Educador. Educa a dor. Um ensaio sobre a importância do estudo de psicanálise para a (re)construção do sujeito-aluno

Por Priscila Blazko

Professores responsáveis: Antonio C. de Ávila Jacinto e Eloisa Helena R. Valler Celeri

Trabalho de conclusão do curso “Clínica Psicanalítica para adolescentes”, ministrado entre março e dezembro de 2019 na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e oferecido pela Extecamp.

O sistema e as possibilidades oferecidas pela psicanálise

A palavra “educar” deriva do latim educare, que significa “conduzir para fora” ou “direcionar para fora”. O termo era empregado no sentido de preparar os educandos para o mundo e para viver em sociedade, ou seja, conduzi-los para fora de si mesmos.

A educação como processo social se enquadra numa concepção determinada de mundo, a qual estabelece os fins a serem atingidos pelo ato de educar em consonância com as ideias dominantes numa dada sociedade. Assim, a educação é uma prática social ligada à vida do sujeito “concreto”.

Se analisarmos de maneira bastante sucinta o processo de educação formal no Brasil, veremos que já começou muito mal: com os jusuítas que para cá vieram com o objetivo de catequizar os índios. Ou seja, o sentido da palavra “educar” tornou-se, desde então, bastante limitado. Perdeu-se a perspectiva anterior de conduzir os educandos para fora de si mesmos (e aqui podemos interpretar isso como um processo de (re)descoberta de si, de busca pelo conhecimento a fim de agregar sentido à existência)  e impôs-se a tentativa de anulação do sujeito, de ignorar sua história e sua constituição como sujeitos de sentidos com o único objetivo de inculcar conteúdos que julgavam necessários.

Dessa forma, tanto a teoria quanto as práticas educacionais desenvolveram-se, predominantemente, segundo os padrões dominantes num dado momento histórico, o que leva a educação a funcionar essencialmente como elemento reprodutor das condições políticas, econômicas e culturais de determinada sociedade.

Ao pensarmos, então, no contexto atual do modelo capitalista vigente em nossa sociedade, observamos que a educação tem servido fundamentalmente para dar suporte e continuidade a esse sistema, na medida em que visa simplesmente à qualificação de pessoas para o capital, desmerecendo ou excluindo os que não alcançam o sucesso profissional. O processo educativo iniciado pelos jesuítas, portanto, permanece como principal modelo escolar: anula-se o sujeito, sua história e sua constituição em prol de um modelo de estruturação social.

Apesar das inúmeras contribuições de pensadores e pedagogos ao longo do desenvolvimento da história de nosso país, os quais muito (re)pensaram e (re)organizaram o espaço escolar, nunca se conseguiu de fato interferir no conceito básico de escola, que sempre se configurou como local de aprendizados pré-estabelecidos pelas relações sociais do modelo político no qual está inserida.

Hoje, existem diferentes métodos educativos (tradicional, construtivista, neo-construtivista…), mas nenhum deles consegue se impor às demandas do atual sistema capitalista: todos esses métodos conseguem ser realmente aplicados até, no máximo, o fim do Fundamental II (9º ano ou antiga 8ª série). No Ensino Médio, todas as escolas – todas – adotam o ensino tradicional (mesmo que mascarado por alguma ideia menos estagnada no tempo) como método de ensino. Por um motivo bastante simples: o sucesso de um aluno, de uma instituição escolar e de um professor é medido única e exclusivamente pelo número de aprovações nos vestibulares do país.

Perde-se, portanto, nessa etapa de escolaridade, o significado primordial da palavra educar. A missão de conduzir “para fora de si mesmos”, ou seja, facilitar aos educandos o percurso de se (re)descobrirem e de se (re)constituirem como sujeitos de si mesmos, dilui-se em meio à conformidade de se fixarem como sujeitos a um sistema cruel e massacrante. Anula-se, assim, o sujeito de para a implantação e valorização do sujeito a.

No entanto, creio ser possível encontrar uma brecha no sistema. E é isso que venho tentanto fazer durante meus anos de magistério. E é acreditando nisso que o estudo de psicanálise tornou-se fundamental para significar meu trabalho além do que espera o sistema. Veja bem: além do que espera o sistema. Não se trata de ignorar o objetivo da instituição, mas ir além dele, priorizando o sujeito-aluno e não o objeto do sistema. Há uma historinha da qual gosto muito e que norteia meu trabalho: Ho Chi Minh (1890-1969), revolucionário vietnamita, ao sair da prisão (fora preso por atividades subversivas – era comunista) foi questionado sobre como conseguira escrever versos tão sensíveis no contexto de encarceramento. Ele respondeu: “eu desvalorizei as paredes”.

O educador, se baseado em ideias psicanalíticas, consegue desvalorizar as atividades excessivamente programadas e obter um modo de ver e de entender sua prática educativa. Não como simplesmente um transmissor de saberes, mas como sujeito que se vê confrontado com a subjetividade de seus educandos, que privilegia a escuta da palavra e as relações de sentido que dela derivam.

A partir desses pontos, conforme me ensinou a psicanálise, torna-se possível uma prática educativa que enxerga antes do aluno o sujeito. E, no caso da prática educativa a adolescentes, enxerga a angústia e as dores desses educandos e, mais do que isso, acolhe esses sentimentos a fim de tirá-los da invisibilidade, conduzindo-os para fora e tornando-os palavras. Sendo assim, então, possíveis de serem entendidos e ressignificados.

É dessa maneira que penso ser possível a (re)construção do sujeito-aluno como sujeito de si mesmo.

A brecha no sistema

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

– Em que espelho ficou perdida

a minha face? (Retrato, Cecília Meireles)

Ser adolescente é viver profundas mudanças físicas e emocionais. Há, na adolescência, desilusão com a vida, percepção de dificuldades antes inexistentes (lidar com as transformações do corpo, das relações sociais…) e um medo de, entre tantos percalços, não se encontrar; perder-se para sempre nas dúvidas e no não-lugar em que está essa fase.

Diante dessa realidade, o educador não pode jamais se esquecer de que um dia já foi adolescente. De que também já se viu perdido mas que, de alguma forma, se encontrou. Não há empatia sem que se leve em conta o lugar do outro; não há possibilidade de escapar do sistema se não houver sensibilidade para enxergar o outro tal como ele é, tal como ele pode vir- a – ser.

Há uma Primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder… pra me encontrar…

Amar!, Florbela Espanca

Devo, como parte de meu trabalho, ensinar aos alunos diferentes tipos de produções textuais dentro do gênero dissertativo-argumentativo. As propostas de redação são produzidas por mim, levando em consideração temas atuais para que haja a ampliação de repertório dos educandos. Aí está, portanto, a minha brecha. Com o objetivo de ampliar repertório, posso apresentar-lhes absolutamente tudo (sem, entretanto, ignorar os limites impostos pelas paredes): poemas, tirinhas, charges, artigos, filmes, músicas… Assim, ao elaborar as propostas, tento formulá-las abrindo espaço não só para a discussão do tema, mas fornecendo espaço para um lugar de fala dos alunos. Lugar em que podemos discutir questões diversas suscitadas pela proposta (ou não). Lugar em que acolho os dizeres de diferentes sujeitos e ajudo a ressignificá-los dentro de minhas possibilidades.

Quando lemos juntos os textos, quando assistimos a um filme (e fazemos sua leitura), estamos lendo também as emoções, os outros, o mundo, enfim, a nossa própria vida. São momentos enriquecedores nos quais os alunos – e eu também – sentimo-nos parte de um todo que olha tanto de fora para dentro, quanto de dentro para fora. Um olhar que não tenta aplacar a falta do Outro (a falta necessária para que exista a busca pelo desejo), tão característico da adolescência; trata-se de um “olharmos juntos”, oferecendo ferramentas para que os adolescentes possam partilhar, através da linguagem, suas sensações. E, ao partilhá-las, há possibilidade de torná-las “palpáveis”, resgatando  – por trás das inquietações da adolescência – o desejo e a razão da existência.

“- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação.” (O espelho, Machado de Assis)

Como educadora e com a consciência de algumas teorias psicanalíticas, percebo que o espaço aberto na discussão de diferentes textos torna-se um  lugar de fala para os alunos exporem suas próprias dores e vivências. Assim, a partir da arte–linguagem e da linguagem–palavra, é possível educar a dor  dos alunos, isto é, conduzir para fora as dores tão características dos adolescentes e acolhê-las (muitas vezes no silêncio da escuta), para que os próprios alunos possam confrontar suas palavras com os seus sentimentos. Pois é justamente nesse confronto que acontece e se descobre a vida.

Quando a transgressão não pode ser simbolizada

Só muito depois, tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me

fundamentalmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco;

 antes, porém, eu não podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar –

tomava intuitivo cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o que era, e com

vaidade cultivava a integridade da ignorância.

(Os desastres de Sofia, Clarice Lispector)

A violência urbana é um fato cada vez mais crescente em nossa sociedade. Aliada a ela, vemos aumentar também a violência no âmbito escolar: agressões físicas e verbais de alunos a professores (e vice-versa); depredação da escola; agressões físicas e verbais entre alunos; bullying… Quanto mais carente de recursos está uma sociedade, mais evidente e mais grave é o sintoma da violência.

Se o adolescente precisa ser acolhido em sua subjetividade, ser visto como sujeito, ter um espaço significativo para que possa se (re)descobrir, é evidente que estando em um lugar hostil, sem possibilidade de subjetivação, a pulsão da agressividade deixa de ser latente para se manifestar de diferentes maneiras.

Essa “manifestação” de pulsão ocorre justamente pela falta de valores simbólicos constituídos em uma esfera saudável, em que há uma figura de autoridade – que não age com autoritarismo -, um lugar de fala e regras claras, os quais estabelecem disciplina, sentido e perspectiva ao adolescente. É em uma esfera saudável que a transgressão pode ser simbolizada através, por exemplo, das discussões feitas em classe, da arte em suas diversas manifestações, da leitura de diferentes textos, da leitura de filmes… E quando não há espaço para que a transgressão seja simbolizada em uma dessas formas, ocorre a sua concretização.

O mesmo se pode dizer da violência urbana e escolar: arrancam-se as possibilidades de subjetivação do sujeito e, na falta desta, ocorrem formas violentas de instaurar os valores simbólicos que possibilitariam a constituição do sujeito.

Tenho o privilégio de estar em uma escola que oferece aos alunos e professores suficientes recursos materiais. Uma escola que, de forma geral, é composta por alunos que contam com alguma estrutura familiar (seja ela qual for). Assim, a violência não aparece de forma explícita; ela é mais sutil. Aparece, muitas vezes, nas entrelinhas das aulas e dos relacionamentos que se constituem no ambiente escolar; aparecem nas transgressões das regras escolares, no abandono da responsabilidade escolar. E posso afirmar que tal “violência sutil” revela-se justamente quando o educador e/ou a instituição arrancam dos educandos seu lugar de fala, seu espaço de subjetividade.

Para os adolescentes, desobedecer faz parte do processo de construção da própria identidade (“serás no futuro aquilo a que desobedeceres hoje”). Ao desobedecerem, os alunos experimentam o desejo de transgressão, tornam-na concreta e podem elaborar o vazio deixado pelo espaço de subjetividade que deveriam ter.

É evidente para mim, portanto, a necessária articulação entre educação e psicanálise.

Se desejarmos ir além do que nos exige o sistema, se desejarmos oferecer um espaço para a (re)construção do sujeito-aluno, se desejarmos que o Outro se revele no reflexo do espelho para que o ser inteiro possa se configurar como existência e como resistência do próprio desejo, estaremos retomando o sentido primeiro da palavra “educar”.

É dessa maneira que penso ser possível fazer valer o significado do espaço da sala de aula como espaço de nutrição.

Da alma.

Da vida.

Mulher em frente ao espelho, Pablo Picasso

 

Eis que um segundo nascimento,

não advinhado, sem anúncio,

resgata o sofrimento do primeiro,

e o tempo se redoura.

Amor, este o seu nome.

Amor, a descoberta

de sentido no absurdo de existir.

O real veste nova realidade,

a linguagem encontra seu motivo

até mesmo nos lances de silêncio.

 

A explicação rompe das nuvens,

das águas, das mais vagas circunstâncias:

Não sou Eu, sou o Outro

que em mim procurava seu destino.

Em outro alguém estou nascendo.

A minha festa,

o meu nascer poreja a cada instante

em cada gesto meu que se reduz

a ser retrato,

espelho,

semelhança

de gesto alheio aberto em rosa.

(Nascer de novo, C. Drummond de Andrade)

 

Referências Bibliográficas:

– Althusser, L. (1985). Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro, Graal.

– Foucault, M. (1998). A Ordem do Discurso. São Paulo, Edições Loyola.

– Freud, S. (1974). Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. Vol. XIII – Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago.

– ________ (1974). O Mal-Estar na Civilização. Vol.VIII – Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago.

– Kupfer, M.C (2013). Educação para o Futuro. Psicanálise e Educação. São Paulo, Escuta.

– Lacan, J. (1953). O simbólico, o imaginário e o real. Conferência na Sociedade Francesa de Psicanálise.

– Winnicott, D.W (1971). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago.

– ________ (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas.

– ________ (2013). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo, Martins Fontes.