Reportagens






 
Subsídios agrícolas dos ricos prejudicam países pobres

A última reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) não chegou a um consenso algum entre os países membros, mas estabeleceu uma nova relação entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento - até então passivos às regras estabelecidas pelas grandes potências. Liderado pelo Brasil, Índia e China, o chamado G-20+, grupo de países emergentes e em desenvolvimento, foi criado durante a reunião de Cancún, no México, de 8 a 14 de setembro deste ano, como um basta à tímida participação que esses países vinham tendo nas negociações comerciais internacionais.

Convencidos de que o melhor acesso ao comércio internacional é uma das formas mais eficazes de diminuir a pobreza, os países do G-20+, que representam metade da população mundial, recusaram-se a aceitar os termos do documento proposto pelo secretário geral da OMC, Carlos Pérez de Castilho, por considerá-los favoráveis aos países ricos. No documento, o enfoque não foi dado às questões agrícolas - como queria o G-20+ - mas sim a pontos ligados à desburocratização alfandegária, investimentos estrangeiros e compras governamentais. A eliminação do apoio doméstico, a redução dos subsídios à exportação e a derrubada das tarifas de importação estavam entre as medidas prioritárias para a agricultura pedidas pelo G-20+, em documento que foi levado à reunião. Em função da necessidade de comum acordo entre os membros da Organização para que as propostas sejam aprovadas, ambos os documentos levados à Cancún foram rejeitados.

A história de desacordos na OMC, hoje com 148 países membros, remete à 1995, quando foi criada com o objetivo de estabelecer regras para o comércio internacional. Já naquela época, os países pobres demandaram a incorporação do setor agrícola. Entre as bases de negociação estavam o acesso aos mercados, a competição das exportações e o apoio aos mercados internos, que constam no Acordo sobre Agricultura (AsA) iniciado durante a chamada Rodada de Uruguai (1986-1994). Entre as metas do acordo estavam a abertura dos mercados, a redução ou fim do protecionismo e dos subsídios sobre produtos agrícolas e a redução das tarifas sobre produtos agrícolas de importação e exportação. Em 2001, na Rodada de Doha, no Catar, os subsídios agrícolas passaram a ser o centro das negociações, muito embora os países pobres já tivessem alertado para a insuficiência dos acordos estabelecidos no Uruguai.

De lá para cá, houve a redução de tarifas de alguns produtos e a perpetuação de condições que privilegiam o controle do mercado agrícola de gigantes como a União Européia e Estados Unidos, em detrimento dos países menos favorecidos. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), 70% da população de países em desenvolvimento depende desse setor como fonte de subsistência e 26% do produto interno bruto destes é gerado a partir do campo. Em contrapartida, os países ricos, empregam apenas 5% da força de trabalho no setor agrícola, que contribui com cerca de 2% do PIB.

Parâmetros Países desenvolvidos Países em desenvolvimento (Incluindo os menos desenvolvidos)
Natureza do sistema de agricultura Comercial/dirigido à exportação Subsistência
Parcela no PIB 3% 26%
População envolvida na agricultura 4% 70%
Dirigido ao mercado Forte Fraca
Capacidade Administrativa Alta Baixa
Adaptado do relatório "The WHO Agreement on Agriculture", da ONG ActionAid.

Barreiras que aumentam o fosso Norte-Sul
Estados Unidos e União Européia investem US$ 350 bilhões ao ano para proteger produtos agrícolas como laticínios, açúcar, arroz, trigo, milho e carne. Esses subsídios criam uma situação artificial de mercado, que mina a competição igualitária de outros países produtores. Os governos ricos pagam, para os agricultores, a diferença entre os custos de produção e o valor dos produtos agrícolas no mercado internacional. Há casos em que o custo de produção nesses países chega a ser superior ao valor pago pelos produtos no mercado internacional. Essa prática força uma queda internacional dos preços, o que diminui a competitividade dos países em desenvolvimento e, eventualmente, mina a própria produção destinada ao mercado interno desses países, já que os produtores locais ficam incapazes de competir com produtos importados tão baratos. Para se ter uma idéia, os subsídios concedidos pela União Européia reduzem o custo de produção do trigo em 30 ou 35% e do açúcar de 60 a 75%, e, nos Estados Unidos, o milho tem redução de 5 ou até 35% e o algodão de 15 a 20%.

Resultado: a FAO estima que, desde 1980, os países mais pobres aumentaram suas importações, e a saída de recursos para o exterior, em até 60%. Os subsídios são considerados pelo G-20+ uma forma de dumping, termo que caracteriza a venda de produtos com preço abaixo do custo de produção com o objetivo de conquistar mercado, o que gera uma competição desleal, ferindo, portanto, o princípio da competitividade, regulador central das trocas internacionais.


ONGs realizaram protestos em Cancún.
Na imagem lê-se "Não à OMC".

As queixas contra os efeitos colaterais dos subsídios agrícolas têm encontrado voz em ONGs como a inglesa Oxfam e a ActionAid, que denunciam que as regras estabelecidas na OMC beneficiam os mercados dos Estados Unidos e da UE. A Cláusula de Paz, por exemplo, é uma dessas. Trata-se de um mecanismo por meio do qual os países membros concordaram em não se queixar de práticas agrícolas desleais, como os subsídios, praticados por outros países pertencentes ao grupo, em prazo que expira no final de 2003. Assim, casos de subsídios que estão acabando com a agricultura familiar e de pequenos produtores, além de comprometer uma política de segurança alimentar em países em desenvolvimento, têm se multiplicado. Entre eles, consta o do algodão norte-americano, que têm prejudicado a produção de países como Bali, Mali, Arade e Burkina Fasso, que responde por 80% da receita de exportação deles; o milho dos Estados Unidos que prejudica os agricultores mexicanos; o açúcar e os laticínios europeus que causam sérios problemas sociais em países da África e na República Dominicana.

Entenda o que são as caixas coloridas da OMC

Estabelecidas para categorizar e facilitar o controle de subsídios na agricultura, a OMC determina 4 caixas principais;Laranja ou Âmbar, define limites máximos para o uso de subvenções à agricultura. A Organização pode intervir caso estes limites sejam ultrapassados. Estes são os subsídios proibitivos.Azul permite auxílios condicionados a um programa de limitação de produção.-Verde, determinam os subsídios agrícolas menos distorcivos. Estabelece medidas de apoio à produção doméstica, na condição de resultarem em efeitos distorcivos mínimos ou nulos ao comércio ou à produção.-S&DT, ou caixa de tratamento especial e diferencial, criada para proteger os nomeados países menos desenvolvidos.

O caso do milho, cultivado há mais de 10 mil anos no México, onde existe a maior biodiversidade de sementes, é um dos mais utilizados para demonstrar o prejuízo que o subsídio agrícola causa para os países em desenvolvimento. Desde a entrada do país no Tratado de Livre Comércio das Américas (Nafta), de 1994, as exportações de milho dos Estados Unidos triplicaram, segundo informa documento preparado pela Oxfam sobre dumpings. Os mais de US$ 10 milhões financiados, em 2000, pelo governo norte-americanos aos produtores de milho, não são reconhecidos pela OMC como subsídios, pois não se enquadram nas categorias existentes, chamadas de Caixas. Consequentemente, o preço do milho no mercado internacional despencou até 70%, desde 1994, ficando muitas vezes abaixo do custo de produção, convidando o governo mexicano a consumir o produto estrangeiro e forçando inúmeros pequenos produtores a investir menos em suas plantações, trabalhar mais e abrir mão de necessidades básicas de sobrevivência, como o acesso à uma maior variedade alimentícia, ao tratamento de saúde básico e à educação. Essa situação tem causado impacto, inclusive, no fluxo migratório aos Estados Unidos. O número de agências de viagens em Comalapas, cidade localizada em um dos estados mais pobres do México e que faz fronteira com os Estados Unidos, aumentou consideravelmente. Sem expectativas, estima-se que 300 mil trabalhadores emigrem para o país vizinho.

Proteções podem ser bem-vindas
Isso não quer dizer que todo subsídio deva ser mal visto. Valquíria da Silva, pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola (IEA), acredita que, caso eles sejam utilizados com objetivos e tempos determinados, os subsídios podem promover a modernização de setores econômicos tecnologicamente atrasados, tornando-os competitivos e autônomos para se manterem no mercado, ou ainda, para garantir a inserção ou evitar a exclusão de segmentos produtivos da economia de mercado, como no caso da produção de subsistência.


Altar em homenagem ao agricultor que se suicidou durante
a reunião da OMC. Na imagem, o sul-coreano carrega um cartaz
com os dizeres: "A OMC mata os agricultores".

Caso se trate de produtos-chave para a manutenção da segurança alimentar para determinado país, a OMC estuda a possibilidade de haver um mecanismo de salvaguardas especial para alguns países em desenvolvimento, que permitiria a colocação de barreiras tarifárias sobre importações como modo de proteger o produto interno de ser engolido pelos baixos preços do concorrente. Na realidade, este mecanismo já existe, mas vale apenas para 38 países (sendo 22 desenvolvidos), cujas barreiras eram ausentes até a Rodada do Uruguai.

Embora uma das maiores críticas aos acordos da OMC seja o fato de colocar países ricos e pobres sob as mesmas regras, espera-se que, com a formação de um forte negociador dentro da OMC, o G-20+, algumas exigências do hemisfério Sul passem a ser atendidas, diminuindo o poder de decisão do Norte. Embora a última reunião da Organização não tenha resultado em acordo, revelou o desejo dos países empobrecidos de terem voz nas negociações internacionais. Caso não sejam ouvidos, podem vetar qualquer tentativa de aprofundamento da liberalização em outras áreas de interesse dos países ricos, como o setor de serviços. O próximo dia 1 de janeiro marca o fim da vigência da Cláusula de Paz, quando os países poderão questionar os subsídios na área agrícola nos tribunais da OMC.

"O comércio mais livre é uma solução utópica, visto que quando se trata de interesses econômicos todos querem ganhar e o poder de barganha nunca é igual no cenário internacional", lembra Valquíria da Silva. As ONGs que se manifestaram em Cancún, e mantém uma vigilância constante sobre as negociações da OMC, têm enfatizado a oposição entre o "comércio livre" e o "comércio justo". Para elas, a liberalização do comércio por si só não trará benefícios aos países empobrecidos. Seria preciso criar regras especiais que reconhecessem a diferença entre os países e permitissem uma competição mais igualitária no mercado mundial.

De acordo com cálculos do Banco Mundial, caso a atual Rodada de negociações da OMC se complete no prazo previsto - fim de 2004-, for bem sucedida, o que muitos duvidam, poderia tirar 144 milhões de pessoas da pobreza e resultaria em um acréscimo de aproximadamente US$520 bilhões à renda global até 2015.

(GB)

 
Anterior Proxima
Atualizado em 10/10/2003
http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2003
SBPC/Labjor
Brasil