Entrevistas
Nutrição deve ser pauta
de saúde pública
José Eduardo Dutra de Oliveira
Brasil
terá seu primeiro perfil de insegurança alimentar em 2006
Ana Maria Segall
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Brasil terá
primeiro perfil de insegurança alimentar em 2006
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A insegurança
alimentar no Brasil é tão antiga quanto o início
de sua história enquanto colônia. Mas, apenas em 2006
será possível traçar um perfil nacional, quando o
IBGE divulgará a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (Pnad) que incluirá, pela primeira vez, a
metodologia desenvolvida por uma rede de pesquisadores coordenados por
Ana Maria Segall Corrêa, do Departamento de Medicina Preventiva
Social da Unicamp. Através de um método simples (leia o
relatório “Acompanhamento e avaliação da
segurança alimentar de famílias brasileiras”) e que
atende aos padrões internacionais, 15 perguntas são
feitas diretamente às famílias de forma a determinar os
níveis de insegurança alimentar, ao invés das
tradicionais informações acerca da renda ou de medidas do
corpo (como peso e altura). Nesta entrevista, Segall fala do Fome Zero
como um importante instrumento para revelar a realidade brasileira de
insegurança alimentar. Ela reforça ainda que a epidemia
da obesidade é um reflexo da pobreza crescente e afirma que as
metas do milênio colocadas pela ONU para melhorar as
condições de vida da população mundial
até 2015 são realistas e possíveis de serem
cumpridas, mas estão a mercê da vontade política.
ComCiência
– Quais as principais diferenças entre a metodologia
desenvolvida pela sua equipe em relação ao que já
era feito anteriormente?
Ana Maria Segall - É um método direto de
observar a insegurança alimentar, porque pergunta isso às
pessoas. Internacionalmente – e tradicionalmente – sempre se trabalhou
com a estimativa indireta da insegurança, por meio da renda. A
partir dela se estabelece uma linha de pobreza e se supõe que
abaixo dela estejam as famílias com risco de insegurança
e de fome mais grave. Apesar de ser um bom estimador, ele tanto pega as
pessoas que estão abaixo da linha de pobreza mas em
segurança (por exemplo, a população rural que
mesmo com renda muito baixa, não estão apresenta
carência alimentar. Do mesmo jeito, pode-se ter acima da linha de
pobreza pessoas vivendo em situação de extrema escassez
de alimento, basta que tenha, por exemplo, um idoso acamado. Já
as medidas do tamanho do corpo (peso, altura), também são
medidas muito boas do estado nutricional, mas há casos de
insegurança alimentar extrema e situações
intermediárias em que a pessoa não chega a ser
desnutrida, mas tem carência de qualidade do alimento. Por
não ter dinheiro para comprar uma alimentação
adequada, as pessoas compram alimentos baratos e que, em geral,
engordam, como: muito óleo, açúcar, massa e
carboidrato, ou seja, uma dieta extremamente densa em calorias. As
pessoas não podem comprar frutas, verduras, consomem pouca
carne, praticamente não consomem derivados do leite, leite, e
aí, embora mal nutridas, podem ter sobrepeso ou obesidade.
ComCiência
– O relatório Pnad deste ano revelou que o Brasil vive uma
epidemia de obesidade e parece que as pessoas confundiram esse dado com
a não necessidade de se investir no Fome Zero. O que leva a
população brasileira, pobre, à obesidade?
Segall - Ainda não temos pesquisas que possam
esclarecer isso, mas temos indicativos muito bons do que está
acontecendo. Os maiores índices de sobrepeso e obesidade
estão concentrados entre as mulheres mais pobres, não nos
homens. Talvez o fator mais importante seja o padrão alimentar
que é gerador de obesidade, o que parece um paradoxo. O consumo
de alimentação densamente energética, por ser mais
barata, leva a população mais pobre não só
à obesidade, mas também aos maiores índices de
hipercolesterolemia, de diabetes e doenças cardiovasculares.
E tem outras
explicações mais biológicas. Uma é que
foram populações desnutridas na infância. Existe
uma adaptação do organismo, já comprovada. O
desnutrido na infância tem um risco maior de ter sobrepeso e
obesidade na vida adulta, porque o organismo virou um poupador de
energia. O metabolismo se adaptou a gastar energia só para o
funcionamento do próprio organismo. Outra questão
é que existem pessoas que sistematicamente não tomam
café da manhã, ou não jantam, e o organismo
vivendo na escassez acaba também se adaptando a ter um regime de
gasto energético menor. Há também outras
questões de estilo de vida, pois as pessoas estão com a
vida mais sedentária, não praticam esporte, o que
é diferente entre o rico e o pobre.
ComCiência
- Mas a pobreza sempre existiu no Brasil, porque apenas agora estamos
vendo a população obesa?
Segall - Porque o acesso ao alimento aumentou, as
condições de vida melhoraram e outra coisa muito
importante é que o acesso ao serviço de saúde
também melhorou muito. As doenças que consomem energia,
basicamente as infecções, foram muito reduzidas com a
imunização, com os cuidados básicos de
saúde. Então mais acesso aos alimentos, uma vida
sedentária e uma redução das doenças
infecciosas, principalmente na infância, poupam o gasto
energético. Houve um aumento importante nas últimas
décadas do acesso à água potável, apesar do
sistema de esgoto ser ainda muito precário. É tudo muito
complexo, porque não se tem um fator mais importante [para
causar a obesidade], mas fatores que se potencializam. Isso explica a
questão dessa transição da
desnutrição para a obesidade. Temos hoje no Brasil em um
extremo o sobrepeso e a obesidade, mas ainda se tem muita
desnutrição infantil em populações muito
pobres, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.
ComCiência
- Poderíamos dizer que o perfil da obesidade no Brasil é
diferente do norte-americano?
Segall - Não, acho que lá
também é um reflexo da pobreza, pois a obesidade é
maior na população mais pobre, negra, e entre os
imigrantes latinos. [Os Estados Unidos] também têm
insegurança alimentar. O que muda é a forma de consumo.
Aqui ainda temos preparações caseiras e o arroz com
feijão, cujo acesso ainda é muito fácil e ainda
guarda alguma qualidade. Infelizmente não temos estudos
nacionais sobre consumo de alimentos. Temos estudos como a Pesquisa de
Orçamentos Familiares (POF), mas que não revela o
consumo, e sim a disponibilidade, nas casas, dos alimentos que foram
comprados. Assim, sabemos o que as famílias compram, mas
não como os alimentos são consumidos ou como é a
alimentação fora de casa. Quase ¼ da
população brasileira tem um gasto importante com
alimentação fora de casa e não sabemos como esse
consumo ocorre.
ComCiência
- É uma tendência acharmos que a população
rural tem uma insegurança alimentar menos severa do que a
população urbana, porque podem cultivar para o
próprio sustento? O relatório de vocês mostrou essa
tendência. Esse é o perfil?
Segall - Não podemos generalizar para rural
e urbano dessa forma. O que pudemos ver é que nos grupos que
estudamos há uma diferença entre rural e urbano para
algumas regiões. As populações rurais da
região sudoeste de Campinas (SP) – que é a região
que tem um maior índice de pobreza – estão em melhores
condições do que as que vivem na região urbana.
Eram pessoas extremamente pobres, com nível educacional baixo,
com renda muito baixa, mas tinham alguma produção para
auto-consumo. Mas não observamos isso no Nordeste, pois
trabalhamos com populações rurais da área do
semi-árido que não têm produção e
dependem só da renda, que é muito baixa.
ComCiência
- Qual é o perfil da insegurança alimentar hoje no
país?
Segall - Já temos dois inquéritos
populacionais representativos da população: em Campinas e
em Brasília. E foram muito interessantes porque mostram que
temos em torno de 40% da população vivendo com algum
nível de insegurança alimentar – inclusive a
insegurança leve, que é mais freqüente (que mede
mais a deficiência em qualidade dos alimentos e a
preocupação de que falte alimento em casa). Mas a
insegurança moderada e grave está em torno de 20%, o que
é muito alto. No conceito de moderada e grave incluímos
restrições importantes da quantidade dos alimentos para
os adultos e crianças da família. Estamos em torno de 7%
de insegurança grave, nas duas cidades, muito parecidas em
termos de IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] e renda per
capita. Essa escala [15 perguntas que compõe o
questionário] foi colocada na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (Pnad) do IBGE de 2004, que estará
disponível no início de 2006, dando um panorama nacional
da insegurança alimentar e também do acesso aos programas
de transferência de renda. O perfil nacional surpreenderá
as pessoas, porque a insegurança ainda é um problema, a
fome extrema é rara, mas existe o que chamamos de fome oculta,
que são pessoas que saltam refeições, que
não têm as três refeições
diárias, ou que tem uma dieta que não é adequada,
o que acaba gerando anemia, deficiências outras que normalmente
não estão sendo medidas. Não temos idéia do
reflexo dessa fome, que ainda não é uma “fome africana”,
mas que existe na população brasileira.
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