Editorial:

Clones e medos crônicos
Carlos Vogt

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A clonagem sob o olhar da religião

Em meio as questões éticas, jurídicas e morais que giram em torno da clonagem, há uma que remete à um longínquo embate: aquele que defronta ciência e religião. Certamente os confrontos entre essas duas visões de mundo não são novos, mas encontram uma especificidade ao relacionar-se com formas de reprodução artificial e clonagem, pois colocam em cena a possibilidade de dessacralização da vida pela ciência, em oposição à sacralidade afirmada pelas religiões.

Guardadas as devidas diferenças entre três religiões - catolicismo, islamismo e judaísmo - as críticas à clonagem encontram pontos comuns para estas vertentes, como o questionamento das relações de parentesco, que podem abalar o ideal de família, o questionamento da identidade do indivíduo clonado e a possibilidade de aprimoramento genético a partir de um ideal eugênico. Entre as críticas comuns destaca-se a pretensão do homem em comparar-se a Deus.

Clonagem e catolicismo
Segundo o padre Júlio Monari, ex-assessor de Dom Paulo Evaristo Arns e atual professor de História do Cristianismo e Bioética do Instituto Teológico Pio XIX e do Centro Universitário Assunção, a igreja católica defende a existência de vida humana, desde a fecundação, como algo divino. "A vida humana é um dom de Deus, só Ele é senhor da vida, nesse sentido ela reveste-se de um caráter sagrado. O mandamento bíblico não matarás é indicador desta sacralidade, abrange a vida desde a fecundação até a morte natural. Não é permitido portanto, destruir um embrião para obter células tronco, como tampouco abreviar a vida de um ser humano para extrair órgãos para um transplante, a fim de salvar outra vida", afirma padre Monari. Assim, a clonagem com finalidade terapêutica é rejeitada pelo catolicismo, pois quando se trata de extrair células tronco de um embrião acaba-se infringindo o mandamento "Não matarás". "O embrião já é uma vida, que deve ser respeitada por inteiro", afirma padre Monari.

A Carta Encíclica Evangelium Vitae de João Paulo II, não aborda diretamente a clonagem reprodutiva ou terapêutica. No entanto, condena todas as formas de reprodução artificial. Na Carta, as técnicas científicas de reprodução estão lado a lado com outras ações repudiadas pela igreja, como o aborto, a eutanásia, o suicídio e o homicídio. Padre Júlio Monari afirma que o único meio de reprodução humana admitido pelo catolicismo é originado da relação entre homem e mulher. "A Igreja não permite em hipótese alguma a fecundação in vitro, seja ela homóloga, feita com os gametas do casal, ou heteróloga, com um óvulo ou espermatozóide que não provém do casal", afirma ele.

Ainda de acordo com o padre Monari a clonagem humana "já existe". "É um fenômeno natural e acontece com os chamados gêmeos legítimos. Já a clonagem artificial realizada em laboratório, seja a reprodutiva ou terapêutica, não é admitida pela igreja católica.

A Pontifícia Academia Pro Vita do Vaticano já se pronunciou condenando taxativamente qualquer reprodução via clonagem, tanto para finalidades reprodutivas, quanto para finalidades terapêuticas. Entre os problemas apontados, está a possibilidade da aproximação da clonagem com a eugenia, ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie humana e que esteve na base de doutrinas como o nazismo. Paralelamente, pontua-se nesses pronunciamentos outros argumentos contrários a clonagem: redução do significado da reprodução humana ao seu aspecto biológico, numa perspectiva que enquadra a lógica da produção industrial; instrumentalização da mulher, a qual passa a estar limitada às suas funções biológicas, a partir do empréstimo dos óvulos e do útero; perversão das relações fundamentais de filiação, parentesco, consangüinidade e progenitura; falta de identidade da pessoa clonada, que passa a ser uma "cópia".

Dos pronunciamentos da Pontifícia Academia Pro Vita, dois abordam respectivamente as clonagens terapêutica e reprodutiva: a "Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêuticos das células estaminais embrionárias humanas" , de agosto de 2000, e "Reflexões sobre a clonagem" , de 1997, ambos escritos pelo professor Juan de Dios Vial Correa e Monsenhor Elio Sgreccia. Neste último, é interessante notar que a construção da crítica à clonagem humana se faz numa associação com as idéias do filósofo Friedrich Nietzsche, que se desenvolveram em torno de quatro vetores: a morte de Deus, a Vontade de Poder, o Eterno-Retorno e o Super-Homem e constituem, entre outras coisas, uma das mais profundas críticas ao cristianismo. "A proclamação da morte de Deus, na vã esperança de um super homem, traz consigo um resultado evidente: a morte do homem. De fato, não se pode esquecer que a negação da sua dimensão de criatura, longe de exaltar a liberdade do homem, gera novas formas de escravidão, novas discriminações, novos e profundos sofrimentos. A clonagem corre o risco de ser a trágica paródia da omnipotência de Deus".

Clonagem e islamismo
O sheik Aly Abdoune, presidente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica da América Latina (WAMY), afirma que o Islã incentiva todo e qualquer avanço científico que venha a beneficiar o homem, mas que a clonagem é totalmente contrária aos princípios islâmicos e à dignidade do indivíduo. Com relação à clonagem humana, sheik Abdoune afirma que a hereditariedade não é respeitada, pois o indivíduo clonado é desprovido de pai e mãe.

Assim como a questão do parentesco, outro ponto em comum com a crítica católica, é o dos conflitos de identidade que podem fazer parte da vida de um indivíduo clonado. "Não se leva em conta as dificuldades que esta criatura terá no futuro, pois é fatal que seja questionada pelos seus pares sobre a forma excêntrica pela qual veio ao mundo. Isto com certeza trará problemas psicológicos e poderá inserir na sociedade pessoas sem o menor senso de família, a base de uma sociedade sadia", afirma o sheik, que ainda questiona a responsabilidade da sociedade para com os frutos das experiências da clonagem, possíveis seres humanos defeituosos, física, moral e mentalmente.

Acerca da clonagem humana, o sheik Abdoune conclui que criar uma máquina para auxiliar na manutenção da vida de uma criatura é algo incentivado pelo Islã, mas imbuir-se da pretensão de dar vida à esta máquina, dotá-la de alma e consciência deve ser totalmente rejeitado por qualquer criatura com um mínimo de senso ético.

O islamismo também condena a clonagem terapêutica. Para o Islã, "o ser humano é merecedor de respeito. Os seres humanos não são criados por partes e não podem ser alvo de experiências. Toda criatura é obra de Deus, o qual instala almas nos corpos, não por pedaços, mas por inteiro. Não se pode aproveitar determinadas partes de um ser vivo e jogar no lixo outras tantas. Isso é assassinato, é desrespeito com o próximo, é uma violação do direito básico à vida", argumenta sheik Abdoune. Neste aspecto, a religião islâmica aceita e incentiva a doação de órgãos, após a morte do indivíduo, desde que haja permissão do doador e da família e que a doação não ocorra por comércio. Segundo o sheik, a doação de órgãos é mais eficiente do que as experiências de laboratório.

Clonagem e judaísmo
O presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista, rabino Henry Sobel, afirma que é plenamente a favor da pesquisa científica, mas categoricamente contra a clonagem de seres humanos. A posição do rabino muda quando se fala em clonagem animal. Apesar de também conter problemas éticos, ela pode ser justificada com base nos benefícios potenciais para a vida humana.

A idéia da presunção do homem em tentar se comparar a Deus, também está presente nas críticas e questionamentos feitos pelo rabino. "Sinto enorme apreensão diante desse fenômeno. Quantos embriões e quantos bebês mal formados serão destruídos nesses procedimentos? E para quê? Para satisfazer o ego de algum cientista? E, mesmo que não houvesse, no processo de clonagem humana, o risco de formação de fetos defeituosos, há um quê de arrogância em reduzir o mistério da Criação a uma experiência de laboratório". A identidade do indivíduo também é apontada como uma forte preocupação para o rabino. "Não posso deixar de me questionar sobre como seria um mundo repleto de clones humanos. Onde ficaria a singularidade de cada indivíduo, a tão fundamental unicidade do ser humano, se essa unicidade fosse negada pela possibilidade de fazer diversos exemplares de uma pessoa", diz o rabino Sobel.

Outro ponto crítico apontado pelo rabino com relação à clonagem é o fato de que, estabelecida a técnica para fins terapêuticos, nada garante que ela não seja usada para fins reprodutivos. Ambas podem ser disseminadas dificultando o controle por parte dos governos e abrindo brechas para a proliferação de clínicas clandestinas, tal como existe para o aborto.

A eugenia também esta entre os pontos que preocupam o rabino. "Não é absurdo imaginar um banco de células fornecendo matéria-prima para clones de pessoas física ou mentalmente superdotadas. A História já nos deu provas aterradoras do que acontece quando se procura 'aprimorar' a raça humana, a mesma História que nos ensina que a ciência não tem consciência". O rabino diz que, assim como existem cientistas e médicos de elevada moralidade, também há aqueles que se entusiasmam com a pesquisa científica, sem levar em consideração a ética, a finalidade e os meios utilizados. Ele tem dúvidas sobre se a humanidade está realmente preparada para assumir a responsabilidade coletiva de discernir o bem do mal.

Clonagem e espiritismo
Já os espíritas (kardecistas) posicionam-se de uma forma mais cautelosa, apesar de criticarem algumas possibilidades trazidas pela técnica da clonagem. A doutrina espírita surgiu no século XIX e recebeu forte influência do evolucionismo e em muitas ocasiões apoia-se nele e na ciência para explicar questões espirituais. Para a médica espírita Marlene Rossi, presidente da Associação de Médicos Espíritas (Amesp), os últimos avanços na área biológica levaram a uma crise ética sem precedentes na história da ciência e possibilitaram o mais sério encontro entre ciência e religião dos últimos séculos. Para ela, não há dúvidas de que a ovelha Dolly tem alma ou princípio inteligente, do contrário não seria um ser vivo. "Só o Espírito tem o poder de agregar matéria e, consequentemente, de formar o corpo físico, segundo o molde contido em seu envoltório, o perispírito. Assim, se a clonagem humana for sucesso, certamente, não produzirá robôs, mas seres autênticos e distintos uns dos outros, porque cada Espírito carrega em si uma experiência única, de bilhões de anos de evolução", afirma a doutora Marlene Rossi, que ressaltou também a ineficiência atual da técnica de clonagem.

A médica relembra que, para fabricar a Dolly, foram feitas 277 tentativas. Formaram-se 29 embriões e apenas um teve êxito. Constatou-se, porém, que Dolly está precocemente envelhecida. Embora tenha nascido há cinco anos, suas células são equivalentes às de uma ovelha de 12 anos. Este fato estaria ligado a um dos principais problemas da clonagem, o de lidar com células adultas, que estão sujeitas a muitas mutações e, segundo ela, à questão espiritual. O envelhecimento precoce dos clones indicaria que há falhas no processo de produção de fluido vital ou ectoplasma (envoltórios espirituais), provavelmente envolvendo os genes citoplasmáticos e os do núcleo. O clone teria herdado um processo vital em andamento, reiniciado do ponto interrompido, quer dizer do número de anos já vividos pela ovelha clonada.

Do ponto de vista espiritual, Marlene Rossi afirma que, no atual estágio evolutivo, a clonagem humana é indefensável. "Nada pode justificar a realização de experiências com organismos humanos vivos; fazer pesquisas in anima nobile é imoral", diz ela. Do mesmo modo, seria indefensável a manipulação de embriões com finalidade eugênica. Com tais "escolhas" genéticas, os cientistas permanecerão circunscritos ao campo físico, sujeitos às mesmas frustrações de Hitler, diante de Jesse Owens, o expoente negro do atletismo norte-americano, vencedor das Olimpíadas de 1938, em que bateu todos os "arianos puros" alemães. Isto ocorre porque não se pode desconsiderar o Espírito imortal, único responsável pelas qualidades físicas, morais e intelectuais da individualidade, argumenta Rossi.

A médica reconhece que a ciência deve seguir seu curso próprio, desvendando os segredos da natureza. "O nosso respeito pelas conquistas científicas está alicerçado, sobretudo, nas lições de Allan Kardec", diz ela. O respeito aos avanços técnico-científicos não significa uma aceitação tácita de liberdade ética indiscriminada para o cientista. "O pesquisador despreocupado das questões espirituais prosseguirá, normalmente, com a clonagem humana terapêutica; para os especialistas espíritas, no entanto, as indagações éticas continuam em aberto, aguardando respostas mais definitivas", conclui Marlene Rossi.

(MK)

Atualizado em 10/12/2001

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