CARTA AO LEITORNOTÍCIASENTREVISTASREPORTAGENSRESENHASCRÍTICA DA MÍDIALINKS DE C&TCADASTRE-SE NA REVISTABUSCA POR PALAVRA-CHAVE

Carta ao leitor

Equipe

Mande uma mensagem


Parabólica : a Com Ciência na mídia

Leia opiniões sobre a revista

A Teoria do Design Inteligente não é criacionismo, por Enézio E. de Almeida Filho

A autoria e a responsabilidade científica, por Bernardo Melgaço da Silva

A Ciência como fundamento da ação profissional, por Maria Júlia Ferreira Xavier Ribeiro

Agricultura familiar e o Programa Fome Zero, por Pedro Antonio Arraes Pereira

Turismo Solidário, por Sérgio Fonsêca Guimarães

Fome Zero e Nanotecnologia, por Petrus d'Amorim Santa Cruz Oliveira

Em busca de parâmetros para maior consolidação da Comunidade Científica, por Fábio L. Braghin

Carta à ComCiência, por Roque Laraia

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manifesto pela defesa da laicidade na Educação

(*) por Juan José Verdesio

Recente polemica sobre o ensino do criacionismo em escolas públicas do estado do Rio de Janeiro incentivou a publicação de vários artigos nos jornais e revistas em circulação no país. Recente artigo da autoria de Roseli Fischmann (Correio Braziliense, 28/06/2004) sobre O Ensino religioso em escolas Públicas faz uma história da introdução da laicidade no nosso ensino fundamental. Também a Professora Rosana Tidon da UnB se manifestou contrária a esta idéia no artigo Escola é lugar de ciência (ver www.unb.br/acs/bcopauta/educacao7.htm). Estamos convencidos que a iniciativa do governo do estado do Rio de Janeiro é um atentado às bases do Estado democrático de Direito e visa claramente a tomada do poder político por parte de grupos fundamentalistas cristãos. Mas este ataque a laicidade não acontece somente no Brasil. Na Europa, está se discutindo a redação da Constituição Européia sendo que o Vaticano pressionou para que seja incluída na constituição a frase "raízes cristãs". Felizmente os governos da Europa não cederam as pressões do Vaticano e tiraram esta frase da redação.

Temos que lembrar que a iniciativa do governo do Rio de Janeiro está embasada na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDB) de 1996 onde, no artigo 33 se estabelece que:
Art. 33º. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter:
I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou
II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.
Este artigo da LDB por sua vez, princípio da laicidade do Estado? Ainda mais grave a meu se origina num anacronismo da Constituição de 1988 que retrocede um século ao pedir a proteção de Deus no preâmbulo e elimina o caráter laico do ensino público existente na Constituição de 1891 (Artigo 72 .... Ser leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos).

Visto isto nos sentimos na obrigação de tentar esclarecer a opinião pública brasileira sobre a importância da defesa da laicidade. Acreditamos que é nossa obrigação, como professores conscientes do respeito que devemos exercer dia a dia do princípio de neutralidade e nos opor a este tipo de atentado à democracia.

Vamos começar por definir o que é laicismo e laicidade. O Laicismo é uma doutrina filosófica que apregoa a limitação da ação dos grupos organizados em torno de uma religião. Os partidários desta doutrina consideram que toda organização religiosa limita a liberdade de expressão. Portanto limitando a atividade religiosa estaria se fomentando a livre e espontânea expressão. Esta corrente surge a partir dos abusos que foram cometidos pela intromissão de correntes religiosas na política das nações. O laicismo teve seu auge no fim do século XIX e no início do século XX. Hoje existem correntes de pensamento mais tolerantes quanto a não combater a religião em nome da razão. Hoje é aceito que a religião é um fenômeno cultural da humanidade que deve ser respeitado e tolerado. O problema fundamental da intromissão da religião no Estado Democrático de Direito é que ela, sempre abriga o germe do fundamentalismo, da intolerância. A maior parte dos grupos religiosos acha que a sua visão de mundo é a mais correta, quando não a única correta. Algumas correntes religiosas são muito tolerantes. Outras, no entanto, como os evangélicos pentecostais, tendem aos extremismos e podem até chegar a cometer atos violentos contra aqueles que não professam a sua fé. Lembrem do pastor batendo na imagem de Nossa Senhora de Aparecida que foi veiculada por um canal de tv há alguns anos atrás.

Desde o início do século XX, nos estados democráticos modernos, em maior ou menor grau, é aceita a separação entre qualquer Igreja e o Estado. No estado Democrático de Direito a laicidade do Estado vem junto com o princípio de garantia da liberdade de expressão. Para que exista esta garantia o Estado deve ignorar qualquer religião. As instituições do Estado devem ser neutras. Desde a Constituição de 1891 no Brasil separa o Estado da religião. É um avanço importantíssimo na história das organizações políticas. Pela primeira vez em nossa História isto acontece.

Em diversos países, em diversas culturas, a laicidade tem tomado também formas diversas. Nos países com história de fortes conflitos religiosos, a laicidade toma formas extremas, se manifesta de maneira mais exacerbada. No caso da França a incorporação da laicidade teve como resultado a eliminação gradativa dos conflitos religiosos no século XIX. A laicidade originada da luta anticlerical, da luta contra os grupos religiosos que queriam (e conseguiam) dominar o Estado (reprimindo os partidários das outras seitas), acabou se impondo, mas mesmo hoje, continua tendo interpretações diversas. A recente polêmica aberta sobre a proibição do uso ostensivo de símbolos religiosos por parte dos estudantes na França (mais especificamente do véu das meninas muçulmanas nas escolas públicas), mostra como o tema ainda está em aberto.

A Turquia é um dos poucos países não cristãos, que instaurou de maneira radical o modelo laico ocidental. Em 1924 Ataturk empreendeu uma reforma radical onde:
· O califado é abolido.
· É adotado o código civil suíço.
· As confrarias religiosas são abolidas.
· Proibiu-se o uso público de roupas religiosas (turbantes nos homens e véus nas mulheres)
· Adota-se o calendário gregoriano e o descanso aos domingos.
· O ensino religioso tradicional é substituído pelo ensino moderno e laico.
· O alfabeto árabe é trocado pelo alfabeto latino.

Reforma tão radical influenciou profundamente o mundo muçulmano. Mas, por ter sido tão radical, por não ter sido feita de forma gradual, essa reforma ainda gera resistências muito fortes. Hoje, o ressurgimento do fundamentalismo islâmico naquele país, estimulado pelo recrudescimento do conflito entre judeus e palestinos e pelas intervenções militares ocidentais no Oriente Médio [exemplos?] traz o risco de promover um retrocesso que instaure uma ordem política ainda o pior que aquela vigente antes da reforma.
Na América latina, o México, após a finalização da sua sangrenta revolução camponesa, no início de século XX, adotou também uma laicidade extrema. Neste país, a Igreja católica foi alvo de severas críticas pelo seu conservadorismo e pelo apoio que havia dado aos contra-revolucionários. Para se ter uma noção do grau de ressentimento dos governantes mexicanos para com a Igreja, até bem pouco tempo atrás o México não reconhecia o Vaticano como um estado soberano.

Um outro país latino-americano inspirou-se na França para adotar uma laicidade mais radical. É o caso do Uruguai. Citando o meu tio, um grande educador uruguaio: "Maestro Emilio Verdesio" no seu livro Educação e Democracia, publicado no Uruguai em 1943:: "a universalização da educação básica nos estados democráticos tem no seu cerne o princípio da neutralidade". Para se obter a universalização dos conhecimentos básicos do cidadão a escola pública deve ser gratuita, obrigatória e laica. O que norteia a laicidade no Uruguai é o princípio de neutralidade religiosa, mas também a neutralidade política. Considerou-se na legislação da época (Lei de 9 de abril de 1909) como fundamental para existir a garantia de liberdade de cultos, que se respeite este princípio de neutralidade no ensino. Citando outra vez a Verdesio (1943): "os estados democráticos formados por cidadãos livres têm o direito de uma escola pública neutra. Os conhecimentos que devem ser ensinados numa escola pública, portanto são todos aqueles que são universalmente aceitos, não aqueles que fazem parte de dogmas religiosos ou políticos". Não pode, nem deve ser permitida, no ensino público, a pregação de qualquer religião ou ideologia política. Esta é a melhor forma de respeitar a individualidade, e a igualdade de direitos e obrigações das crianças, futuros cidadãos. As crianças não devem ser tratadas como futuros soldados ou pregadores de tal o qual ideologia ou religião. Cabe a esfera privada da família decidir se esta criança vai receber tal ou qual educação religiosa. Cito uma frase do Reformador da escola Pública do Uruguai: José Pedro Varela: "os que uma vez sentaram-se juntos, nas cadeiras de uma escola a qual pertenciam, usando do mesmo direito, habituam-se facilmente a considerarem-se iguais, a não reconhecer mais diferenças que as que resultam das aptidões e virtudes de cada um". Em 1885, Varela conseguiu que fosse aprovada a Lei de Educação Comum, a qual implantou as escolas públicas gratuitas, obrigatórias e laicas.

No Brasil, a defesa da laicidade é mais recente, mas não menos importante e fonte de grandes discussões nos anos 30. Um dos principais defensores da laicidade foi Anísio Teixeira que assina, em 1934, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e publica artigo comemorativo deste manifesto em 1984 . Ali ele expressa o seguinte sobre a laicidade na educação pública:

"A laicidade, que coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectario, subtrãe o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, ?om pressão perturbadora da escola quando utilisada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas". ( a ortografia é a usada na época)

Pareceria que estamos esquecendo que muito se lutou para que o "sectarismo fosse banido do ensino público brasileiro. Por que esquecemos isto?. Por que ainda existem símbolos religiosos nas instalações públicas dos poderes legislativos e judiciais e no dinheiro se louva a Deus? O que tem a ver moeda com religião?

Muitas vezes, discutindo estes temas com colegas e amigos, escutei o argumento de que a religião é um fator importante na difusão de valores de respeito, de amor e de tolerância. Não acredito nesse argumento. A violência e a intolerância social se combatem com a certeza de que quem infringe as leis civis será punido pela lei dos homens, não pelas "Leis de Deus". Nos estados teocráticos é certo que, como Estado e religião se misturam, a Lei de Deus é a que pune através do Estado. Corta-se o dedo ou a mão do ladrão, apedreja-se até a morte a mulher infiel, etc. Será que vamos retroceder na história e voltaremos a ter um Estado orientado por idéias religiosas? A religião tem que continuar a ser um assunto privado e de escolha livre por parte de cada um. O Estado não deve promover, quer seja pela adoção de símbolos quer seja por meio de disciplinas escolares, uma ou outra religião. O Estado tem que estar mais presente por meio de uma Polícia e um Sistema de Justiça eficientes e universais, sem necessidade do apelo religioso. O Estado não deve criar espaços no ensino público para a pregação religiosa. Na enorme diversidade cultural e religiosa que existe no Brasil é impossível se chegar a um consenso de qual seria a religião que deveria ser ensinada.

Para concluir, gostaria de expressar o meu sentimento de que acredito que a expansão da laicidade pode ser um agente importantíssimo de modernização no Brasil. Lamentavelmente, só ela não vai conseguir mudar a sociedade brasileira. A expansão da violência urbana e do narcotráfico, a proliferação de seitas evangélicas fundamentalistas entre os mais pobres, a crença de que a eleição de uma autoridade executiva paternalista solucionará todos os problemas são todos fenômenos brasileiros que têm a mesma origem: a pouca credibilidade dos ideais republicanos entre a maior parte da população. Ainda se acredita muito em milagres. Muitos integrantes dos grupos políticos que apoiaram a ascensão do atual governo acreditavam em milagre. Como o presidente não faz milagre, o abandonam e formam outro partido político. Mais filosofia, mais laicidade, menos messianismo ou populismo, esse é o caminho para um Brasil moderno.


(*) Juan José Verdesio é professor da Universidade de Brasília (UnB)
Fones: (5561) 368 9011 e 99823452
Email verdesio@unb.br

 

 

 

Atualizado em 06/08/04

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2001
SBPC/Labjor
Brasil