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Brasil terá seu primeiro perfil de insegurança alimentar em 2006
Ana Maria Segall

Nutrição deve ser pauta de saúde pública
José Eduardo Dutra de Oliveira

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Nutrição deve ser pauta de saúde pública

A preocupação com uma boa alimentação deve fazer parte de todo programa de saúde pública dos governos federal, estadual e municipal. Esta é uma das principais mensagens do médico especialista em nutrição clínica José Eduardo Dutra de Oliveira, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. De acordo com Dutra, os médicos em geral preocupam-se com a cura dos doentes e poucos se dedicam à prevenção de doenças – o que se consegue basicamente com uma boa alimentação. Dutra é membro e um dos organizadores do Consórcio das Instituições Brasileiras de Alimentação e Nutrição (Cibran) uma reunião nacional que será realizada no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de 1 a 3 de dezembro deste ano. Na ocasião serão discutidos, entre outros assuntos, aspectos multisetorias e interprofissionais da Segurança Alimentar no Brasil. Para Dutra, o assunto alimentação tem sido tratado sem o necessário apoio e conhecimento técnico e científico que existe sobre o assunto.

ComCiência - O que se entende por segurança alimentar no Brasil?
José Eduardo Dutra de Oliveira
- O conceito de segurança alimentar é amplo. Em inglês – e nos organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) – fala-se em safety/segurança que compreende uma alimentação livre de microorganismos (agentes de doenças) e sem a presença de agrotóxicos ou de metais como chumbo, estanho ou mercúrio. Já a idéia de security/seguridade é a responsabilidade do governo de garantir a produção, a distribuição e principalmente o consumo da quantidade e qualidade dos alimentos que cada pessoa precisa. Isso envolve aspectos sócio-econômicos e biológicos e alguém tem que ser responsável por isso e trabalhar para que isso aconteça. É preciso ter leis e programas sérios nesse sentido. O país tem que garantir, ter preocupação com a produção de alimentos para alimentação da população. A seguridade está ligada à produção, à disponibilidade, ao preço dos alimentos de modo que garanta a boa alimentação e a sobrevivência da população.

O problema é que dificilmente se entende segurança alimentar com o sentido de uma alimentação que deve ter uma quantidade necessária de nutrientes. Existe uma idéia de que comer bem é comer muito ou comer carne, o que não é verdade. É preciso ensinar as pessoas a comerem nutricionalmente bem, e exigir políticas e programas que promovam a boa alimentação.

ComCiência - O que é um alimento seguro, no sentido de uma boa alimentação?
Dutra
- O alimento deve ter calorias, proteínas, vitaminas, óleos, minerais, enfim, aquilo que é necessário à boa qualidade de vida. E as pessoas precisam ser informadas a esse respeito e devem exigir a segurança dos alimentos. Não se pode vender e nem comprar alimentos nutricionalmente ruins. É preciso exigir responsabilidade da indústria e do comércio de alimentos sobre o que produzem e o que vendem, do ponto de vista de segurança alimentar e nutricional.

ComCiência - Existe desconhecimento em relação ao valor nutritivo dos alimentos?
Dutra -
Sem dúvida. Quase ninguém entende o que está descrito nas “informações nutricionais” das embalagens dos alimentos, que são uma exigência da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Não basta falar difícil sobre porcentagem de proteína ou vitaminas, é preciso orientar as pessoas. Em primeiro lugar, muitas dessas informações são baseadas em dados norte-americanos, que muitas vezes não correspondem à realidade brasileira, ao hábito, à tradição do nosso povo e do nosso país. O que significa um tanto de lipídios, um tanto de glicídios? O que significa uma dieta baseada em um número determinado de calorias? Ninguém sabe. É preciso explicar isso para que a população entenda esses dados.

Já vi isso em estudos que fizemos com a população. As pessoas baseiam sua alimentação em conhecimentos muito superficiais, em propagandas de alimentos ou de dietas que deveriam ser proibidas. E o país só terá segurança alimentar e nutricional se a população se alimentar de maneira correta. É preciso ensinar como se alimentar nas escolas, pelo rádio, pela TV. Como pode existir nas escolas públicas cantinas vendendo tantos doces, refrigerantes e frituras aos alunos, e não leite, frutas ou sucos naturais?

ComCiência - E o que garantiria a boa alimentação?
Dutra
- Eu costumo enfatizar que o carro-chefe do Brasil, responsável pela sobrevivência dos brasileiros, é o arroz com feijão, que oferece energia, proteínas, vitaminas e alguns minerais e vitaminas que precisam ser suplementados com frutas e verduras. O brasileiro só terá vantagem se continuar comendo arroz com feijão.

ComCiência - A mudança de hábitos alimentares está levando a população brasileira a apresentar os altos índices de obesidade que temos visto? O Brasil já está entre os cinco países que mais consomem drogas para emagrecer.
Dutra
- Não há dúvidas, cresce no país a obesidade, assim como também as doenças do coração, o diabetes, a hipertensão e até certos tipos de câncer, que estão direta ou indiretamente ligados à má alimentação. O sobrepeso, a obesidade, é uma desnutrição, do ponto de vista de nutrição pública, de saúde pública – é uma importante causa das doenças crônicas degenerativas. Mas o governo está mais preocupado com o tratamento da obesidade com medicamentos e até com a operação de redução do estômago, do que com a sua prevenção.

A medicina, os médicos e as escolas de medicina têm uma parte da culpa por essa situação, pois a nossa medicina é baseada na cura, e não na prevenção. Os estudantes de medicina já chegam na faculdade com a idéia de curar e não de prevenir as doenças. O próprio Ministério da Saúde, preocupado com o alarme da obesidade no país, tomou providências para aumentar a quantidade de remédios para emagrecer, aumentar a capacidade dos hospitais públicos para fazerem cirurgias de redução de estômago. Em nosso hospital da USP, somos procurados por muitas centenas de pessoas que querem fazer essa cirurgia, que é válida e necessária em alguns casos, mas traz também uma série de complicações. É preciso regulamentar a real necessidade dessa cirurgia, prevenir a obesidade, exigir a responsabilidade ética e humana nas intervenções e evitar o interesse social e econômico da situação.

Esse aumento da obesidade em nosso país é também o resultado de uma cultura disseminada na década de 1970, de que era preciso aumentar a distribuição de comida pelo governo e pelas instituições privadas combatendo a fome no país. Mas ninguém atentou para a qualidade dessa alimentação.

ComCiência - O número de desnutridos/subnutridos também preocupa. Por que os programas voltados para acabar com a fome no país não funcionam?
Dutra
- Estima-se que existam cerca de 40 milhões de pessoas passando fome no Brasil, mas acredito que esses dados são exagerados. O número não deve talvez ultrapassar os 10 milhões, o que não deixa de ser extremamente preocupante. Já os que comem mal e vão sofrer as conseqüências disso são mais de 100 milhões. Infelizmente, os programas brasileiros para acabar com a fome são prioritariamente voltados à doação de alimentos por meio de cestas básicas, cheque-alimentação, ticket-alimentação etc. Isso não funciona. O indivíduo recebe uma cesta e se alimenta em um período, mas e quando a cesta acabar? Não é só “Natal ou Páscoa sem fome”, é preciso comer bem todos os dias.

ComCiência - Esse é o caso do Fome Zero?
Dutra
- Sim. O programa “Fome Zero” surgiu com uma proposta boa – inclusive com uma preocupação nutricional –, mas acabou repetindo os erros dos programas anteriores. Uma das primeiras ações do Fome Zero foi a entrega de cestas básicas no interior do Piauí. Nesse caso, o ideal seria entregar sementes, uma cabra, por exemplo. Uma grande parte da população que passa fome no Brasil está justamente no campo, onde se produz alimentos. Devemos criar condições para que as pessoas se alimentem. E nas regiões urbanas a realidade não muda muito, quem vive na rua fica à espera de doações de alimentos. É preciso ensinar a pescar e não só dar o peixe, é preciso incluir aspectos humanos, incluir socialmente as pessoas que passam fome.

Quem se alimenta bem, tem menos problemas de saúde. O programa Médico da Família, por exemplo, atende as comunidades carentes e, apesar de ser bom, não tem uma programação específica de alimentação e nutrição. Não existe uma preocupação social, econômica, e nutricional para acabar com a fome.

ComCiência - Existe algum programa de combate à fome que possa servir de modelo ao Brasil?
Dutra
- Os organismos internacionais e os especialistas em alimentação e nutrição, não necessariamente médicos, têm trabalhado, discutido e recomendado programas para a boa alimentação, até mais do que ao combate à fome. E alguns desses – que incluem equipes interprofissionais, multisetorias – já funcionam em pequena escala. Mas a área de alimentação e nutrição não tem reconhecimento e nem prestígio. Existe uma grande ignorância a respeito do assunto e dessa maneira os programas são mais políticos, paternalistas, do que sérios. Como vai o Fome Zero.

ComCiência - De um modo geral, podemos dizer que a alimentação no Brasil é segura?
Dutra
- Do ponto de vista microbiológico, higiênico, há preocupação com a segurança. Existe uma grande preocupação com o controle bacteriológico dos alimentos, por exemplo. Já do ponto de vista toxicológico, ou seja, da contaminação dos alimentos com tóxicos, como com o uso indiscriminado de pesticidas, ela é muito menos segura. Na agricultura nacional dizem que até foram usados muitos agrotóxicos proibidos em outros países, e não há uma preocupação com isso.

Os transgênicos podem dar uma contribuição para isso, mas o problema é que atualmente as pesquisas com transgenia visam aumentar a produtividade e o lucro. Por que não pensar em um milho com mais vitaminas, por exemplo? Por que não pensar em exigir a adição ferro e vitaminas no leite usado em programas institucionais e governamentais? Felizmente já começamos no país a fortificação de alguns alimentos como a farinha de trigo e a de milho, mas as crianças pequenas consomem pouca farinha, então é preciso também fortificar outros alimentos como a farinha de mandioca, a água, o leite etc. É preciso entender que a alimentação precede a saúde e a educação, que a área precisa ter atenção, prestígio, apoio e recursos para garantir uma alimentação saudável para todas as pessoas. Chega de querer resolver o problema tão sério como a alimentação com esmolas.

Atualizado em 10/09/2005

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