Dores dos lutos no eco da maldade

Por Fabíola Mancilha Junqueira

Neste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) contaram com a parceria do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) para analisar a violência no Brasil a partir de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Da análise surgiu o Atlas da Violência 2021, que destaca um importante aumento das mortes violentas, ou seja, mortes por causas externas, no ano de 2019. O relatório, publicado periodicamente desde 2016, aborda diversas formas de violência, organizadas em seções como: violência contra a juventude, contra a mulher, contra pessoas negras, contra a população LGBTQI+, homicídios no Brasil, nos estados e no Distrito Federal, mortes violentas por causa indeterminada e por armas de fogo. Nessa última edição, foram adicionadas as seções violência contra pessoas com deficiências – retomando o conceito de deficiência – e violência contra pessoas indígenas, abarcando a compreensão de violência étnico-racial e simbólica, como por exemplo a desqualificação da história e cultura oral.

A violência é uma das faces da maldade. “Violência é um fenômeno sócio-histórico e, portanto, multifacetado, que envolve sociedade, comunidade e indivíduos em suas relações e repercute, de diferentes formas, no cotidiano”, diz Maria Carolina R. Andery, doutora em psicologia clínica. Representa uma ação forte que desrespeita e rompe o limite que garante a existência digna do outro, seja esse limite físico, social ou psicológico. “As consequências de uma situação de violência são múltiplas, e há diferentes formas de ações violentas, por exemplo: a violência interpessoal, urbana, doméstica, criminal, racial ou acidental; e cada uma dessas situações causa diferentes consequências na vida individual ou coletiva da pessoa afetada. São observadas consequências de ordem psíquica, física, financeira, atravessando a forma de a pessoas se compreender e compreender o mundo, projetar seu futuro e se relacionar com o outro”, acrescenta Maria Carolina.

De acordo com o relatório, a violência representa um dos mais importantes problemas públicos no Brasil atualmente. Em 2019, a proporção de mortes por homicídio foi de 21,7 a cada 100 mil habitantes, dado que deve ser visto com cautela, já que o relatório publicado em 2020 aponta um importante processo de deterioração na qualidade dos registros oficiais desde 2018. Os números de mortes por causas violentas indeterminadas (MCVI), ou seja, mortes violentas em que o Estado foi incapaz de identificar a motivação que gerou o óbito do cidadão, em 2019, aumentou consideravelmente principalmente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e Bahia. “Apenas para exemplificar, é possível citar a situação dramática do Rio de Janeiro, em que a taxa de homicídios diminuiu 45,3% em 2019, ao passo que a taxa de MCVI aumentou 237% no mesmo ano”, aponta o relatório.

O problema da violência no Brasil vem de longa data, é complexo e clama por ações efetivas e urgentes de cuidado. Infelizmente, a pauta principal de uma importante parcela de líderes governamentais do país tem sido a flexibilização do acesso a armas de fogo, com o argumento da garantia da autoproteção. Enquanto isso, a maioria da população sofre violências de Estado que impedem uma vida digna com atendimento de necessidades básicas como moradia, alimentação, saúde e educação. “A flexibilização, é importante ressaltar, pode favorecer a criação de uma falsa noção de segurança ao criar no imaginário coletivo a associação de proteção à posse de armas. Pois liberar ao cidadão o acesso mais facilitado a armas de fogo, instituindo maneiras de afrouxar os métodos de averiguação é, para além de uma abordagem flexível em relação à posse de arma, um fator agravante para o aumento de casos de violência e o uso indevido de armas de fogo”, comenta a doutoranda em psicologia clínica pela PUC-SP Vanessa Rigonatti.

Marcas da violência

Histórias violentas geram feridas muitas vezes difíceis de serem curadas e cicatrizadas. A doutora em psicologia clínica Maria Carolina ouviu a história de cinco jovens que vivem processos de luto em decorrência da morte violenta de um ente querido. Na tese Ouvindo as cicatrizes: luto do jovem por morte violenta a pesquisadora considera a marginalização da juventude, o local de moradia e a forma como a mídia trata os eventos de violência, aspectos influenciadores sobre a forma como acontecerá a elaboração individual e coletiva da perda.

“Considerações sobre a juventude marginalizada e, consequentemente, a que mais morre, de acordo com os índices de violência e vulnerabilidade social e reportagens da mídia, são importantes para abrir ou ampliar um espaço de reflexão sobre a forma como são noticiados os eventos e as mortes, bem como a validação do sofrimento dos(as) enlutados(as) e as narrativas de suas histórias de vida e relação com a pessoa que morreu”, afirma a pesquisadora em sua tese.

Para compor essa compreensão, Maria Carolina cita o pesquisador Edward Rynearson, dizendo que o homicídio é uma morte que nunca deveria ter acontecido e a narração pública desse tipo de evento complica seu processamento, porque sua recontagem está a cargo de agências de polícia, tribunal e meios de comunicação. Segundo o pesquisador, a narrativa apresenta fatos e narra temas sobre a pessoa que morreu que os entes queridos consideram “na melhor hipótese, incompletos e, na pior das hipóteses, depreciativo”.

Já Vanessa Rigonatti dedicou-se em seu mestrado ao estudo do processo de luto de mães de jovens considerados perpetradores, aqueles que cometeram crimes, mortos de forma violenta. Na dissertação Luto materno pelo jovem perpetrador: sobrevivendo à morte violenta do filho, a pesquisadora destaca: “Para a mãe, a morte de um filho é vivida como o pior tipo de perda, pois rompe vínculos afetivos intensos e singulares. Porém, quando essa perda se reveste da especificidade da morte de um filho perpetrador, as perdas se somam: do filho, da imagem dele, de sua identidade como alguém além de mãe de um perpetrador ou a perda da crença fundamental de que a vida é regida por uma lógica; é grande a tendência de esse luto evoluir para um luto complicado”.

A compreensão da maldade, em seus diversos aspectos, é uma importante questão de saúde pública para que saibamos também como cuidar das consequências nos afetados.

Fabíola Mancilha Junqueira é formada em psicologia (FMU), com mestrado em psicologia clínica (PUCSP). Aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).