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Fitoterapia
Usos e abusos
Reduzir gastos
Biodiversidade e Indústria
Riscos de extinção e fraudes

 

Entrevista a
Luís Carlos Marques

Para explicitar o que é Fitoterapia, seus usos adequados e abusivos, a revista eletrônica ComCiência entrevistou o pesquisador e farmacêutico Luís Carlos Marques, especialista em Fitoterapia, mestre em Botânica e doutor em Ciências. Marques, juntamente com outros três pesquisadores, atua no Departamento de Farmácia e Farmacologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), em pesquisas nas áreas de Fitoquímica (principalmente taninos e xantonas), Farmacobotânica e Tecnologia de Fitoterápicos.

Nesta entrevista, ele explica os cuidados que as pessoas devem ter ao adquirir produtos chamados "naturais". Estudo realizado pela equipe de Marques apontou que 80% entre 50 produtos pesquisados (amostras de plantas adquiridas do mercado paranaense e provenientes, na maioria, de São Paulo) apresentaram presença de matérias orgânicas estranhas (sujeiras e insetos por exemplo), o que prejudica a atuação do medicamento natural.

Legislação de fitoterápicos
ComCiência - Professor Luís Carlos Marques, o senhor vem participando de algumas reuniões sobre a regulamentação dos fitoterápicos em Brasília. Do que tratam essas reuniões? Poderia citar algumas iniciativas dos cientistas da área no sentido de exigir do poder público maior fiscalização nesse setor?
Marques - Tenho participado de várias reuniões e debates sobre a questão da legislação de fitoterápicos em geral, tendo em vista as lacunas existentes na Lei de Medicamentos No 6360 de 1976, que não se refere aos fitoterápicos. Essa ausência levou os órgãos governamentais a duas situações: ou ao erro, por exemplo, registrando produtos tóxicos como o confrei; ou à completa falta de respostas ou ações concretas em relação a esse mercado.

ComCiência - Que problemas essa falta de controle do mercado de fitoterápicos ocasionou ou pode ocasionar aos consumidores?
Marques - Essa situação permitiu que o mercado de fitoterápicos no Brasil crescesse sem qualquer limite, levando o consumidor a diversos tipos de problemas, tais como: 1) fraudes, misturas de plantas, contaminações diversas, espécies desconhecidas, etc.; 2) ausência de informações sobre se a planta pode causar efeitos tóxicos. Apesar da legislação de medicamentos exigir essas informações previamente à comercialização do produto, na maioria dos casos esses estudos não foram feitos. Exemplos dessas plantas: confrei, cipó mil-homens, cambará, cavalinha e camédrio, entre outras; 3) ausência de informações sobre se as plantas funcionam efetivamente, isto é, se cumprem com o prometido nas bulas e rótulos dos produtos. A grande maioria das produtos baseia-se apenas na tradição de uso, sem maiores estudos que comprovem tais utilizações populares; 4) oferta de produtos com indicações não tradicionais. Se a crítica é feita aos casos baseados na tradição (o que já é alguma coisa), pior ainda quando a indicação terapêutica nada tem a ver com o costume de uso. São os chamados "produtos-panacéia", que "curam" desde gripe até câncer, leucemia, AIDS, etc. São abusos que devem estar enganando muitos incautos.

ComCiência - Em relação às fraudes, o senhor poderia fazer um contraponto com a legislação atual que diz que isso é crime hediondo e prevê cinco anos de prisão, para mostrar as contradições e os exageros dessa legislação?
Marques - De fato, essa lei é um exagero, ao menos em termos de fitoterápicos. Isso porque, como dito antes, estamos discutindo formas legais de intervenção. Conhecemos os problemas mas também as lacunas legais que permitiram seu surgimento e crescimento. Portanto, na Fitoterapia, é contraditório agir de forma abrupta e radical, pois o problema é grande e exige ações globais e orientativas. Nesse conjunto, existem casos de fraudes criminosas que merecem punição rigorosa, mas são exceção, como por exemplo a comercialização de fórmulas "naturais" para emagrecer, que contém, na verdade, anfetaminas e calmantes, produtos controlados e que causam dependência física.

Recomendações aos consumidores
ComCiência - Diante desse quadro de fraudes, qual a recomendação que o senhor faz aos consumidores de fitoterápicos?
Marques - Devem adquirir apenas produtos que conhecem bem e que são de fato tradicionais, como por exemplo boldo, camomila, erva-doce e malva. Os consumidores devem evitar novidades mercadológicas que envolvem plantas pouco conhecidas no Brasil, como por exemplo a unha de gato, a garra do diabo e a garcínia, entre outras. Também devem adquirir produtos com as plantas inteiras, que possam ser vistas e avaliadas. Quando o produto vem em pó, é muito difícil distinguí-lo de seus adulterantes. As formas líquidas, por experiência, sabe-se que não são avaliadas em termos de qualidade, salvo raríssimas exceções. Sempre que possível, o consumidor deve adquirir ou coletar tais plantas perto de suas casas, frescas. Alguns lotes de matérias-primas estão há anos nos estoques e, com certeza, são muito velho e sem atividade alguma.

ComCiência - O senhor tem um estudo no qual faz a identificação de algumas plantas, verifica o grau de impureza dos produtos e se o nome pela qual ela é conhecida coincide com o divulgado no rótulo. A que conclusões este estudo chegou?
Marques - A pesquisa química é um pouco trabalhosa e às vezes exige equipamentos sofisticados e caros, dificuldades que levam as indústrias e mesmo os distribuidores a argumentarem que é difícil executá-la como rotina. Por isso, resolvemos avaliar cerca de 50 amostras de plantas adquiridas do mercado paranaense (que vêm de São Paulo principalmente): pata de vaca, alecrim, guaraná, eucalipto, quassia, guaco, camomila, açafrão, ginseng brasileiro, arnica, marcela, alcaçuz, fucus vesiculosus e carqueja, entre outras. Dessas amostras, analisamos a rotulagem com base na legislação de fitoterápicos (Portaria SVS 6, de 31 de janeiro de 1995) e no Código de Defesa do Consumidor, que exige dados técnicos e gerais orientadores do consumo correto do produto. Analisamos também a parte de pureza do produto, avaliando a presença de sujidades como por exemplo fios, penas, papelão e pregos; insetos vivos e mortos e suas partes (não podem ser encontrados no produto); e ainda a chamada matéria orgânica estranha (outras partes da planta que não contém princípios ativos como por exemplo galhos da pata de vaca quando o esperado são as folhas). Por fim, analisamos a farmacobotânica, isto é, a identificação macro e microscópica dos materiais de modo a comprovar no mínimo que se trata da espécie citada no rótulo do produto. Em linhas gerais, obtivemos mais de 80% de resultados insatisfatórios, principalmente pela presença de matérias orgânicas estranhas (aumenta-se o peso do produto mas dilui-se totalmente a quantidade de substâncias químicas ativas), por sujidades e insetos em segundo lugar; e por contradições na parte farmacobotânica. As rotulagens também estão longe de atender aos requisitos legais. Esses dados mostram o problema do mercado mas também demonstram que o controle básico é muito fácil e exeqüível em qualquer empresa, que por si só seria capaz de identificar mais de 80% dos problemas básicos dessa área.

ComCiência - Quais os principais conceitos dos princípios ativos das plantas com uso potencialmente medicinal?
Marques - As plantas são riquíssimas em produtos químicos, que lá estão com finalidade de interação ecológica. O uso de plantas em terapêutica deve obedecer essa complexidade, a que chamamos de "fitocomplexo", mistura essa responsável por um amplo leque de efeitos terapêuticos. O uso de plantas em terapêutica exige atuação multidisciplinar, que envolve desde a coleta da informação de uso, coleta botânica, estudo químico, farmacológico e uso médico. Deve envolver vários profissionais, desde antropólogos, botânicos, químicos, agrônomos, farmacêuticos, médicos, enfermeiros, industriais e governo.

Efeitos colaterais
ComCiência - Até que ponto o efeito do uso das plantas ditas medicinais é real ou mito? É possível citar alguns exemplos do uso inadequado dessas plantas e possíveis efeitos colaterais?
Marques - Como tudo na vida, depende do caso. Há casos importantíssimos em terapêutica, como o ginkgo biloba, talvez o fitoterápico mais amplamente estudado em todo o mundo, com ações potentes em memória, labirintite, zumbidos, perda da audição e vários outros problemas sérios de saúde. Já outras plantas não provaram seus efeitos, como a pata de vaca que não diminuiu a glicemia de diabéticos, entre outros. Vou citar alguns exemplos de efeitos colaterais: a) cáscara sagrada e sene em uso crônico podem constituir risco de câncer do colo-retal por seus efeitos irritantes; b) camomila e outras plantas da família das compostas podem causar sérias alergias (dermatites de contato); c) arnica montana, uma planta européia, é contra-indicada para uso interno por riscos sérios de agressão ao coração e pulmões; no entanto, é vendida em qualquer farmácia sem maiores alertas e contra-indicações; d) cavalinha inibe a absorção de vitamina B1 e pode causar deficiências nesse nutriente; e) goma guar pode interferir na absorção de nutrientes e medicamentos, não podendo ser tomado próximo à ingestão de medicamentos e alimentos.

ComCiência - Como o senhor avalia a polêmica divulgada pela mídia norte-americana em relação ao uso medicinal de plantas como a maconha, por exemplo, e outras de efeito alucinógeno? No Brasil já existem pesquisas nesta área?
Marques - Não há contradição técnica nesse ponto, apenas muito preconceito e desinformação. Como paralelo, usamos a morfina retirada do ópio; podemos usar o THC se o mesmo tiver efeitos comprovados e indicações precisas. Parece ser este o caso de utilização em pacientes tratados com quimioterapia e que apresentam sérias crises de vômitos. Nesse caso, o THC atuaria como anti-emético. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) já estudou muito o assunto, mas atualmente não sei de nenhuma pesquisa no Brasil sobre a utilização deste tipo de planta como medicamento.

Mercado mundial
ComCiência - É possível afirmar que o número de fitoterápicos no mercado está aumentando? Há alguma indicador sobre esses dados?
Marques - Sim, há diversos dados mesmo em âmbito mundial e muita literatura sobre o assunto. O mercado global de medicamentos está estimado hoje em US$ 280 bilhões, dos quais cerca de US$ 14 bilhões (cerca de 5% do global) referem-se a medicamentos fitoterápicos. Somente a Alemanha é responsável por 50% do mercado europeu e mais de 20% do mercado mundial de fitoterápicos (mais de US$ 3 bilhões), com um consumo anual per capita de US$ 39,00. O potencial de crescimento desse mercado em outros países depende do desenvolvimento de atividades de marketing mais amplas. É o que estão ensaiando grandes empresas multinacionais farmacêuticas como a Boehringer Ingelheim, Bayer, Novartis e Roche. O mercado de fitoterápicos cresce na faixa de 6,5% ao ano apenas no ramo OTC. Outras estimativas apontam crescimentos diferenciados de acordo com o País. Na Espanha, a taxa de crescimento é da ordem de 35%; na Alemanha, 15%; na Itália, 11%; e no Reino Unido, 10%. O mercado norte-americano os herbal products é novo e deve crescer bem mais.

ComCiência - A que o senhor atribuir esse crescimento do mercado de fitoterápicos? Marques - Mundialmente, são conhecidas as tendências culturais a favor de tudo que tenha caráter "natural", decorrentes, a princípio, de um processo de contra-cultura e, posteriormente, de um processo de transmutação desse movimento, em decorrência da dissolução da Guerra Fria. Dessa mudança nasce o movimento ecológico, e dele uma tendência geral para se privilegiar tudo o que seja natural. Esta é uma tendência mundial. A grande indústria de medicamentos tem acompanhado as mudanças de hábitos da população, com a compra de pequenas empresas de fitoterápicos e lançamento de produtos nessa classe, sem abandonar a classe química usual. Alguns estudos sociológicos vem sendo feitos sobre esse tema.

Biodiversidade brasileira
ComCiência - Como o senhor avalia o potencial fármaco (ou farmacológio ou fitoterápico) da flora brasileira e o desenvolvimento de pesquisas nessa área no Brasil?
Marques - Há um enorme potencial em flora e etnofarmacologia no Brasil, porém não há estrutura cultural entre os cientistas e indústrias para gerar pesquisas e colocá-las à disposição no país. Há resistência política à colaboração com o setor industrial e mesmo oposição ideológica contra a idéia de patentes, o que tem inviabilizado o uso desse potencial. Essas contradições vem sendo usadas pelas indústrias internacionais, que têm investigado, descoberto e patenteado muitas plantas brasileiras como por exemplo a camu-camu da Amazônia (Myrciaria dubia), que é uma frutinha avermelhada que tem mais vitamina C que a acerola. Está patenteada pelo Japão desde o ano de 1992 como matéria-prima de sucos e sobremesas.

ComCiência - Qual a melhor forma de se proteger a flora brasileira utilizada em bioterapias?
Marques - Entendo que é a colaboração mesmo internacional. Como temos poucos financiamentos, creio que devemos entrar em colaboração com japoneses, alemães, americanos e com quem quiser estudar nossa flora, patentear e dividir essa patente conosco. Não fazemos isso em nome da soberania; mas também não fiscalizamos quem entra e patenteia o que quer; bem como não estudamos nossa própria flora. É muito contraditória mas precisamos dessas parcerias antes que nossa flora seja destruída pelas queimadas...

ComCiência - Quais as principais dificuldades do pesquisador brasileiro na área de fitetorápicos?
Marques - São vários os problemas: faltam financiamentos para pesquisa (como em todas as áreas hoje no Brasil), mas falta também contatos com o setor industrial para parcerias conseqüentes. Em minha opinião falta, principalmente, uma política ao setor e um gerenciamento desse processo. Existem milhares de plantas e a pesquisa acontece quando somam-se informações e a planta alça um patamar científico e é estudada. No entanto, cada pesquisador quer pesquisar o que bem entende, sem aprofundar o que já existe e sempre iniciando algum conhecimento. Temos centenas de plantas para as quais apenas a primeira fase da pesquisa foi feita, sem maior aprofundamento para chegar a um medicamento. Os pesquisadores, em nome de sua "autonomia científica", não aceitam qualquer sugestão ao que fazem, numa clara distorção do que seja interesse nacional.

 

Leitura indicada

  • FERREIRA, S. (Coord.). Medicamentos a partir de plantas medicinais no Brasil. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Ciências, 1998.
  • TEIXEIRA, F.E. Natureza: um modismo na cultura alternativa. Pau Brasil, 1985.
   

 

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