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Artigo
A biofabricação de tecidos e órgãos
Por Jorge Vicente Lopes da Silva
Silvio Eduardo Duailibi
10/10/2008

A escassez mundial de doadores para transplante de tecidos ou órgãos se torna um problema de grandes proporções tanto para a saúde pública quanto de ordem socioeconômica. Esses transplantes são necessários para corrigir a perda total ou parcial da função de um órgão ou tecido, independente da sua causa – doenças, traumas ou malformação congênita. Sempre que possível, o transplante autólogo (tecido do próprio paciente) é o ideal. Algumas vezes a doação não é possível, ou novas seqüelas podem ser provocadas no local doador. Quando a necessidade é de um órgão completo, é indispensável o doador, que na imensa maioria só doa após a constatação do óbito. No caso de doadores e receptores serem pessoas diferentes, o fenômeno da incompatibilidade imunológica, rejeição, é um problema real que submete o receptor ao uso de drogas imunossupressoras pelo resto da vida. Outro fator que dificulta a terapia apresentada é o alto custo do processo, desde a coleta até a implantação do órgão.

Como sempre, associada à necessidade, há a motivação econômica que empurra os países desenvolvidos a investirem fortemente em terapias mitigadoras e no desenvolvimento de substitutos biológicos sem a necessidade de doadores de tecidos e órgãos.

A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, em 1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiências. Entre os direitos explicitados, está o direito ao tratamento médico, psicológico e reparador, visando a sua reabilitação, para que possam desenvolver suas habilidades e serem integradas na vida normal com cidadania e bem estar. Considerando que o tratamento médico é um termo abrangente, isso torna criteriosa a função dos governos. No Brasil, a situação é ainda mais crítica. Grande proporção da população está sujeita a doenças, sem atendimento médico preventivo e com alimentação insuficiente. O número de vítimas de acidentes é alarmante, e o envelhecimento progressivo da nossa população é um fato, de acordo com as estatísticas oficiais do IBGE.

A reconstrução ou substituição de partes do organismo tem sido um desafio para a espécie humana há pelo menos 3000 anos. Achados arqueológicos demonstram que, desde essa época, as antigas civilizações já teriam realizado tentativas de reconstruir partes do crânio por meio de implantes. Mais antigo ainda são as trepanações (perfurações) em crânios, praticadas por vários motivos em inúmeras civilizações. As civilizações americanas pré-colombianas, como os Incas, também realizaram essas operações, estando expostos em museus uma série de instrumentos cirúrgicos, crânios e implantes.

A observação de seres vivos que apresentam a regeneração completa de alguns membros, como o rabo de uma lagartixa, a capacidade de um órgão humano se regenerar parcialmente, a diferenciação celular da fecundação ao nascimento, há muito têm sido motivo de inquietação de pesquisadores como um paradigma da natureza. Por volta de 1950, surgem os primeiros estudos com células-tronco nos casos de transplantes de medula em cães expostos a altas doses de radiação como uma forma de medicina regenerativa. Do outro lado, há nos últimos anos, uma enorme evolução das engenharias servindo como um forte elemento de suporte e desenvolvimentos em todas as aplicações relacionadas com a ciência da vida.

Assim, diante da complexidade e desafios aparece a engenharia tecidual como a convergência de diversas áreas do conhecimento humano focada na aplicação clínica. Torna-se imprescindível a união da biologia, engenharias, ciências dos materiais e várias especialidades biológicas, médicas ou não, para dar respostas que só serão satisfatórias a longo termo. Esse novo e excitante campo das ciências aparece como um caminho para entender, mimetizar e aumentar a capacidade regenerativa dos tecidos e órgãos humanos, promovendo a cura de tecidos ou a substituição de órgãos.

De acordo com Jonathan Black, em artigo de 1977 publicado na IEEE Engineering in Medicine and Biology, a busca pela “pedra filosofal” dos materiais totalmente inertes teve forte impacto quando o Dr. Christiaan Barnard realizou o primeiro transplante de coração em 1967, na África do Sul. Naqueles anos, os recursos para pesquisa de órgãos sintéticos sofreram um impacto negativo devido à nova perspectiva no transplante de órgãos vivos. No entanto, até hoje os órgão sintéticos são utilizados como paliativos e responsáveis por aumentar a sobrevida do paciente até que seja encontrado um doador compatível. Essa busca faz com que milhares de pessoas evoluam a óbito por não terem a disponibilidade de órgãos. Apesar das intensas campanhas de incentivo à doação de órgãos, na maioria dos países, as listas de espera são grandes.

O relatório “Pesquisas em Engenharia Tecidual ”, disponibilizado pelo International Technology Research Institute em 2002, avaliou o estado da arte dessa nova ciência, aceitando a definição de engenharia tecidual feita pelo Dr. Skalak e colaboradores em 1988 e corroborado em workshop da National Science Foundation dos EUA como: “A aplicação dos princípios e métodos de engenharia e ciências da vida na direção do entendimento fundamental das relações estrutura-função em tecidos normais e patológicos de mamíferos e o desenvolvimento de substitutos biológicos para restaurar, manter ou incrementar a função do tecido”.

A origem dessa área da ciência teve e ainda tem contribuições determinantes dos quatro irmãos Vacanti. Dentre eles, Joseph e Charles se destacam e são referenciados como as “células-tronco da engenharia tecidual”, conforme artigo do Dr. Raymund Horch no Jornal of Cellular and Molecular Medicine. O fato motivador para as suas pesquisas foi a constatação da carência na doação de órgão e tecidos. Mais tarde, em 1997, esses dois irmãos, associados a colaboradores, publicaram na revista Plastic and Reconstructive Surgery artigo científico mostrando a viabilidade de criar tecidos a partir de materiais sintéticos representando formas humanas tridimensionais, colonizados por células. O experimento se tratava de uma estrutura simplificada anatomicamente, na forma de orelha humana, moldada em polímeros biodegradáveis sintéticos, semeada com células cartilaginosas de bovinos. Essa orelha foi implantada nas costas de um camundongo sem imunidade, de modo a não rejeitar material transplantado. A pesquisa desses cientistas foi notícia nos maiores jornais do mundo, o que levou a reações de todos os tipos nos vários setores da sociedade. Esse experimento é lembrado como um símbolo da engenharia tecidual. Esses mesmos irmãos associam, em publicações posteriores, as raízes bíblicas e históricas para invocar os conceitos da engenharia tecidual, e citam como provável primeira descrição do termo engenharia tecidual um relatório de 1908.

A partir das definições e evoluções recentes da engenharia tecidual, outras definições aparecem, como a engenharia tecidual assistida por computador (do inglês Cates), a bioimpressão de órgãos e tecidos e a biofabricação. Os dois últimos termos têm a ver com a deposição controlada de células, biomateriais (materiais sintéticos) e biomoléculas (substâncias indutoras e reguladoras do crescimento celular) para a formação de tecidos ou órgãos. Essa deposição controlada baseia-se no princípio da fabricação aditiva (camada a camada), mais conhecida como prototipagem rápida. É uma forma de transformar modelos tridimensionais virtuais, projetados no computador, em modelos físicos reais, como uma impressão tridimensional. Essa nova classe de tecnologia, apesar de recente, é amplamente consolidada no mundo como uma ferramenta eficaz no desenvolvimento de produtos e em aplicações industriais especiais. Portanto, a união da fabricação aditiva com os conceitos básicos da engenharia tecidual deu origem a esse novo ramo da engenharia tecidual chamado de biofabricação. A necessidade de estudos mais avançados e desenvolvimentos são devidos aos novos paradigmas da biofabricação e às necessidades da engenharia tecidual, nas principais áreas:

Biologia celular – É o elemento fundamental na produção de tecidos, pois as células viáveis com comportamento previsível devem ser adquiridas e cultivadas para, então, serem semeadas nas estruturas projetadas de biomateriais, dando início à formação do tecido ou órgão in vitro (bioreator) ou in vivo (paciente). Adicionalmente, podem ser depositadas biomoléculas como elemento regulador e integrador funcional dos biomateriais e células. Dentre essas, estão os fatores de crescimento, fatores de diferenciação, fatores angiogênicos e proteínas morfogênicas ósseas (BMP).

Biomateriais – São materiais adequados ao contato com o tecido biológico originado de fontes sintéticas ou naturais (próprio paciente, doador ou animais) ou uma mistura deles. Os materiais podem ser poliméricos, metálicos, cerâmicos ou mistos, atuando no organismo como material bioinerte ou bioativo. São estruturados como matéria-prima em forma de pó, gel, sólido, entre outras. A importância desses materiais se deve à sua capacidade de ser estruturado tridimensionalmente, passando a ser responsável por suportar, guiar e induzir a diferenciação celular na formação do novo tecido.

Projeto de Estruturas Biológicas Assistido por Computador (BioCAD) – Considerando os elementos acima, é necessário um projeto consistente das estruturas em biomateriais, conhecidos como arcabouço (do inglês scaffold), onde serão semeadas as células e biomoléculas, dando origem aos constructs. Considerações sobre a resistência mecânica da estrutura, a relação de equilíbrio entre a absorção do biomaterial pelo organismo e a neoformação de tecidos, bem como a possibilidade de modificar quimicamente as superfícies do material para melhor adesão celular, podem fazer parte dessa etapa. É necessário que haja grande evolução em pesquisa e desenvolvimento, de modo a considerar a geometria complexa das superfícies e formas anatômicas do tecido ou órgão para a sua reprodução. Sistemas para aquisição e tratamento de imagens médicas em várias modalidades se constituem nessa base, permitindo a engenharia reversa de estruturas anatômicas complexas. Deve-se considerar também no projeto a microgeometria da estrutura com os diferentes gradientes de materiais e concentração de células a serem depositadas, além da concentração, geometria, interconectividade e dimensões dos poros.

Manufatura – Equivalente aos sistemas industriais, nos quais se realiza um projeto no computador (CAD – Computer-Aided Design) que em seguida é colocado em produção (CAM – Computer-Aided Manufacturing) automaticamente, a biofabricação permitirá, partindo dos conceitos de projeto e da biologia celular, produzir tecidos e órgãos vivos diretamente com o paradigma da fabricação aditiva. O nível de complexidade associado a um rigoroso controle de qualidade dos materiais vivos produzidos torna essa etapa um desafio que deverá evoluir muito nos próximos anos.

Bioreatores – Equipamentos responsáveis por manter ou permitir as condições adequadas para a maturação do órgão ou tecido. Dentre as condições estão a perfusão e retirada de subprodutos da ação celular e a aplicação de estímulos mecânicos e elétricos para o desenvolvimento do tecido. Envolve o desenvolvimento e a pesquisa de conceitos de química, bioquímica, dinâmica de fluidos e biologia.

Desenvolvimento clínico – Desenvolvimento de novas práticas e terapias para maior garantia de um implante bem sucedido. Garantia de integração do novo tecido ao organismo receptor, promovendo vascularização para a alimentação de nutrientes ao tecido implantado.

Informática – A informática é onipresente nessa área, fortemente presente na bioinformática e biologia computacional. A evolução dos sistemas computacionais de software e hardware se tornou um dos principais habilitadores no desenvolvimento da engenharia tecidual. A informática habilita o estudo e caracterização desde células, DNA (genômica – o mapeamento genético), o estudo a caracterização proteica (proteômica), tecidos (simulações, projeto, controle de reatores para crescimento de tecidos) até organismos (aquisição e tratamento de imagens de várias modalidades e outras aplicações da bioinformática). É possível simular comportamento mecânico de estruturas (FEM – Finite Elements Analysis) e de deslocamento de fluidos (CFD – Computational Fluid Dynamics) como ferramentas consagradas na indústria, porém em evolução na engenharia tecidual.

Observa-se que a biofabricação caracteriza-se como uma área estratégica para a humanidade, porém as pesquisas ainda se concentram nos países desenvolvidos. Portanto, o apoio por parte do Estado brasileiro de nuclear estrategicamente grupos de pesquisa em vários domínios do conhecimento, com este foco, deve ser uma ação inequívoca. Isso deve servir, inicialmente, como elemento base de uma política de Estado que possa ser tanto apoiadora como reguladora de temas tão importantes para a humanidade. Essas políticas de fomento à pesquisa podem colocar o Brasil no seleto grupo de países que buscam soluções para a regeneração de tecidos e órgãos sem a necessidade de doadores. Adicionalmente, essa estratégia define diretrizes para o bem-estar de uma população cuja expectativa de vida tem aumentado significativamente, além de estratégia econômica para possível competição futura no mercado mundial.

Recentemente foi apoiada no Programa Ibero-Americano de Ciencia y Tecnología para el Desarrollo (Cyted), em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a formação da Rede Ibero-Americana de Biofabricação (Biofab), que envolve a pesquisa em materiais, processos e simulação, com duração até dezembro de 2010. A rede foi criada para reunir centros de pesquisa com competência científica e possibilidade de incluir parceiros privados na investigação sobre biofabricação para a síntese, processamento de novos processos, e desenvolvimento de softwares para matrizes de suporte de engenharia tecidual, entre outros. A Biofab é formada por pesquisadores de Portugal, Brasil, Espanha, Argentina, Cuba, Venezuela e México, em um total de 19 grupos e 158 pesquisadores. A multidisciplinaridade se configura com p rofissionais da área biológica e médica, engenheiros de materiais, engenheiros químicos, físicos, engenheiros de computação, entre outros. A primeira reunião ocorreu em Campinas (SP), nos dias 29 e 30 de julho e 01 de agosto. Informações adicionais podem ser obtidas em notíciaComCiência. publicada na

Apesar de todas essas iniciativas em pesquisa, desenvolvimento e inovação, a utilização de implantes organometálicos consome hoje grande parte dos recursos nas terapias reparadoras, apresentando ainda uma série de deficiências na integração e funcionalidade. A outra opção (não excludente) é o transplante de órgãos que apresenta as dificuldades brevemente descritas. A solução com maior potencial custo/benefício é a terapia utilizando a engenharia tecidual que devolveria a funcionalidade integral na reparação com custos acessíveis, evitando os caminhos nebulosos da ética, pela possibilidade da utilização de células autólogas do paciente para crescimento de novo tecido ou órgão sobre uma base sintética.

A reparação de tecidos ósseos, por exemplo, de tumores mandibulares, perdas ósseas cranianas, devolvendo a estética e funcionalidade para o paciente é um papel a ser cumprido pela biofabricação, além de uma remota mas esperada possibilidade de reproduzir de maneira viável e ética órgãos complexos como coração, rins e pulmão.

Outras possibilidades estão na criação de tecidos ou órgãos vivos para aplicações além das clínicas. Como exemplo, para o desenvolvimento e teste de novas drogas e terapias, há a computação biológica (redes neurais) de alto desempenho, além de sensores vivos para agentes químicos e biológicos. Muitas outras podem surgir, e a evolução dessas pesquisas tem ressaltado a necessidade da evolução e reestruturação de mecanismos legais e regulamentações para a área.

São pesquisas com resultados ainda incipientes, a despeito do grande desenvolvimento científico e tecnológico. Caracterizam-se por serem pesquisas de alto custo e risco, com retorno previsto para longo prazo. Porém, são vistas, hoje, como estratégicas e financiadas pelos governos de países desenvolvidos e por empresas com forte aporte de venture capital na formação de start-ups. A engenharia tecidual e mais especificamente a biofabricação encontram-se hoje como se fossem as primeiras experiências com a roda.

Jorge Vicente Lopes da Silva é pesquisador da Divisão de Tecnologias para Desenvolvimento de Produtos, do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer CTI/MCT, e Silvio Eduardo Duailibi é professor da disciplina de cirurgia plástica, no Laboratório de Engenharia Tecidual da Unifesp.