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As imagens da velhice no cinema

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As imagens da velhice no cinema

Jean Luc Godard situava o cinema "entre a vida e a arte". É nesse espaço que a tela escura se ilumina, e um novo tempo se anuncia. Tempo-possibilidade de ver histórias nunca vistas e imaginadas, de entrar em contato com novos mundos, de pensar sobre o mundo e nossa existência nele. Apesar da velhice não ocupar um espaço central na temática cinematográfica são inúmeros os filmes que geram, em luz e sombra, múltiplas imagens do envelhecimento humano. Para Milton José de Almeida, coordenador do Laboratório de Estudos Áudio Visuais OLHO, da Faculdade de Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um filme apenas não esgota a imagem da velhice no cinema. "Vários filmes compõem um cenário real e diversificado de personagens", diz. Passear por filmes de diferentes nacionalidades e gêneros torna-se, portanto, um interessante caminho para compor uma imagem da velhice no cinema.

Diferente da maioria de nós, o olhar dos pesquisadores sobre os filmes orienta-se, em grande parte, pelos seus referenciais teóricos. Estes referenciais não são únicos para todos os pesquisadores, existem várias maneiras de olhar para um filme e gerar sentidos sobre ele. No campo do cinema há "a Escola Psicanalítica, o Pós-estruturalismo, o Cognitivismo e o Método Histórico", comenta Lúcia Nagib, professora e pesquisadora do Instituto de Artes da Unicamp. Essas múltiplas formas de olhar produzem análises diversas sobre um mesmo filme. Lúcia Nagib tem se aproximado da última perspectiva, baseando-se em autores como Walter Benjamim, na qual a análise de um filme "não deve levar em consideração apenas o texto, mas o contexto em que o filme é produzido. Não se olham apenas os fatos isolados, mas também a história, inclusive a história do cinema".

A análise dos filmes, nesse sentido, anuncia uma possibilidade de compreender a influência cultural na produção cinematográfica, e de entender a multiplicidade de imagens da velhice que aparecem nas produções fílmicas. "Os filmes norte-americanos, por exemplo, têm como marca o 'fazer chorar', o apelo ao humanismo. Eles são bastante moralistas e antieróticos por excelência. Focalizam o valor pessoal de cada um (o self made man) e o social não parece ter importância. Essa maneira de pensar influencia na forma como o velho aparece no cinema", analisa Lúcia Nagib. Já nos filmes japoneses, aparece o respeito e a admiração da sociedade pelos velhos, "o velho é tratado com uma super reverência, algo quase moral e você não encontra um velho muito degradado", ressalta Milton Almeida, que também chama a atenção para o fato de aparecer muito, em filmes americanos e europeus, "o velho sozinho, longe dos filhos", como em Estamos todos bem e Conduzindo Miss Daisy, o que é raro em filmes árabes e japoneses, nos quais "o clã familiar funciona e os filhos vivem junto com os pais", como em A Balada de Narayama.

É bom lembrar que essas imagens não são necessariamente reprodutoras da realidade americana, européia ou japonesa, e sim, muitas vezes, negociam com os códigos culturais destas sociedades, que dificilmente aceitam a exposição de certas imagens nas telas da vida, quanto mais nas telas do cinema. São imagens que têm um "valor de culto" e não de "exposição", para utilizar expressões de Walter Benjamim. O filme americano Deuses e monstros, de Bill Condon, por exemplo, aborda a vida do diretor de cinema James Whale, autor de filmes como Frankenstein, trazendo para a tela a homossexualidade, o desejo, a solidão, a degeneração física e mental devido a um derrame do velho cineasta. Lúcia Nagib comenta que "um filme que mostra um velho que faz sexo, por exemplo, vai ter que matá-lo no final". Em Deuses e monstros, coincidência ou não com o que diz a pesquisadora, esse é o fim do velho cineasta, no filme e na vida real, que se suicidou na piscina de sua casa, deixando um bilhete em que dizia que a vida, na velhice, se tornara insuportável, e que não culpava ninguém por sua morte. Filmes como este se tornam intoleráveis para grande parte da sociedade, ocupando, quase sempre, um espaço marginal na produção cinematográfica.


Filme Deuses e Monstros (fonte: www.godsandmonsters.net)

Mas, a própria Lúcia Nagib lembra que "a originalidade do filme Chuvas de verão de Cacá Diegues, está em mostrar que há desejo entre pessoas de terceira idade. O filme fala do sexo, do desejo e do amor na velhice". O segredo parece estar na maneira bela e envolvente como o cineasta trata do desejo e do amor na velhice em seu filme, e talvez no fato de abordar um amor heterossexual. Carlos Diegues conta que apesar dessa questão estruturar o filme, este foi pensado em torno do "aposentado que começa a descobrir a verdadeira vida, por baixo das aparências, de seus vizinhos, não se interessando apenas pelo amor na terceira idade". O cineasta já se preocupava com o assunto em 1977, e ressalta que não tinha uma teoria anterior ao filme, e sim o que chama de insights, "que organizam o filme da maneira como ele é". Foram as histórias de vida de três irmãs que conheceu, e a famosa canção Caminhemos (de Herivelto Martins), que uma "velha e solteiríssima tia" cantava, que inspiraram a trama do filme.


Cena do filme Chuvas de verão (fonte: www.cacadiegues.com.br)

O tempo de envelhecer
Quando a vida das pessoas durante a velhice invade as telas de cinema, a morte é um dos marcos do "tempo de envelhecer" que aparece com freqüência nas narrativas dos filmes. Para Cacá Diegues a maneira como a sociedade vê a velhice, especialmente quando esta aparece como uma imagem não desejada, está intimamente relacionada à compreensão da morte. "Viver equilibradamente os prazeres específicos de cada idade, talvez seja o grande mistério da vida e da felicidade. No fundo, a questão que está por trás disso é mesmo a da morte. A velhice é indesejável porque ela nos aproxima da morte, nos confirma a certeza dela. Recusar a idéia da velhice e suas conseqüências é recusar a idéia de morte, não querer se entender com ela. E essa não é uma manifestação cultural, ela está gravada no destino de todo homem vivo", diz o cineasta. O professor Milton Almeida lembra que "na nossa sociedade ficar velho não é bom. Precisa juntar muita filosofia para pensar a velhice como algo bom. Na cultura japonesa há um espaço para a velhice, o velho tem um papel, na própria religião há um lugar para o velho", e acrescenta que "para fazer ficar boa a velhice, são criadas na nossa sociedade um monte de instituições que tentam administrar a velhice, como a gerontologia e a medicina".

Em Copacabana, de Carla Camurati, a trama gira em torno da morte do personagem Alberto. Na véspera do seu nonagésimo aniversário Alberto encontra-se envolvido em pensamentos sobre a morte, "é... Salvador Dali tinha razão, cada vez que alguém morre na Terra, o culpado é Júlio Verne. Foi ele que inventou esse desejo por viagens interplanetárias. Talvez, todas essas pesquisas biológicas façam com que um dia o homem não morra, mas enquanto isso...". A cineasta compõe no filme uma imagem bem humorada da morte na velhice, talvez por se tratar do povo carioca que tem fama de ser alegre e de "levar a vida numa boa", mas não deixa de mostrar também o inconformismo e as lágrimas que brotam das faces dos amigos de Alberto durante o velório.



Cena do filme Copacabana (fonte: www.terra.com.br/cinema)

O desenrolar do filme gira em torno das lembranças de Alberto enquanto seu corpo é velado. "Quando a tampa fecha, fecha-se o ciclo da vida. Duas datas: a do nosso nascimento e a da nossa morte; e no meio uma infinidade de acontecimentos, amores, dores, almas que se escassam e por fim...", este pensamento do personagem aparece no início e no final do filme, e cria uma noção de tempo circular, de eterno retorno, que ganha ainda mais força quando Alberto levanta-se do caixão assustando e alegrando, ao mesmo tempo, seus amigos. Afinal, o personagem apenas dormia, gerando discussões entre dois porteiros do prédio em que vivia, que passam o tempo fazendo apostas nos próximos velhinhos do bairro que deixariam esta vida. O final do filme ressalta que a morte não é uma marca apenas da velhice, já que nem todos chegam a envelhecer. "Para morrer, basta estar vivo. Não era isso que dizia Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas?", diz uma das amigas de Alberto no filme, ao ver que os dois porteiros foram atropelados em frente ao prédio.

Estamos todos bem, de Giuseppe Tornatore, traz mais intensamente a dificuldade que a sociedade ocidental tem de lidar com a morte, especialmente quando se trata de alguém que não atingiu a velhice. O personagem Matteo Scuro sai da Sicília, onde vivia a solidão de sua velhice, e viaja pela Itália para ver seus filhos. Durante a viagem liga várias vezes para um de seus filhos, mas sempre quem atende é a secretária eletrônica com uma "voz eletrônica que parece sair de uma geladeira", diz Matteo. Durante todos os telefonemas a vida agitada dos habitantes das cidades também é congelada, todos ficam imóveis, e abre-se um silêncio rompido apenas por mais um recado deixado por Matteo para o filho. Essa parada no tempo fica mais clara para o espectador quando os outros filhos contam a Matteo da morte do irmão. Os filhos escondem do pai esse fato, e tantos outros aspectos de suas vidas, para poupar o pouco tempo de vida que resta ao pai. O tempo havia parado para o filho, mas durante a sua viagem, Matteo aprende com as pessoas que encontra pelo caminho, que às vezes "é melhor fingir que não houve nada, não entender e não procurar esclarecimentos". Depois de ir parar no hospital Matteo aparece de volta à Sicília, em frente ao túmulo de sua esposa, conta-lhe sobre a viagem e diz "Estamos todos bem". É interessante que o personagem Alberto de Copacabana no final do filme diz que "morrer é como voltar para casa", talvez uma citação de Estamos todos bem, já que fica não fica claro na tela se Matteo ainda está vivo ou não.

No último episódio de Sonhos, de Akira Kurosawa, um viajante chega a uma pequena cidade e encontra muitas pessoas que caminham em meio a um cenário colorido com flores e sorrisos. Parece uma festa. É uma festa. O motivo é a morte de um velho centenário. Como na maioria dos filmes japoneses, as imagens do filme mostram a maneira oriental de sentir e pensar a morte. Em A Balada de Narayama esse olhar mais "natural" para a morte humana também aparece entre os habitantes da pequena aldeia de Moto-Mura, no interior do Japão. A tradição diz que aos setenta anos os velhos devem ser levados a um deus que habita a montanha de Narayama, e esta morte é vista como mais digna do que por uma doença, por exemplo. Apesar da maioria dos personagens parecer encarar a morte com tranqüilidade, e até alívio já que a região é marcada pela escassez de alimento, e cada boca a mais torna-se um peso, o filme mostra também o sofrimento do filho da velha Orin em aceitar a tradição. O próprio marido de Orin desaparecera quando sua mãe estava com 69 anos, próximo ao momento de ser levada a Narayama. A personagem diz ao filho que "regras são regras, e o sentimento tem que ser deixado de lado" para que ele cumpra a tradição na qual o tempo cultural se sobrepõe ao tempo biológico. Afinal, Orin, uma senhora ativa, trabalhadora, com seus trinta e três dentes, apresentava uma vitalidade invejável.

O que faz durar uma imagem?
Apesar de podermos encontrar na produção fílmica muitos personagens da terceira idade a pesquisadora Lúcia Nagib lança uma inquietação: "Não sei se o velho é uma questão importante no cinema, a criança sim. A criança é bem mais destacada do que o velho no cinema". Ceci Alves, cineasta e jornalista baiana, que passou pela Escola Internacional de Cinema e Televisão em Cuba e pela Escola Superior de Audio Visual Toulose Le Mirail, também desabafa: "quase ninguém toca nesse assunto ou o fazem de forma estereotipada", e arrisca, "talvez por ser uma temática em que pouco pensamos". A cineasta diz que "o discurso que se imprime aos velhos no cinema é muito carregado do sábio ou gagá, do carinhoso e bonzinho demais, como em Laços de ternura". Essas imagens, em sua opinião, terminam "ou execrando os velhos, ou apresentando-os em uma relação paternalista".

Foi com o desejo de trazer para as telas a "dimensão da pessoa" na velhice que Ceci Alves apresentou ao Instituto de Rádio Difusão da TV Educativa da Bahia o projeto do documentário intitulado Velhos amigos. Preocupada especialmente com a questão da identidade da velhice, e com o resgate da memória, a cineasta quer "reunir os discursos, as conversas dos idosos, saber o que acham do tempo que passaram na terra, o que acham do futuro. Trazer assim suas histórias, contadas por eles". Ressalta porém, que a memória para ela não se trata de sapiência, mas da experiência singular dessas pessoas que já viveram um tempo neste planeta e, lembrando-se do comentário do velhinho do filme Asas do desejo de Wim Wenders, que não tem mais para quem contar suas histórias: "essa é uma forma de matar a pessoa em vida".

Sem dúvida, uma das buscas do cinema é a de produzir imagens inesquecíveis, que durem, que atravessem o tempo, que sejam lembradas. Mas, "as lembranças são feitas de pessoas que lembram, e numa sociedade cada vez mais técnica não há sentido para lembrar", diz Milton de Almeida. Para este pesquisador as imagens que duram são aquelas que tratam de uma forma mais poética, mais humana e conflituosa a questão da velhice. "O poético é lento e complexo, não é explícito, mostra a ambivalência o tempo inteiro. A sociedade, porém, não suporta a ambivalência, a ambigüidade, e tudo tem que ser muito rápido. A lentidão aparece como um movimento contrário, e tudo tem que ser muito explícito", diz Almeida. Já Cacá Diegues afirma que "o que faz durar uma imagem é a quantidade e a qualidade do prazer que ela nos dá (ou nos deu, se se tratar de uma lembrança)". Estes parecem ser caminhos inspiradores para aqueles que se aventurarem a produzir novas imagens da velhice no cinema.

Leia também a crítica do filme Vou para casa, dirigido por Manoel de Oliveira, que conta com leveza e delicadeza a história de um ator veterano.

(SD)

 

Filmografia
A Balada de Narayama (1983)
O filme foi baseado na novela de Schichiro Fukazawa, escrito e dirigido por Shohei Iamamura e produzido por Jirotomoda. Venceu o Festival de Cannes em 1983.

Asas do desejo (1987)
Filme dirigido e produzido por Wim Wenders. Foi premiado com a Palma de Ouro de melhor direção no Festival de Cannes e considerado o melhor filme da 12a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Buena Vista Social Club (1999)
Filme de Wim Wenders produzido por Ulrich Felsberg e Deepak Nayar. As gravações e concertos em estúdio foram produzidos por Ry Cooder pela World Circuit.

Chuvas de verão (1978)
Um filme de Carlos Diegues.

Conduzindo Miss Daisy (1989)
Baseado na peça teatral de Alfred Uhry ganhou Oscar de melhor filme, melhor atriz (Jessica Tandy), melhor roteiro adaptado e melhor maquiagem em 1990, foi vencedor de três Globos de Ouro como melhor filme, melhor atriz e ator, e conquistou o prêmio Pulitzer.

Copacabana (2001)
Dirigido e produzido por Carla Camurati. O roteiro foi criado por Carla Camurati, Melanie Dimantas e Yoya Würsch.

Deuses e monstros (1998)
Filme de Bill Condon baseado na novela O pai de Frankestein de Christopher Bram, e produzido por Paul Colichman, Gregg Fienberg e Mark Harris.

Estamos todos bem (1990)
Filme de Giuseppe Tornatore.

Laços de Ternura (1993)
Filme de James L. Brooks, baseado no livro de Larry MacMurtry e vencedor de cinco Oscars.

Sonhos (1990)
Filme de Akira Kurosawa. Dirigido por Ishirô e Honda.

 
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Atualizado em 10/09/2002
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