REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Aviação e literatura
Por Guillermo Giucci
10/02/2007

A literatura relacionada com temas aéreos não se interessa pelos elementos centrais do vôo – regularidade, segurança, velocidade, custos. A terminologia técnica lhes é indiferente. Seu interesse é despertado pela aventura estética, mais do que pela utilidade e pragmatismo. Liberada da vida e da morte, a literatura se propaga em um ritmo ainda mais acelerado que a própria aviação, se apoderando das façanhas e das tragédias, mas, sobretudo, da ânsia humana por voar.

O desejo de voar é uma antiga aspiração humana presente nos sonhos ancestrais. Principalmente na infância e adolescência, é comum sonhar com o vôo e a queda. Os chamados “sonhos de vôo” que Freud interpretou como uma expressão do desejo oculto das atividades sexuais (“Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”) e Havelock Ellis estudou do ponto de vista das sensações respiratórias, não possuem um vínculo direto com a aviação, mas ajudam a explicar o porque da rápida incorporação e proliferação do tema da aviação na literatura. Ingold (1978) analisou a literatura européia de aviação entre 1909 e 1927 e encontrou uma vasta produção na França, Alemanha, Itália, Rússia, Inglaterra, Áustria e Hungria. Produção composta por autores já, então, conhecidos: Marinetti, Kafka, D’Annunzio, Rilke, Musil, Proust, Wells, Von Hofmannsthal, Chlebnikov, Jünger, Zweig, entre outros.

Em abril de 1909, foi produzida a primeira fotografia cinematográfica tirada de cima de uma máquina mais pesada que o ar. Trata-se de um ano de grande importância simbólica para a modernidade cinética: Marinetti publica o manifesto “O futurismo”, em Paris, Blériot atravessa o Canal da Mancha num aeroplano, o engenheiro eletrônico Marconi é premiado com o prêmio Nobel de Física. No mesmo ano, Franz Kafka veraneava com seus amigos Max e Otto Brod, em Riva, quando tomou conhecimento do 1o Circuito Aéreo Internacional de Brescia. Tinha 26 anos e nunca havia visto um aeroplano. Aparentemente, Max Brod lança-lhe um desafio para saber quem seria capaz de escrever o melhor artigo sobre aquele evento e, assim, Kafka escreve “Os aeroplanos em Brescia”, publicado na Bohemia em 28 de setembro de 1909. O artigo resume o clima de efervescência dos eventos cinéticos. No Circuito, além de aeroplanos, havia trens, ciclistas, carruagens, automóveis e uma massa estimada em 50 mil pessoas, cuja presença a polícia tentava controlar. O campo de aviação era enorme e não oferecia uma estrutura de entretenimento comum em outros eventos desportivos. Em particular, Blériot chamava a atenção do público quando levantava vôo com seu monoplano.

Poucos meses depois, em fevereiro de 1910, o famoso escritor Gabriele D´Annunzio, que também participou como espectador do Grande Prêmio de Brescia e a quem foi concedida a honra de voar, oito minutos, com o piloto americano Curtiss, publicou Forse che sì, forse che no (Talvez sim, talvez não) romance aéreo de quinhentas páginas.

A modernidade cinética questiona a tradição e se expande por intermédio dos objetos da circulação, principalmente o automóvel e o aeroplano. Depois do automóvel, o aeroplano se transforma na nova musa mecânica do futurismo. No “Manifesto técnico da literatura futurista” (11/05/1912), F.T Marinetti parte da metáfora aérea para pôr em dúvida o valor do passado: “No avião, sentado sobre o tanque de gasolina, com o ventre aquecido pela cabeça do aviador, eu senti a inanidade ridícula da velha sintaxe herdada de Homero”. O futurismo tentará criar novas formas artísticas por intermédio da metáfora do vôo, substituindo a retórica romântica do pássaro pela do avião em movimentos acrobáticos e compondo aeropoemas e aeropinturas. Enquanto Fedele Azari se definia como um “piloto aviador futurista”, Marinetti organizava um grande “aerobanquete” na Casa Del Fascio, onde as mesas eram colocadas em ângulos diversos passando a impressão de um aeroplano e o appetizer se chamava “Aeroplano picante”.

O avião representa o novo e como tal é incorporado com força no léxico das vanguardas. Apollinaire encarna o espírito internacionalista do avant-garde em seu poema “Zona” (Alcools, 1913), levando ao extremo os processos de fragmentação e simultaneidade. Apollinaire reescreve a imagem cristã da Ascensão tomando o ponto de vista do vôo mecânico. Já se vivera demasiadamente na antiguidade dos gregos e romanos: havia chegado a época dos hangares do campo de aviação. Cristo se eleva onde nenhum aviador se aventura e é o recordista do mundo na altura, mas o século tem a forma do pássaro metálico e ascende como Jesus, enquanto o Diabo em seu abismo levanta os olhos para vê-lo.

O que Apollinaire poeticamente sugere - a importância do aeroplano - é aquilo que os porta-vozes da modernidade cinética não deixam de enfatizar. Em 1914, Harry Harper e Claude Grahame-White publicam The aeroplane e antecipam a unificação do planeta pelo avião. Embora as tecnologias do transporte, primeiramente, evidenciem o progresso técnico, e apesar do risco de acidentes, a aviação também podia ser utilizada para difundir a fé, já que acelerava os deslocamentos e permitia o alcance de regiões remotas. Em 1920, Benedito XV transformou Nossa Senhora de Lorette em padroeira das forças aéreas italianas e de todos os aviadores. As metáforas religiosas se adaptaram ao avião: tanto Cristo quanto o aviador deviam “elevar-se acima das coisas da terra”; assim como os aviões evitavam as tempestades, os jovens deviam evitar a companhia dos ímpios, era arriscado voar sem a luz da fé; o pára-quedas simbolizava o arrependimento e a confissão.

As máquinas de voar se difundem na produção cultural: romances, contos, poemas, caricaturas, pôsteres e fotografias; na pintura de Robert Delaunay, Malevich e Henri Rousseau; nos escritos de Le Corbusier e nos retratos do Duce. Em 1924, Blaise Cendrars oferece uma conferência, em São Paulo, sobre as tendências gerais da estética contemporânea e sustenta que o avião modelo Spad, exposto no último Salão da Aviação, é a mais bela das criações da engenharia, superior a qualquer obra de arte moderna. Cendrars nunca havia visto uma obra de arte tão sobriamente poderosa: além disso, era possível entrar nela e voar.

Surge a primeira antologia do vôo, The poetry of flight, editada em 1925 por Stella Wolfe Murray. O aeroplano e o aviador são figuras consagradas na imaginação dos anos de 1920, sendo o vôo motorizado uma parte integral das visões coletivas e individuais do futuro. O escritor guatemalense Miguel Ángel Asturias, que nunca pôde andar de bicicleta, decide aprender a pilotar na França, onde havia inúmeras escolas. As mulheres não estão excluídas da cultura da aviação. Lady Health e Stella Wolfe Murray publicam, em 1929, Woman and flying, para demonstrar a participação feminina na aviação civil. As próprias aviadoras narram suas experiências e selecionam exemplos históricos de mulheres interessadas na prática do vôo. É, particularmente, interessante o capítulo dedicado aos novos aspectos da aviação e as oportunidades que a mesma podia oferecer às mulheres.

A relação entre mulheres e tecnologia levanta a questão do gênero sexual. No início da aviação era comum considerar que a mulher não tinha capacidade para dominar uma máquina de voar, visto que se tratava de um esporte masculino. Não apenas estava em jogo o risco, mas a própria feminilidade. Harriet Quimby, a conhecida pioneira norte-americana, preocupava-se com sua aparência e demonstrou que não existia nenhuma incompatibilidade entre o vôo e a feminilidade. Foi uma “mulher-espetáculo” que em 1912 cruzou o Canal da Mancha e, no mesmo ano, morreu durante uma exibição aérea. Muitas outras a seguiram, culminando com Amélia Earhat. Em todo caso, as mulheres tiveram, freqüentemente, que justificar seu vínculo com a tecnologia da mobilidade.

Guillermo Giucci é professor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Texto traduzido Leda Maria da Costa

Bibliografia

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