Por Liniane Haag Brum
Crônicas e contos de Ugo Giorgetti compõem Era uma vez o futebol, livro lançado pelo selo Quimera Editorial, em abril deste ano, organizado pelo professor da Unicamp e crítico literário Alcir Pécora. Titular da coluna dominical “Boleiros”, do Estado de S. Paulo de 2004 a 2020, e cronista do site Ultrajano, do jornalista esportivo José Trajano, entre 2020 e 2022, o cineasta Giorgetti é afirmado como escritor nessa publicação. “O talento literário do Ugo ficava evidente nas crônicas. A vontade de discutir não só o futebol, mas também a sociedade, as ideias que ele tinha sobre o Brasil, até sobre o mundo. A partir daí eu tive a ideia de fazer o livro”, explica Pécora. Os contos – todos inéditos – sugiram durante o processo de organização da obra: “depois de reler as suas colunas plenas de ironia, humor e comentários mais ou menos agastados sobre as estultices do país e do mundo, a fim de selecionar as mais saborosas, veio-me a ideia de perguntar ao Ugo o que hoje me parece óbvio: se ele não teria escrito sobre futebol também em outros gêneros literários”, anotou o professor. O cineasta lhe apresentou os textos que agora compõem a coletânea, todos escritos nos últimos quinze ou vinte anos. Era uma vez o futebol é também a estreia de um projeto literário que o crítico desenvolve ao lado do bibliófilo Celso Queiróz. Trata-se do primeiro volume de uma coleção que pretende “conjugar aventura, pensamento e estética”.
Um cálculo aproximado indica que Giorgetti teve 700 textos publicados na imprensa paulista. Esse número determina não apenas a vastidão de sua produção, ele também comprova a singularidade da crônica do autor que, segundo Pécora, apresenta sempre “uma resolução interessante ao longo dela mesma, um desfecho, uma compreensão, uma sacada sobre as coisas”. São textos em que está presente um elenco de assuntos que diferem do comentário esportivo, como a sua conhecida memorialística em que a cidade de São Paulo é personagem. Além disso, são frequentes perfis de personalidades do futebol que apenas tangenciam o biográfico, um tipo de crítica social formulada por meio da anedota e narrativas em torno de afetos artísticos e esportivos do autor-narrador: “Ele tem um interesse literário evidente”, ressalta o organizador da coletânea.
Um exemplo dessa característica de narrar o tema do futebol sem investir na análise do jogo, isto é, se distanciando das partidas como mote e se aproximando de um ponto de vista subjetivo, é “Grand Hotel”, publicada originalmente em 2013. A crônica parte da indignação do autor-narrador em relação à concentração da seleção brasileira que, naqueles dias, estava confinada em um hotel de luxo em Goiânia, o qual fora totalmente fechado a hóspedes e interditado ao público, para receber jogadores, técnicos e equipe. O texto é narrado a partir da crença de que os antigos métodos para manter os atletas em concentração e afastados dos perigos iminentes – sobretudo as mulheres, conforme a narração propõe – são melhores do que os empregados pelo então técnico da seleção, Felipão (Luiz Felipe Scolari). A indignação do autor-narrador vem tanto do exagero contido na atitude de fechar o hotel, quanto da blindagem que se estabelece dentro de suas dependências em relação aos jogadores, privados de contato pessoal: “Por que um garçom não pode pedir um autógrafo, ou dirigir a palavra, a um jogador de futebol?”, reclama o narrador. “Quem essa gente da CBF pensa que são esses jogadores para se distanciarem assim dos mortais?”, argumenta, antes de se encaminhar para uma conclusão: “Não é tratando esses garotos dessa forma, com rituais que lembram o despertar de Luis XIV, que vamos ganhar a Copa”. Um ano depois, o Brasil perdia de sete a zero para a Alemanha. Ugo Giorgetti explica sua abordagem: “é uma maneira diferente de ver. É sempre o futebol, mas de fora pra dentro do campo. Não de dentro pra dentro do campo”.
A iminência do perigo, sobretudo feminino, a espreitar o time, é um assunto que já estava no longa-metragem ficcional Boleiros, era uma vez o futebol, de 1997, maior sucesso de público do realizador. Em uma das seis narrativas que compõem o filme, é durante a concentração que precede uma partida entre Palmeiras e Corinthians que o técnico do time alviverde, interpretado por Lima Duarte, faz a ronda noturna nos aposentos de um hotel compartilhado com outros hóspedes. No caso, ainda que a possível presença das mulheres seja o perigo maior, fãs e jornalistas compõem a trama e estão presentes dentro dos limites do hotel, diferentemente da circunstância relatada na crônica que tematiza a concentração em Goiânia, em 2013, quando os craques foram isolados e cobertos de cuidados, como se fossem reis.
Para a professora dos Programas de Comunicação e Semiótica e de Literatura e Crítica Literária da PUC/SP, Cecília Almeida Salles, recorrências temáticas podem ser tomadas como um dos elos da rede de criação de artistas. Na perspectiva teórica da crítica de processo, não apenas os arquivos (argumentos, roteiros, planos de filmagem, entre outros) são de interesse à perscrutação das camadas do trabalho artístico: “quaisquer papéis” propiciam a estabelecer nexos com o processo criativo mais amplo. Sobre Era uma vez o futebol, explica: “você vai encontrar princípios que direcionam o projeto artístico”.
Histórias únicas
Giorgetti não refletiu sobre o seu ofício ou sobre a sétima arte em geral. Seu interesse sempre esteve voltado para o exercício artístico, em que se sobressai, segundo analisa o professor Pécora, “um tipo de visão muito particular”. Isso se evidencia sobretudo nas crônicas, mas desagua na ficção: “esses eventos que ele vai pincelando cada vez de forma bem original, na verdade já têm um núcleo ficcional muito forte”, observa.
No conto intitulado FLA XFLU, a morte de um adolescente vítima de uma revanche entre torcidas desencadeia a narração. No entanto, o conflito não se estabelece, como seria de se esperar, em torno da identificação dos assassinos, na busca por vingança ou mesmo na apuração das circunstâncias da morte. A história é levada adiante em razão da vontade dos amigos da vítima de enterrá-la coberta pela bandeira de seu clube: “Ele simplesmente mostra que a preocupação deles era como falar com a mãe para poder botar o manto sagrado do time sobre o caixão”, revela Alcir Pécora. “Viemos pedir pra senhora deixar colocar a bandeira do Fluminense em cima do caixão do João Pedro”, diz o personagem Jorginho, o porta-voz da turma. “É uma questão completamente única. Porque um jornalista falaria do confronto das torcidas, da morte, da violência nos estádios”, conclui o organizador do livro.
Terreno estético compartilhado
A singularidade do ponto de vista como núcleo do trabalho criativo também se evidencia na filmografia não ficcional de Ugo Giorgetti. No curta-metragem Comercial F. C. – a equipe fantasma, coproduzido pelo Sesc São Paulo, ao perseguir a história de um clube de futebol que se extinguiu, e sobre o qual só sobraram um álbum de figurinhas e o distintivo fixado na fachada da Federação Paulista de Futebol, Giorgetti se vê impelido a entrevistar pessoas que, de algum modo, participaram do time: “Ele descobre que Dino Sani, ídolo do Corinthians, jogou no Comercial, e começa a criar. De repente, aquele time começa a ter um passado, uma história: isso é pura composição literária”.
Para Vitor Soster, doutorando do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, “obras literárias e filmes de ficção vêm, cada vez mais, se aproximando do não-ficcional, e etnografias, relatos históricos e filmes documentais (comumente associados à não-ficção) vêm progressivamente se aproximando da ficcionalização”. Na perspectiva dos estudos literários, área em que sua pesquisa se situa, “uma entrada para essas questões pode ser por meio do conjunto de características que constituem os gêneros literários – pensando, especificamente, em termos narrativos, dramáticos e poéticos”. Trata-se de um enfoque centrado em um tipo de relação entre o literário e o fílmico, como Soster explica, “marcado pelo compartilhamento de um terreno estético”.
No documentário Em busca da pátria perdida (2008), em que o diretor acompanha três missas ministradas na Igreja do Glicério, em São Paulo, cada qual destinada a fiéis de grupos sociais diferentes – “italianos, latinos e brasileiros”, segundo Giorgetti – o aspecto literário não se dá em detrimento do não ficcional: “É incrível esse documentário, porque ele vai mostrando os fiéis que chegam, mas também as expressões, as pessoas que ele escolhe, todas absolutamente incomuns. Ele faz um diálogo invisível entre o que o padre fala na oração, na pregação, e as pessoas presentes. Esse jogo de imagens entre quem assiste e o sermão do padre é incrível, pura poesia”, analisa Alcir Pécora. O cineasta não esconde seu apreço pela palavra: “Se você está escrevendo um roteiro, não escreve de qualquer jeito porque ele vai virar cinema, filme. Tem que ser escrito como literatura”, declara.
O percurso artístico de Giorgetti com a crônica e o conto se completa com traduções, argumentos e roteiros não filmados e filmados, peças de teatro, prefácio de livros e esboços de projetos por ele assinados. Além de evidenciar o domínio técnico de realização do cineasta e escritor, esses escritos demonstram sua relação com a leitura que, segundo o professor Alcir Pécora: “é realmente um leitor muito sistemático. É fácil perceber quando você lê. Vê como ele facilmente coloca essas citações, mas não para mostrar erudição ou parecer intelectual. Nada disso. Aquilo é a perspectiva com que ele vê, está assimilado”.
Vitor Soster comenta que “cada realizador pode ter uma relação muito específica com a literatura.” Citando seus estudos como exemplo, destaca: “o caso de Eduardo Coutinho é, em particular, de muito interesse para pensarmos nas possíveis relações entre literatura e cinema”. Ele conta que o início da carreira do documentarista foi marcado pela composição de roteiros inspirados em obras literárias.
Já Cecília Almeida Salles ressalta que as reflexões sobre o processo de criação dos artistas não são delimitadas pelo tempo, não estão relacionadas com o antes ou depois do lançamento de um livro ou da estreia de um filme. “Tudo faz parte da rede de criação, cabe ao pesquisador estabelecer nexos na grande busca pelo artista estudado.”
Liniane Haag Brum é doutora em teoria e crítica literária (Unicamp). Bolsista Mídia Ciência (Fapesp) pelo qual desenvolve o projeto de divulgação “Tempo e documento: Ugo Giorgetti em quatro médias-metragens”.