetanol combustível apresenta controvérsias envolvendo aspectos frequentemente influenciados por ações governamentais, como o balanço energético, a produtividade/competitividade da produção e o modelo econômico no qual se insere a sociedade. Porém, questões referentes à concentração de terras e de renda, à geração de impactos ambientais e às relações de trabalho não incluídas na dimensão econômica são complexas, podem impactar no sistema de preços e não se resolvem por meio do livre jogo das forças de mercado (Veiga Filho, Szmrecsanyi e Ramos, 2010). Por isso, avaliar a sustentabilidade econômica desse combustível no Brasil ultrapassa a complexidade de impactos relacionados e resulta em posições e informações conflitantes.

Balanço energético

O balanço energético – isto é, a relação entre a energia produzida e a energia utilizada direta e indiretamente para produzi-la1 – do etanol brasileiro é tido por muitos especialistas como positivo2. Mas esse argumento é também contestado com base em pesquisas brasileiras e internacionais (Abramovay, 2009). Os resultados dos cálculos do balanço energético variam bastante de acordo com a metodologia utilizada. Há estudos que calculam o balanço energético do etanol e chegam a valores bem menores que o de 8 x 1 (energia renovável/energia fóssil) apresentado pelo governo brasileiro. Registram-se, abaixo dessa referência, valores inclusive negativos ou levemente positivos3. Faixas de valores intermediárias também são mencionadas, como 3,24 x 14 e 5,8 x 15 (neste caso, se todos os adubos nitrogenados fossem eliminados) (Von Der Weid, 2009). As diferenças entre as metodologias que geram resultados tão díspares são um indicativo da natureza dessa controvérsia e do que cada ator pretende defender, conforme o dado que escolhe citar.

Produtividade/competitividade da produção

Vantagens brasileiras como a disponibilidade de terras, liquidez de capitais e competência tecnológica poderiam favorecer a competitividade do bioetanol. No entanto, medidas protecionistas como subsídios e barreiras tarifárias distorcem esse mercado e “mascaram a seleção das alternativas verdadeiramente eficientes, tanto do ponto de vista econômico quanto ambiental" (Graziano da Silva, 2007). Esse jogo de forças pode levar a diferentes posições quanto à competitividade real do setor e suas margens de lucro.

Documento do Instituto Eqüit (Rodriguez, 2010) destaca as seguintes posições nas divergências econômicas referentes ao tema: de um lado, a defesa de que se trata de um combustível economicamente competitivo ao substituir os combustíveis fósseis; de outro, o argumento de que o custo de produção é quase o dobro da gasolina, não sendo competitivo sem subsídios públicos. Vale lembrar também que a gasolina, cujo preço sofreu substancial elevação no mercado internacional, tem recebido subsídios públicos no Brasil para impedir o aumento de preço, o que se tornou o grande motivador dos pleitos dos empresários do setor sucroalcooleiro.

No âmbito do processo produtivo, cada fase emprega tecnologias que impactam a produtividade e a lucratividade do negócio. Uma discussão que envolve inúmeros aspectos, entre os quais o econômico, refere-se aos desdobramentos das exigências legais6 de eliminação da queima da palha de cana-de-açúcar, o que implica na substituição da técnica de colheita manual (geralmente associada a queimadas) por máquinas. Entre as críticas sobre os riscos econômicos da colheita mecanizada, destacam-se efeitos de compactação do solo e a consequente necessidade de renovações mais frequentes dos canaviais, os elevados custos de aquisição dos equipamentos, bem como a inexistência de máquinas capazes de colher em terrenos com declividade acima de 12%. Há também efeitos sobre o nível de emprego, visto que uma colheitadeira substitui o trabalho de até cem cortadores de cana, que geralmente não têm qualificação para mudar de ocupação rapidamente. Por outro lado, o trabalho no corte de cana é considerado por muitos como extremamente extenuante e várias vezes foi comparado a condições de escravidão (Graziano da Silva, 2007; Rede social de justiça e direitos humanos, 2012).

A partir de outra perspectiva, a unificação do mercado de alimentos com o de combustíveis levará ao equilíbrio quando as margens de lucro dos alimentos forem equivalentes às dos combustíveis fósseis (Von Der Weid, 2009). Isso teria provocado “fortes investimentos em agrocombustíveis em todo o mundo, a despeito das necessidades de produção alimentar em países que já são deficitários em seu abastecimento” (Von Der Weid, 2009). Para o autor, um programa para a produção de biocombustíveis existe por decisão política, visto que, do ponto de vista econômico, ele não sobreviveria em nenhum lugar do mundo nas condições atuais. Ele argumenta que foi com a justificativa (irreal, segundo o autor) de reduzir as importações de petróleo que o Proálcool gastou elevado montante de recursos públicos que o subsidiaram.

Para os defensores do etanol, o Proálcool contribuiu para a economia de dezenas de bilhões de dólares de importação de petróleo e permitiu o desenvolvimento de uma indústria de bens de capital eficiente e competitiva. Os ganhos de rendimento na agroindústria canavieira no contexto do Programa significaram um incremento anual na produtividade de 2,25% e 2,64%, respectivamente para os segmentos agrícola e industrial (Shikida e Bacha, 1999). Referências como o professor da Unicamp Luís Augusto Barbosa Cortez e o professor do Imperial College London Jeremy Woods argumentam ainda que a produção de biocombustíveis, incluindo o bioetanol, pode fortalecer tanto o desenvolvimento econômico como a segurança alimentar e energética7 (Toledo, 2013).

Como se observa, a controvérsia econômica do tema bioetanol está historicamente instalada. A conquista do apoio da opinião pública, sobretudo quando do surgimento de programas de subsídios e incentivos, passa por argumentos de convencimento lançados pelos atores envolvidos8.

Modelo econômico

O modelo econômico no qual se baseia a produção do bioetanol brasileiro – rodoviário e apoiado no meio de transporte individual – é alvo de discussões das quais participam diversos atores, especialmente o governo. “Diferentemente de outros países do mundo, o Brasil escolheu subsidiar o automóvel particular ao invés de taxá-lo (...). O argumento positivo da menor emissão de poluentes dos motores a álcool em relação àqueles a gasolina perde peso diante desse fato básico e indiscutível” (Nitsch, 1991). Nesse sentido, Elliott (2000) comenta, a respeito das energias renováveis e de futuros sustentáveis, a necessidade de mudança no perfil da demanda, alterando o padrão de consumo e reduzindo o desperdício. Essa ideia sofre ainda muitas resistências, como aponta o autor.

Ainda sobre o modelo econômico do bioetanol combustível no Brasil, vale notar que o setor foi tradicionalmente dominado por grupos familiares de latifundiários brasileiros, em detrimento dos pequenos produtores, que arrendaram ou venderam suas terras, favorecendo a concentração de renda. Esses produtores, segundo Veiga Filho, Szmrecsányi e Ramos (2010), dificilmente voltam à atividade agrícola, “pois, normalmente, vendem suas máquinas e equipamentos e migram para as cidades para viver da receita obtida”. Com a crise financeira de 2008, deu-se uma profunda alteração na composição desses negócios, aumentando a participação do capital estrangeiro em grande parte dos empreendimentos na área. Essa mudança tem sofrido uma série de críticas.

Em reportagem da revista Caros Amigos sobre a criação da Raízen, uma organização formada pela petroleira multinacional inglesa Royal Dutch Shell e a brasileira Cosan S/A, encontram-se diversas manifestações contrárias ao posicionamento do governo, de apoio à formação da joint-venture, e em favor da agricultura familiar9.Von Der Weid (2009) já criticava o modelo econômico subjacente à cadeia produtiva do bioetanol no Brasil, ressaltando a importância dos investimentos no setor, do processo de fusões e incorporações – com aumento da participação de empresas multinacionais, bem como da atuação do governo brasileiro, apoiando as exportações de bioetanol, e do padrão de consumo que associa a posse de um automóvel à inclusão social. “O que está em jogo é um gigantesco movimento de busca de algumas grandes corporações transnacionais e outras tantas nacionais por lucros excepcionais” (Von Der Weid, 2009).

Evidentemente, a posição do governo, das entidades do setor e das empresas multinacionais é outra. Para o economista Marcos Sawaya Jank, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) na época da reportagem da Caros Amigos, as fusões e aquisições com presença do capital internacional foram importantes diante das dificuldades financeiras do setor. Diz Jank: "Esse capital é muito bem-vindo. Senão teríamos tido uma quebradeira bastante forte. No entanto, a presença estrangeira ainda é muito pequena 22%, bem menor do que em qualquer outro setor, inclusive a agroindústria”. (Rodrigues, 2011).

De acordo com a vertente a favor do bioetanol, esse combustível insere-se no contexto de uma nova economia verde apoiada na biomassa. Para Goldemberg (2009), o potencial da tecnologia de "primeira geração" para a produção de bioetanol a partir de cana-de-açúcar ainda está longe de ser esgotado e pode permitir a substituição de 10% da gasolina no mundo por etanol antes que as tecnologias de segunda geração atinjam maturidade tecnológica e competitividade econômica.

Ciência e sociedade

Entre defesas e críticas, o bioetanol combustível está consolidado no Brasil e não deverá desaparecer, ao menos de imediato. A ciência trabalha em iniciativas que incentivam o biocombustível, como o etanol de segunda geração, bem como em alternativas, como o carro elétrico. Nesse sentido, as inovações podem promover a reconfiguração dos argumentos e posicionamentos acerca do assunto.

Seja com relação ao bioetanol de cana-de-açúcar historicamente produzido e comercializado no país ou a outras inovações, influências sociais permeiam as pesquisas10 e têm gerado controvérsias (Latour, 1998), como as apresentadas neste artigo e outras de natureza não econômica. Mas, afinal, para o Brasil, o investimento em bioetanol é economicamente sustentável? De forma geral, a resposta depende não apenas de dados e pesquisas que testem, validem ou refutem hipóteses (que já não convergem), mas envolve também variáveis futuras desconhecidas e passa por processos de convencimento dos quais participam, de formas e intensidades distintas, diversos atores.

Flávia Gouveia é economista, jornalista de ciência e doutoranda em política científica e tecnológica pelo DPCT/Unicamp. Mantém o blog Remoenda, sobre a sustentabilidade do bioetanol e suas controvérsias.

Notas

1 A literatura sobre o tema do bioetanol define o conceito de balanço energético de duas formas distintas. Ora como a relação entre a energia produzida e a energia utilizada direta e indiretamente para produzi-la, ora como a quantidade de energia renovável extraída por unidade de energia fóssil inserida. Em geral, os dois conceitos assemelham-se pelo fato de, em sistemas convencionais típicos do agronegócio, a energia investida ser quase totalmente de origem fóssil (Von Der Weid, 2009). Porém, esse raciocínio não se aplica ao caso bioetanol de cana-de-açúcar, que utiliza intensamente bagaço de cana no processo produtivo.
2 “O balanço energético do etanol (unidade de energia renovável extraída por unidade de energia fóssil inserida) é extremamente favorável, atingindo 8,9:1, com emissões evitadas de 2,86 e 2,16 t CO 2 eq./m 3, para o etanol anidro e hidratado, respectivamente.” (Lucon, 2008; apud Coelho, Lora e Guardabassi, 2010).
3 Tad Patzek e David Pimentel, “Thermodynamics of energy production from biomass”, em Critical Reviews in Plant Sciences, 24 (5), pp. 327-364.
4 Pesquisa de Andreoli e Souza, da Embrapa Soja, em Londrina, Paraná (Von Der Weid, 2009).
5 Johana Döbereiner, Vera Lúcia Baldani e Verônica Massena Reis, “The role of biological fixation to bio-energy programmes in the Tropics”, em Carlos Eduardo Rocha-Miranda (org.), Transition to global sustainability: the contribution of brazilian science, vol. 1 (Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências, 2000), pp. 195-208.
6 Lei Estadual 11.241/02, que altera a Lei Estadual 10.547/00, Protocolo Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro, para o Estado de São Paulo.
7 A avaliação dos professores foi feita em um painel sobre biocombustíveis realizado em 27 de setembro de 2013, durante a programação da Fapesp Week London.
8 “São os subsídios dos países do Primeiro Mundo que iniciaram o movimento de mudança espetacular na agricultura, e eles só são gastos por decisão de governos e parlamentos. Para ganhar apoio, os interessados tiveram de criar argumentos e vendê-los para a opinião pública” (Von Der Weid, 2009).
9 “Para o coordenador da Federação Única dos Petroleiros, a FUP, João Antonio de Moraes, os interesses nacionais não podem estar submetidos ao lucro das transnacionais. (...) É preciso que o Estado tenha o controle, o que efetivamente nunca ocorreu no setor do álcool. Sempre ficamos à mercê dos interesses dos usineiros. (...) A vinda da Shell agrava essa situação, além de ficarmos submetidos aos interesses do lucro, como já estávamos, passamos a ficar submetidos, também, aos interesses de uma empresa cuja sede não é o Brasil. Vamos supor que tenhamos uma situação de emergência no mundo. A quem a Shell terá interesse de abastecer? O Brasil ou sua matriz?', questiona”. (Rodrigues, 2011)
10 A noção de que os fatos científicos são socialmente construídos é destacada nos estudos sociais da ciência e da tecnologia, por autores como Thomas Kuhn, Bruno Latour, David Bloor, Barry Barnes, Michel Callon, Trevor Pinch, Pierre Bourdieu, Karin Knorr-Cetina e Harry Collins.

Referências bibliográficas

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Coelho, S. T.; Lora, B. A.; Guardabassi, P. M. “Aspectos ambientais da cadeia do etanol de cana-de-açúcar no estado de São Paulo”. In: Luís Augusto Barbosa Cortez. (Org.). Bioetanol de cana-de-açúcar : P&D para a produtividade e sustentabilidade. São Paulo: Blucher, 2010.
Elliott, D. “Renewable energy and sustainable futures”. In: Futures, vol. 32, nº. 3, pp. 261-274. Elsevier, 2000.
Goldemberg, J. “The potential for first generation ethanol production from sugarcane”. Biofuels, Bioproduction and Biorefining 4: 17-24, 2009.
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Latour, B. Ciência em ação : como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
Murphy, D. J.; Hall, C. A. S. “EROI or energy return on (energy) invested”. In: Annals of The New York Academy of Sciences. Vol. 1185, Ecological Economics Reviews, pp 102–118, Jan, 2010.
Nitsch, M. “O programa de biocombustíveis Proálcool no contexto da estratégia energética brasileira”. Revista de Economia Política, SP, 11(2): 123-138, abr./jun, 1991.
Rede social de justiça e direitos humanos. Relatório: A agroindústria canavieira e a crise econômica mundial. Maria Luisa Mendonça, Fábio T. Pitta e Carlos Vinicius Xavier – pesquisa e texto. São Paulo, 2012.
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Rodriguez, G. (coord.) Agrocombustíveis e a matriz energética brasileira : o que isso tem a ver com as mulheres? Instituto Equit: Gênero, Economia e Cidadania Global, 2010. Disponível em: http://letraeimagem.com.br/novo/wp-content/uploads/2011/02/Cartilha-Agrocombust%C3%ADveis_site_baixa.pdf. Acesso em dezembro de 2012.
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