A luz como metáfora do conhecimento

Por Marcos Vinícius Ribeiro Ferreira

Associação é antiga e ganhou forças durante o Iluminismo, trazendo pressupostos filosóficos que permitem a compreensão – e crítica – da sociedade 

É possível encontrar citações sobre a luz das maneiras mais diversas, desde as metáforas religiosas, em que a luz é sinônimo do divino, até na matemática. Para compreender melhor essa relação, o professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, João José de Almeida, escreveu em artigo publicado na revista Ciência e Cultura explicando que a metáfora é muito antiga. Está presente, por exemplo, no período da Antiguidade Grega, no séc. V a.C. Uma evidência é o famoso mito da caverna, do livro VII da República de Platão, em que as pessoas eram enganadas pelas sombras lançadas nas paredes, e ao saírem da caverna, ou seja, ao serem iluminadas, passavam a ver o mundo real – tornavam-se iluminadas. “Zeus, rei de todos os deuses, porta um nome cuja etimologia indica a palavra Dyeus, que provavelmente significava “luz”, “brilho”, “luminosidade”, “dia” ou “céu”, escreveu Almeida.

“A metáfora é muito antiga, anterior aos gregos. Eu fiz esse percurso pois estava interessado no uso que o filósofo austríaco Wittgenstein fez dela, porque ele curiosamente estava em uma tradição de filosofia antiocidental. Achei curioso como ele usou a metáfora da luz na ideia da matemática como ciência – já que não compartilhava da ideia de que a matemática era uma ciência”, diz Almeida, em entrevista à ComCiência.

O artigo de Almeida apresenta um trecho da obra de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) dedicado a questionar a luz como metáfora do conhecimento. Wittgenstein foi muito proeminente em estudar a linguagem e suas regras internas, sendo provavelmente um dos primeiros pensadores a diretamente inverter a metáfora: “A claridade filosófica tem sobre o desenvolvimento da matemática a mesma influência que a luz do sol sobre o crescimento dos brotos da batata. (Numa despensa escura eles crescem muitos metros)”, escreveu o filósofo.

A passagem mostra de forma inédita uma associação da luz/claridade como sendo irrelevante para o crescimento ou desenvolvimento. Isso condiz com a obra do filósofo, que era oposto às ideias iluministas. Assim, ele “reposiciona o papel da filosofia relativamente ao progresso da ciência”, escreve Almeida.

O Iluminismo é um período histórico, movimento científico e filosófico que se baseia fortemente na ideia da luz como metáfora do conhecimento. Isso é evidenciado por Almeida quando explica: “Descartes, e da sua ideia de que a luz natural da razão os objetos que podem ser conhecidos clara e distintamente, ou da força exercida pelo pensamento iluminista, até mesmo na filosofia contemporânea, quando ela valoriza a razão ou a racionalidade acima dos seus próprios valores e interesses eventuais, bem como de valores políticos atrelados, praticamente inerentes a qualquer forma de pensamento humano”.

Dessa forma, alguns indivíduos do período tornaram-se as “luzes”, ou seja, grandes ícones do conhecimento. É provável que você já tenha ouvido falar de vários: Montesquieu, Voltaire, Diderot, Kant, Rousseau, Spinoza, Hume…apenas para citar alguns. Todavia, conforme afirmam Paulo Piva e Fabiana Tamizari, em artigo publicado na Revista de Estudos Feministas: “As luzes do Iluminismo francês consagradas por certa história da filosofia foram indubitavelmente as masculinas”.

Piva e Tamizari trazem notoriedade para Madame du Châtelet (1706-1749), cientista e filósofa iluminista que historicamente foi rebaixada apenas a um caso romântico de Voltaire, quando na verdade sua produção intelectual foi gigantesca, com destaques para a filosofia e para a física, fazendo a primeira tradução da obra mais famosa de Isaac Newton para o francês, o livro Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios matemáticos da filosofia natural). Tal façanha era muito contestada pelos intelectuais da época e Châtelet nunca recebeu os louros devidos. Piva e Tamizari resgatam como os discursos dos iluministas eram – como qualquer outro discurso – imbuídos de interesses morais, preconcepções e valores de época, contestando a associação direta entre luz e conhecimento.

A questão sobre o que se denomina luz é imbuída de vieses diversos. O período histórico conhecido por “idade das trevas” se refere aproximadamente aos séculos IV a XV, na Europa. Essa denominação surge durante o Iluminismo, sendo as trevas uma analogia ao momento de “pouco” desenvolvimento intelectual/filosófico/científico, algo que, segundo os próprios pensadores iluministas, havia mudado, sendo eles a luz que retornava para a humanidade, uma volta à razão, afastando-se assim das doutrinas religiosas, do pensamento místico e metafísico. Hoje historiadores afirmam que a ideia de um momento sombrio (ou das trevas) como sinônimo da Idade Média fez parte do projeto iluminista de refutação dos conhecimentos passados, sendo eles muitos em quantidade, além de valiosos. A luz das ciências modernas não haveria sido acesa sem os filósofos e pensadores da idade das “trevas”, conforme afirmam diversos autores na revista científica Speculum, de estudos medievais.

“A metáfora induz para um lado a concepção do que é a ciência, e é preciso que as pessoas percebam isso. Precisamos urgentemente de um conhecimento científico, mas temos que reconhecer que ele está sempre ‘contaminado’ por alguma filosofia, que não é boa ou ruim, depende de como a utilizamos, é a práxis que importa”, expõe Almeida.

Marcos Vinícius Ribeiro Ferreira é formado em ciências exatas (USP) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).