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A propriedade das invenções: história de um equilíbrio instável

Frente ao juiz do Tribunal Supremo dos Estados Unidos, Ananda Mohan Chakrabarty sorri. Há oito anos está esperando esse momento. Escuta feliz, em silêncio, as palavras do juiz - como que para saboreá-las. É o mês de junho de 1980. Chakrabarty, pesquisador da companhia General Electric ganha sua luta. A nascente indústria biotecnológica ganha junto com ele: o cientista pode patentear sua invenção. E a sentença do Supremo entrará na história, porque o que Chakrabarty inventou não é um motor nem um novo fármaco, não é um componente eletrônico nem uma substância plástica. Chakrabarty está liberado para patentear uma bactéria geneticamente modificada e todos os seus descendentes: seres vivos, sobre a produção comercial dos quais o pesquisador terá direito de receber royalties. Com a patente U.S. 4.259.444, Chakrabarty registrou sua posse sobre um microorganismo do gênero Pseudomonas capaz de degradar, em parte, o petróleo. O Tribunal comenta a sentença utilizando uma paráfrase bíblica: "tudo o que se encontra abaixo do Sol, feito pela mão do homem, pode ser patenteado", porque "a questão relevante não é a distinção entre coisas vivas e inanimadas, mas se os produtos vivos possam ser vistos como invenções feitas pelo homem".

Um ano depois são "inventados" camundongos nas veias dos quais corre hemoglobina de coelho, ou que se tornam gigantes graças ao gene de uma ratazana. Logo depois surgem as primeiras plantas transgênicas. E, em 1988, o "OncoMouse" - um camundongo transgênico criado em Harvard com a "capacidade" de desenvolver rapidamente um câncer - torna-se o primeiro animal patenteado: o business biotecnológico está pronto para decolar. No entanto, junto com as polêmicas sobre riscos e benefícios da manipulação genética, surgem aquelas sobre a legitimidade de patentear organismos e fragmentos de DNA.

Mas as patentes são tão antigas quanto a economia de mercado. Cada revolução tecnológica trouxe consigo formas de proteção da propriedade intelectual. E os debates sobre a gestão delas.

As "cartas abertas": o monopólio no mundo das idéias

Os primeiros registros de direito de uso monopolístico de invenções surgiram na Itália da Renascença e na Inglaterra. O renovado interesse pela invenção tecnológica, a revalidação dos saberes práticos, da observação e medição do mundo - que foram as sementes do nascimento da ciência moderna - trouxeram também a questão da proteção dos direitos de propriedade intelectual. Os artesãos sopradores de vidro de Veneza, ainda hoje famosos no mundo, estiveram entre os primeiros a reivindicar direito de monopólio sobre as técnicas por eles utilizadas, e exportaram a idéia para a Europa inteira.

Por volta de 1470, o governo de Veneza emitiu medidas de lei sobre proteção dos direitos dos inventores. Mas, já em 1449, narram as crônicas, John Utynam ganhava na Inglaterra o monopólio de 20 anos sobre um processo de produção de vitral, em troca do compromisso de ensinar a técnica, ainda desconhecida na ilha, aos artesãos ingleses. "Apesar de ser um instrumento de origem feudal, a patente é uma instituição altamente funcional ao sistema capitalista", explica Sérgio Paulino de Carvalho, economista da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador associado do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Unicamp. "O controle em outros sistemas de produção se fazia por meio do controle físico sobre o trabalhador: o escravismo era uma dessas formas, as formas de controle do servo pelo senhor feudal eram outra".

Hoje, uma invenção, para ser considerada patenteável, deve satisfazer três requisitos: tem que ser original (não conhecida previamente), inventiva (representar uma inovação não "óbvia") e tem que ter uma aplicação industrial. Na época, as patentes eram diferentes. Não havia regras fixas, nem entidades governamentais para avaliar a concessão: as autorizações ao uso monopolístico de uma inovação eram atos do rei, que avaliava cada caso, e eram conferidas por meio de cartas oficiais carimbadas com o selo real. Essas "cartas abertas", ou litterae patentes (o adjetivo latim significa "claro", "visível", "aberto") acabaram fornecendo nome de batismo para a nova prática de proteção da propriedade das invenções.

Nos séculos XVI e XVII, os reis das dinastias Tudors e Stuarts garantiram monopólios sobre algumas dezenas de invenções e promulgaram um Estatuto de Monopólios. No século XVIII e XIX foi introduzida a regra que colocou que o pedido de patente deveria ser acompanhado por uma descrição clara e completa da invenção e de como ela era feita. Logo, as colônias da América do Norte também decidiram montar um sistema de monopólios limitados. Depois da revolução de 1788, no artigo I da nova Constituição, estava escrito que o Congresso podia "incentivar o progresso da ciência e das artes úteis garantindo por tempo limitado aos autores e inventores o direito exclusivo sobre os próprios escritos e descobertas". A II revolução científica, no final do Século XIX, conferiu importância crucial às patentes, que serviam - explica Paulino de Carvalho - tanto como mecanismo de controle de mercado como de captação de recursos: "a patente podia ser oferecida como garantia de captação de recursos no mercado mobiliário. Nos EUA, as patentes tiveram papel importante na nascente indústria química, de eletricidade e telefônica e foram, também, utilizadas como elemento importante de formulação de políticas: até a primeira guerra mundial a indústria química alemã dominava o mercado norte-americano, especialmente de produtos intermediários. Durante a guerra, os EUA, nacionalizaram as patentes alemãs, com um processo perfeitamente legítimo".

O que faltava para potencializar o mecanismo era a internacionalização do sistema de patentes, o que aconteceu a partir da Convenção de Paris, em 1883, bisavô dos atuais acordos mundiais sobre propriedade intelectual, como o acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights). O TRIPS nasceu em 1994 durante a chamada "Rodada do Uruguai", encontro histórico para a revisão dos acordos comerciais mundiais ligados ao acordo GATT (General Agreement of Tariffs and Trade) da Organização Mundial do Comércio. Com o TRIPS, todos os países da OMC se comprometeram a uniformizar, em tempos estabelecidos, as próprias leis sobre propriedade intelectual. "No acordo", explica Sergio Paulino, "é particularmente relevante a imposição de proteção de todos os campos do conhecimento e de tempo mínimo de duração da proteção, reduzindo os graus de liberdade dos países nas legislações nacionais. Na prática, isso implicou o reconhecimento de proteção para fármacos, medicamentos e plantas. Na lógica do TRIPS, havia um ganho para os países em desenvolvimento: o acordo reduzia o peso das retaliações unilaterais, especialmente por parte dos EUA. Todavia, esse ganho tem sido ameaçado pela pressão norte-americana para que os países em desenvolvimento assinem acordos bilaterais e regionais relativos à propriedade intelectual".

No entanto, nos últimos 30 anos, surgiram vários organismos transnacionais para gerir as patentes: em 1974 as Nações Unidas incorporaram a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI, http://www.wipo.int/index.html.es), sediada em Genebra (Suíça), enquanto a União Européia fundou em 1978 o European Patent Office (http://www.european-patent-office.org/), sediado em Munique.

Paralelamente à expansão do domínio das patentes, ao surgimento de nova tecnologias e novas formas de inovação, cresceu o debate, que é tão antigo quanto as patentes, sobre o impacto delas na sociedade, sobre os riscos e benefícios do monopólio em um regime de mercado livre.

Um equilíbrio frágil

De acordo com a OMPI, as patentes constituem incentivos para os inventores porque

(http://www.wipo.int/about-ip/es/about_patents.html#why_patents) oferecem reconhecimento para criatividade e recompensas materiais para as invenções comercializáveis. Estes incentivos estimulam a inovação, que garante uma melhoria constante da qualidade de vida". Nem todos concordam. Já em 1610, o rei da Inglaterra foi forçado a anular as patentes e declarar que os monopólios eram "coisas contrárias às nossas leis". E inseriu a doutrina do interesse público: os monopólios podiam ser aceitos somente por tempos limitados e em caso de invenções que não fossem "daninhas para o país" e que não causassem aumentos injustificados dos preços.

Benjamin Tucker (1854-1939), intelectual americano anarquista, foi um crítico severo do sistema de patentes, copyright e marcas registradas. Tentou demonstrar, comparando invenções, obras de arte e marcas a outros produtos do trabalho humano, a tese de que patentes e copyright eram privilégios para pouco às custas de muitos, e que somente o "direito de copiar" podia garantir progresso, inovação e uma autêntica livre concorrência. Mais recentemente, aos problemas ligados à gestão do monopólio temporário que carateriza as patentes, se somaram os problemas, tanto epistemológicos quanto éticos, de como definir a originalidade de uma inovação, ou até o próprio conceito de "invenção", no contexto, por exemplo das ciências da vida.

Um problema epistemológico

Por volta de 1995 e 1996, no momento do grande boom do seqüenciamento genético, nos Estados Unidos, os National Institutes of Health e The Institute for Genomic Research submeteram pedidos de patentes (sucessivamente retirados) para mais de meio milhão de fragmentos de DNA humano, com argumentação extremamente ambígua tanto a respeito da demonstração da aplicação industrial quanto da "novidade" da "invenção". Na mesma época, as primeiras plantas transgênicas, patenteadas, entravam no mercado mundial. Os pedidos de patente não cobriam simplesmente um produto ou processo. A companhia Agracetus, comprada pela Monsanto, era proprietária de uma patente que protegia qualquer planta de soja transgênica manipulada com qualquer técnica e contendo qualquer transgêne. E uma patente da Monsanto protegia "qualquer planta resistente ao glifosato", do grupo milho, soja, trigo, arroz, algodão, tabaco, batata, girassol e muitas outras.

Evelyn Fox Keller, filósofa e historiadora da ciência, mostrou nos últimos anos as fortes limitações do conceito de gene: a equação antiga, marca registrada do determinismo genético, "um gene = uma proteína = uma caraterística do organismo" não consegue explicar a complexidade e fluidez do genoma. Patentear fragmentos de DNA, critica a filósofa, como se fossem invenções diretamente ligadas a uma isolada "inovação", não funciona epistemologicamente nem praticamente.

Um problema ético

Na mesma época, organizações ambientalistas e de direitos humanos questionaram a legitimidade ética das patentes sobre DNA e seres vivos. O vice-presidente do Conselho da Academia das Ciências do Terceiro Mundo (TWAS), Muhammad Akhtar, declarou que agricultura era o resultado da experiência coletiva ganha à custa do suor dos camponeses ao longo de milhares de anos. "A tecnologia do DNA recombinante alterará não mais que 1% do genoma da plantas", acrescentou. "Seria então uma afronta ao senso de justiça que corporações multinacionais possam afirmar a propriedade, por meio de patentes, desses sistemas vivos, graças a uma contribuição tão minúscula". O conflito com os biotecnólogos era evidente.

"Eu vejo simplesmente que precisamos de remédios", declarou num encontro em Milão, respondendo questionamentos, Renato Dulbecco, geneticista italiano e prêmio Nobel para medicina em 1975. "É fácil falar em termos românticos. A realidade é que se as empresas privadas não tivessem investido nessas patentes, muitos remédios não existiriam".

Um problema político

Quando não de "românticos", os defensores das patentes biotecnológicas acusam os adversários de obscurantismo, de ter medo da ciência e do progresso. No outro lado da barricada, muitos ambientalistas contestam que o avanço científico e tecnológico não está em discussão. Vandana Shiva, física indiana, eco-feminista, responde: "Não somos contra o reconhecimento de benefícios econômicos para estimular a pesquisa. Muitas organizações do sul do mundo pediram com sucesso que os governos desenvolvessem sistemas alternativos, sui generis, de proteção da propriedade intelectual, para defender os inventores resguardando o acesso público aos sistemas de conhecimento tradicionais. Mas esses sistemas alternativos encontram a violenta oposição dos EUA".

Mais recentemente, Shiva declarou numa entrevista à revista In Motion: (http://www.inmotionmagazine.com/global/vshiva4_int.html): "Na lei indiana de patentes, a agricultura não podia ser tocada. E na medicina [...] podia haver monopólio sobre um medicamento, mas não sobre um método de se fazer medicamentos. Hoje, a medicina foi colocada ao alcance dos monopólios. As sementes também. E as células, os genes, os animais foram colocados nos monopólios. [...] A lei de patentes dos acordos da OMC [...] é um instrumento totalmente coercitivo e tem exclusivamente uma função negativa: impedir [...] que os países tenham capacitação tecnológica. [...] Eu chamei isso de enclosure, a última cerca. Antigamente, houve o cercamento das terras, que eram um bem coletivo. Hoje, estamos vendo cercas da biodiversidade [...] Uma semente não pode se reproduzir sem permissão do detentor da patente. O conhecimento não pode ser transmitido sem permissão e licença".

Sergio Paulino explica porque a questão é relevante, no sul do mundo, por exemplo na área de saúde pública: "uma das estratégias utilizadas pelos países em desenvolvimento antes do acordo TRIPS foi a de excluir medicamentos de proteção patentária. Após o acordo, muitos dos países utilizaram as flexibilidades oferecidas, em especial o tempo para o reconhecimento de proteção. Com isso, a Índia pôde produzir princípios ativos protegidos nos países de origem e exportá-los como medicamentos genéricos. Essa estratégia possibilitou a países, como o Brasil, importarem princípios ativos e produzir, por exemplo, os remédios que atendem aos soropositivos. Entretanto, essa alternativa deixa de ser viável a partir de 2005. Com isso, há a possibilidade de comprometimento do atendimento dos pacientes, implicando num confronto entre o interesse privado e o interesse público e humanitário".

Instrumento bizarro, antigo e moderno, incentivo à inovação por meio da proibição, a patente ainda vai oferecer, durante o século XXI, muitos argumentos para a discussão. Como nasceu, assim continua vivendo: num frágil, instável, polêmico equilíbrio entre interesse público e encorajamento à iniciativa privada. Quem achar a forma certa dessa invenção para proteger invenções merecerá um prêmio. Ou, pelo menos, uma patente.

(YC)

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Atualizado em 10/08/2004

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