Microrganismos são alternativa sustentável para recuperação de áreas contaminadas

Luanne Caires

O avanço da microbiologia tem estimulado o uso de fungos e bactérias no tratamento de poluentes – a chamada biorremediação

A discussão sobre combustíveis está em alta no Brasil. Em maio, caminhoneiros de todo o país iniciaram uma paralisação motivada, principalmente, pelo aumento do preço do diesel, o que afetou o abastecimento de produtos e causou prejuízos para alguns setores. Mas os impactos dos combustíveis vão muito além dos aspectos econômicos. Eles geram um custo ambiental elevado: segundo o último relatório da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), há 5.942 áreas com algum grau de contaminação no estado, sendo 72% delas em decorrência da atividade de postos de combustíveis. A recuperação dessas áreas conta com aliados muito importantes, mas pouco lembrados: os microrganismos.

Bactérias dos gêneros Bacillus, Pseudomonas, Rhodobacter e Achromobacter são exemplos de microrganismos capazes de degradar petróleo e seus derivados por um processo conhecido como biorremediação. Além das bactérias, fungos e plantas também são utilizados para remover ou degradar contaminantes ambientais.

A contaminação por petróleo, metais pesados, agrotóxicos, esgoto e outros resíduos também pode ser revertida com a aplicação dessa técnica versátil e, muitas vezes, mais barata e ecologicamente sustentável do que as técnicas tradicionais.

Microrganismos que estão naturalmente no ambiente são elementos importantes na degradação do petróleo, transformando-o em gás carbônico e água. Fonte: Fisheries and Oceans, Canada.

Comparada a outros métodos físicos e químicos, a biorremediação se destaca por otimizar processos que já ocorrem naturalmente. Os microrganismos presentes nas áreas contaminadas são resistentes às condições alteradas pelos poluentes, e muitas das espécies têm mecanismos para transformar ou incorporar o contaminante. Elen Aquino, pesquisadora da Unifesp e do Centro de Pesquisa em Meio Ambiente da USP (Cepema), explica que, por essa razão, a busca por organismos biorremediadores é realizada em locais com contaminação comprovada, pois nessas áreas o conjunto de bactérias (microbiota) já está adaptado ao contaminante de interesse.

“Amostras do ambiente contaminado são coletadas, e os microrganismos são selecionados e criados em laboratório – etapa que pode variar de dias a meses, dependendo da toxicidade do poluente e da biodiversidade contida na amostra ambiental. Depois, os microrganismos passam para um reator industrial, para aumento de escala e geração de um produto biotecnológico, etapa geralmente realizada por empresas da área de saneamento”, diz Aquino.

Escolha da melhor técnica

Depois que os microrganismos com potencial são encontrados, a aplicação da biorremediação se dá de duas formas. A primeira delas é baseada no princípio da bioestimulação, utilizando microrganismos do próprio local contaminado e estimulando sua atividade com a adição de nutrientes, oxigênio e outros compostos.

Em locais onde os microrganismos nativos são insuficientes para a degradação do contaminante, pode haver a aplicação de microrganismos externos, gerando uma atividade mais eficiente. Essa técnica é conhecida como bioaumentação e tem risco ambiental reduzido, pois os microrganismos adicionados ao local precisam ser específicos para biodegradar o contaminante, e atuam sem interferência nos processos naturais típicos daquela área.

A escolha da melhor técnica depende das características dos próprios poluentes e das condições ambientais da área contaminada, como temperatura, acidez ou alcalinidade e concentração de nutrientes. Segundo Aquino, “áreas contaminadas com compostos orgânicos são as que apresentam melhores resultados, porque o próprio contaminante serve de fonte de alimento para os microrganismos, e pode ser completamente degradado a gás carbônico, água e sais minerais. Os compostos mais difíceis de se degradar são os orgânicos clorados [como muitos pesticidas] por serem altamente tóxicos, e os compostos inorgânicos, como os metais pesados. A mistura de substâncias também pode inibir a biodegradação de alguns contaminantes da amostra”.

Quando a eficiência da biorremediação é baixa, são utilizados procedimentos complementares. Juliana Freitas, pesquisadora do Laboratório Multidisciplinar em Mineralogia, Águas e Solos (Lamas – Unifesp), diz que não existe solução única para todos os problemas e explica que, nos casos em que as condições naturais não são propícias para a biorremediação, geralmente se utiliza uma combinação dessa técnica com métodos físicos e químicos, como remoção, oxidação química e a extração de vapores.  “Às vezes já há condições naturais propicias para a biodegradação, e às vezes não. Então você precisa fazer alterações para que ela seja viável, combinar as técnicas para ter um resultado mais interessante”, afirma.

Independente da técnica escolhida, algumas etapas são essenciais ao processo. A professora Aquino complementa com o passo a passo: primeiro, o local contaminado deve ser devidamente avaliado para que se escolha a melhor tecnologia de remediação naquele caso; depois, o produto biotecnológico deve ser liberado pelo órgão de controle ambiental competente, com testes de eficiência e de toxicidade para o ser humano e para outros organismos do meio ambiente.

Petróleo, solventes e metais como principais alvos

No Brasil, a principal contaminação de áreas ocorre por resíduos de postos de combustíveis, seguidos por metais e solventes halogenados (aqueles com cloro, flúor, bromo e iodo, muito utilizados em indústrias). Ao menos, essa é a realidade para os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, únicos estados brasileiros com informações sistematizadas sobre áreas contaminadas.

O padrão é semelhante ao de outros lugares do mundo: na Europa, os metais pesados e óleos minerais contribuem com 60% da contaminação de solos e 53% da contaminação de águas subterrâneas; já nos Estados Unidos, os produtos de petróleo, solventes e metais também são os poluentes mais comuns.

Exemplos bem-sucedidos do uso de microrganismos no combate a esses poluentes são antigos. No caso dos postos de combustíveis, métodos físicos e químicos ainda predominam, mas a biorremediação de petróleo foi essencial em contaminações em escalas maiores.

Em 1989, um petroleiro norte-americano da Exxon Valdez se chocou contra um recife no Alasca e ocasionou o vazamento de 42 mil toneladas de petróleo no oceano, um dos mais graves vazamentos de óleo da história. Com a dificuldade de remoção física do poluente, a petrolífera adotou a técnica de biorremediação e utilizou cerca de 48 toneladas de fertilizantes, distribuídos em diferentes pontos da costa, para aumentar a população natural de bactérias capazes de degradar o petróleo. Os resultados foram positivos. Em três anos, a área contaminada foi reduzida para quase 1% da extensão original e a população bacteriana retornou aos níveis considerados normais antes do acidente.

Em 2010, as bactérias também foram responsáveis por grande parte da degradação de óleo no Golfo do México, após a explosão da plataforma de perfuração Deepwater Horizon, que operava para a petrolífera British Petroleum (BP).  O acidente derramou milhões de litros de petróleo no mar e atingiu mais de dois mil quilômetros de costa.

Mancha de óleo resultante da explosão na plataforma Deepwater Horizon, no Golfo do México (2010). Fonte: EPA/Reuters/Nature

Na mineração, a biorremediação tem sido mais voltada para o uso das plantas como transformadoras ou acumuladoras dos contaminantes. Porém, pesquisas mostraram a utilidade dos microrganismos como remediadores, com várias espécies de bactérias e fungos capazes de degradar cobre, chumbo, urânio e outros metais. Tanto é que as próprias mineradoras estão interessadas no desenvolvimento de técnicas que utilizam os microrganismos. É o caso da Vale, que em 2015 estabeleceu uma parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para pesquisar microbiota capaz de degradar o creosoto, substância utilizada antigamente pela empresa para conservação de madeira em ferrovias. Parcerias como essa poderiam ser úteis no caso do desastre ambiental causado pelo rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana – MG, há dois anos e meio. No entanto, o uso da biorremediação não consta nos planos de remediação propostos pela Samarco após o acidente.

Campos e plantações

Apesar de ser menos registrada nos levantamentos de áreas contaminadas, a poluição decorrente de práticas agrícolas também tem preocupado os especialistas. No campo, por exemplo, com o uso de pesticidas. Segundo Jackson Marcondes, professor do Departamento de Biologia Aplicada à Agropecuária da Unesp, a agricultura sempre se depara com novas formas de antigos problemas. “Até há pouco tempo, as plantas transgênicas eram vistas como uma forma importante de reduzir os pesticidas. Mas, hoje, as plantas que foram lançadas há algumas décadas não são mais resistentes às pragas, porque os insetos já evoluíram. Buscam-se novas ferramentas de transgenia e novos inseticidas para combater esses insetos. Mas se a indústria lança novos pesticidas tóxicos, que oferecem risco ao ambiente, ela tem que trabalhar paralelamente em métodos para controlar sua disseminação. E a biorremediação é uma boa medida”, afirma Marcondes.

Outro problema apontado pelo pesquisador é o excesso de matéria orgânica nos plantios, como é o caso do reaproveitamento da vinhaça das indústrias sucroalcooleiras nas lavouras de cana-de-açúcar. A vinhaça é o resíduo que sobra após a destilação do caldo de cana fermentado para a obtenção de etanol e, para cada litro de etanol produzido, são gerados cerca de 13 litros de vinhaça. Como a vinhaça é rica em nutrientes, algumas usinas aplicam esse produto de volta na área de cultivo, como forma de aumentar a produtividade e reduzir o uso de fertilizantes químicos.

Contudo, é preciso cuidado. O poder poluidor da vinhaça é cerca de cem vezes maior do que o do esgoto doméstico, pois contém muita matéria orgânica, baixo pH, é muito corrosiva e sai dos destiladores a altas temperaturas (de 85 a 90°C). Com isso, os impactos negativos podem ser grandes no solo, rios, nascentes e lençóis freáticos – pois o escoamento de água carrega a vinhaça.

Uma solução é o uso de microrganismos. “No tratamento de subprodutos da indústria sucroalcooleira, como a própria vinhaça, você pode ter microrganismos que atuem como biotransformadores dessa matéria que, de maneira geral, é tóxica in natura para a própria lavoura. Os microrganismos transformam [a vinhaça] em uma forma mais aproveitável, em termos de nutrientes, com papel mais efetivo na produção e crescimento das plantas”, complementa Marcondes.

Alternativa sustentável, mas ainda pouco utilizada

O investimento em processos de biorremediação cresceu muito nos últimos 30 anos em decorrência da crescente preocupação ambiental e das vantagens associadas à degradação de contaminantes por microrganismos. Segundo levantamento realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o número de patentes registradas na área de biorremediação saltou de 3 em 1982 para 529 em 2014.

Os principais países responsáveis por esse aumento são Estados Unidos, China e Japão, especialmente devido a esforços de empresas. As universidades e órgãos governamentais aparecem em segundo plano, indicando que a iniciativa privada domina a pesquisa e a aplicação da biorremediação. Esse crescimento no uso da técnica se reflete em movimentação financeira: de acordo com pesquisa realizada pela organização Transparency Market Research, o mercado global de tecnologias e serviços de biorremediação foi avaliado em US$ 32 bilhões em 2016 e deve atingir os US$ 65 bilhões até 2025.

Origem das patentes em biorremediação. Fonte: Carmo e colaboradores (2015).

Apesar do crescimento do setor, a aplicação de técnicas de biorremediação ainda não é muito difundida entre as empresas que atuam no ramo de recuperação de áreas contaminadas no Brasil. Em São Paulo, das mais de 5 mil áreas contaminadas, apenas 70 passaram por algum processo de biorremediação, o que corresponde a menos de 2%.

Nos Estados Unidos, essa porcentagem é de 13% para tratamento no local (in situ) e 11% para tratamento fora da localidade (ex situ), considerando as áreas remediadas pelo Superfund, principal programa federal de remediação.

Mas não é só em número de áreas contaminadas que a aplicação da biorremediação é limitada no Brasil. De acordo com levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP (IPT), apenas 52% das empresas que atuam na cadeia produtiva de gerenciamento de áreas contaminadas (GAC) utilizam essas técnicas. Para as empresas, a principal dificuldade envolvida no processo é o maior tempo de operação da biorremediação em comparação com tecnologias físicas e químicas tradicionais.

O longo tempo desse processo reduz o retorno financeiro da empresa e dificulta que se deem respostas rápidas aos envolvidos, como clientes, comunidade, poder público e imprensa. Essa pressão é maior quando a contaminação coloca em risco a população ou causa danos irreversíveis ao ecossistema.

A estimulação do uso da biorremediação pode ser favorecida com o desenvolvimento de pesquisas que acelerem o processo. Como em outras áreas do conhecimento, a maior parte da pesquisa no país é feita nas universidades, e não nas empresas. Por essa razão, aproximar os meios acadêmico e empresarial é importante para a difusão de novas tecnologias. Em fevereiro desse ano, o governo regulamentou a nova Lei de Inovação que pode ajudar na aproximação entre órgãos públicos, universidades e iniciativa privada.

No entanto, para Aquino, ainda há um longo caminho. “A parceria público-privada ainda é bastante tímida, principalmente pela falta de conhecimento dos mecanismos de transferência de tecnologia. O Brasil ainda não possui uma ‘cultura’ de transferência de tecnologia e as instituições científicas e tecnológicas (ICTs) apresentam dificuldades diversas para a estruturação de seus núcleos de inovação. Neste sentido, a autoavaliação institucional e a criação de um planejamento estratégico das ICTs despontam como um importante ponto de partida para a elaboração de uma política institucional de inovação, gestão de propriedade intelectual e, consequentemente, implementação de um núcleo de inovação tecnológica”, afirma a pesquisadora.

Organizar e difundir informação é essencial

Além de promover a integração entre empresas e centros de pesquisa e tecnologia, organizar as informações sobre áreas contaminadas e técnicas de remediação é essencial. No Brasil, o Banco de Dados Nacional sobre Áreas Contaminadas foi instituído por lei em 2009 e deveria disponibilizar informações sobre as áreas contaminadas de todos os estados brasileiros. Entretanto, apenas três têm essas informações disponíveis: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nos outros estados a situação é preocupante porque o sistema de gerenciamento de áreas contaminadas é incipiente, mesmo com a industrialização aumentando rapidamente.

Juliana Freitas destaca que parte do problema é a baixa quantidade de pessoas treinadas para o trabalho com áreas contaminadas. “Há uma situação muito desigual entre os estados. Existe uma legislação federal para o acompanhamento de áreas contaminadas e a tendência é que isso se torne mais comum nos outros estados nos próximos anos. Mas ainda é um esforço grande ter um órgão ambiental com pessoas capacitadas para trabalhar com áreas contaminadas. Boa parte dos órgãos ambientais sofre com o baixo número de profissionais com capacitação para conduzir investigações nesse setor, analisar os resultados e fazer uma análise um pouco mais completa. Então o desenvolvimento das técnicas acaba acontecendo mais entre as empresas de consultoria. O órgão ambiental acaba ficando mais na parte de controle e fiscalização das empresas”, afirma Freitas.

A divulgação sistematizada de informações facilita o conhecimento da sociedade e das empresas sobre o tamanho do problema e o potencial do uso de microrganismos como solução. “Hoje temos uma série de recursos que podem ser explorados biotecnologicamente, mas falta difusão do conhecimento, investimento público e privado na aplicação efetiva desses recursos, investimento em pesquisa. Por meio do conhecimento, as pessoas que atuam nessa área realmente podem vislumbrar a biorremediação como algo que traga um benefício não só ecológico, mas de sustentabilidade econômica. Esse processo leva tempo, depende de dinheiro e, obviamente, de difusão do conhecimento para o grande público”, diz Marcondes.

Para Freitas, as perspectivas são otimistas. Segundo ela, o uso da biorremediação tem crescido, principalmente devido aos avanços nas técnicas de microbiologia: “embora a aplicação das técnicas de biorremediação tenha uma defasagem em relação ao desenvolvimento de técnicas de sequenciamento genético e outras possibilidades biotecnológicas, as aplicações ajudam cada vez mais na recuperação das áreas contaminadas” afirma a pesquisadora do Lamas.

Luanne Caires é formada em Biologia (USP). Cursa o mestrado em Ecologia (USP) e é aluna da especialização em Jornalismo Científico (Labjor/Unicamp).