[an error occurred while processing the directive] Reportagens

A rastreabilidade como uma ferramenta na fidelização dos consumidores

Albino Luchiari Filho
Daniel Oliveira de Lucena Sarmento

Recentemente a Escócia foi palco de vários protestos organizados pela NFUS (National Farmers Union Scotland) contra a importação de carne bovina brasileira sob diversas alegações, principalmente pelo fato desta ser mais barata que a carne escocesa, mas, também, por causar impactos ambientais negativos decorrentes tanto da necessidade de transporte por milhares de quilômetros, como afirmações de que essa carne seria oriunda de áreas devastadas da floresta amazônica. Questionam ainda as condições em que esses produtos são obtidos, sugerindo que os rígidos padrões e controles aplicados à pecuária européia, em particular a escocesa, não são praticados pelo Brasil.

Isto é uma pequena amostra do que está por vir a partir do momento em que o Brasil se torna um big player como eles próprios têm definido ultimamente, e aumenta as exportações de carne bovina e suína, frangos, café, suco de laranja e soja para os quatro cantos do globo.

Essa não foi a primeira vez que a carne brasileira sofreu retaliações no âmbito da União Européia e não será a última. Há poucos anos um movimento semelhante foi responsável pela paralisação e fechamento de várias lojas da cadeia de fast food McDonald’s na Alemanha, principalmente pela alegação infundada de que a carne era produzida na região amazônica.

Esses são casos típicos nos quais a existência de um sistema efetivo de rastreabilidade (traceability) poderia mostrar que essa carne não é produzida naquela região, embora nada exista que desabone a produção e o consumo de carnes oriundas de áreas legalmente produtivas daquela região. Mais ainda, a humanidade em seu 21º século da Era Cristã ressente-se da falta de proteínas de qualidade em quantidade suficientes, com custos acessíveis, que possam ser consumidas por toda a população. Segundo a OMS mais de 10 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade morrem anualmente por falta de alimentos. O que será pior, deixar esses seres humanos perecerem de fome ou produzir carne mais barata?

Há poucas décadas a produção e distribuição de alimentos era feita de forma local e regional. A produção e o consumo eram realizados basicamente no mesmo local. Só a partir do final do século XIX e começo do século XX, com o artifício dos transportes refrigerados, a produção em um local e o consumo em outro local distante começou a efetivamente acontecer. Como implicação prática desses acontecimentos temos que um lote produzido hoje num determinado ponto do planeta possa ser consumido em vários outros pontos do mesmo. Na hipótese de um desses lotes conter qualquer tipo de contaminação de ordem biológica, química ou mesmo física, a conseqüência seria surtos que extrapolariam as dimensões continentais.

Alguns eventos recentes ilustram claramente a necessidade de alguma forma prática de acompanhamento desde o nascimento, produção, abate, processamento, distribuição, comercialização dos produtos, refletindo até mesmo o momento de consumo daquele produto. Os mais significativos foram aqueles provocados pela encefalopatia espongiforme bovina (BSE) e pela febre aftosa, que aconteceram principalmente na Inglaterra, mas também em vários outros países da UE. Outros exemplos são os frangos contaminados com dioxina que consumiram rações contaminadas por este composto, os hambúrgueres contaminados por Escherichia coli O157:H7 nos Estados Unidos, os queijos contaminados por Listeria na França, além de outros produtos utilizados em ração animal, como é o caso da soja.

Como o medo do desconhecido, por menor que seja esse risco, é muito maior do que o medo dos riscos conhecidos, as informações que são veiculadas sobre a segurança dos alimentos têm trazido grande preocupação aos consumidores, e conseqüentemente, estes se tornam mais exigentes. A necessidade de se identificar os produtos da melhor e mais visível forma possível, torna-se preponderante num empreendimento moderno que esteja comprometido com o consumidor. A produção e o processamento dos mesmos, respeitando as formas convencionalmente aceitas e corretas, sem o uso de produtos impróprios para o consumo humano, sem a destruição ou contaminação do meio ambiente, sem a utilização de técnicas desumanas, determinarão a credibilidade de um produto pelos consumidores. Buscando conquistar essa credibilidade, técnicos e instituições têm procurado, através da rastreabilidade, assegurar a garantia da origem dos produtos. Através da aplicação dos procedimentos padrão em: fabricação, manipulação, higiene e sanitização, pretende-se assegurar que aquele produto tenha sido produzido dentro das boas práticas de fabricação e possa receber seu certificado de origem, analogamente ao certificado de garantia de qualquer outro produto.

Assim, há a necessidade de se monitorar os processos ligados aos elos da cadeia produtiva da carne. Nesse contexto, a rastreabilidade surge como um processo de recuperação do histórico ou da localização do animal por meio de identificações registradas, sendo possível monitorar animais individualmente ou por lotes homogêneos desde o nascimento até o abate, armazenando todas as ocorrências relevantes ao longo de sua vida. Através do monitoramento individual, desde as etapas do sistema produtivo até a comercialização, é possível verificar, dentre outras coisas, possíveis problemas acontecidos ao longo do processo, garantindo assim a qualidade do alimento para o consumidor, seguindo ainda a legislação vigente para o produto em questão. Levando em consideração as dimensões do nosso país, a inoperância das instituições públicas responsáveis pela fiscalização do processo, os interesses econômicos de empresas particulares responsáveis pela certificação, a disparidade fiscal existente entre estados e a inexistência de lotes homogêneos dentro até de uma mesma propriedade, questiona-se: será mesmo possível ter um animal rastreado da fazenda até a mesa do consumidor?

Porém, não importante só essa habilidade de rastrear as informações (trace back ou forward) como característica de um sistema de rastreabilidade, mas, também, a existência de um método rápido paralelo de alerta também chamado de rapid alert system for food, que permita identificar o problema em qualquer nível, como a matéria-prima, o próprio produto, a cadeia e o fluxograma de produção, assim como o processamento como um todo, estabelecendo critérios de correção e, em última análise, os procedimentos no caso de recolhimento de produtos que apresentem não conformidades.

Um sistema de rastreabilidade permite ainda garantir tanto a questão da segurança alimentar, que é o acesso da população a um alimento nutritivo, saudável, como a segurança dos alimentos, ou a garantia contra possíveis perigos que possam estar presentes nos mesmos e afetam a saúde humana. Associado às novas leis contra o bioterrorismo se torna uma ferramenta imprescindível na conquista e fidelização dos consumidores.

Exemplos bem sucedidos como o Sistema Nacional de Identificação Australiano (National Livestock Identification System – NLIS) tem como premissa através da rastreabilidade, uma possibilidade de agregar valor ao produto, permitindo assim a manutenção e eventual conquista de novos mercados. Como exemplo da importância de se agregar valor ao produto final, pesquisa recente realizada entre consumidores europeus mostrou que mais de 70% dos entrevistados estariam dispostos a pagar até três vezes mais para adquirir um produto diferenciado dos pontos de vista sanitário, da preservação do meio ambiente e do bem-estar animal.

No Brasil, até pouco tempo, o sistema de identificação restringia-se somente ao controle do sistema de produção dentro da propriedade. Entretanto, diante das pressões de agentes econômicos e de mercados consumidores, foi criado, em janeiro de 2002, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Sistema Brasileiro de Certificação de Origem Bovina e Bubalina (Sisbov), com o objetivo de regular ações, normas e procedimentos adequados ao registro dos bovinos e bubalinos (búfalos)brasileiros. O objetivo principal desse sistema foi gerar um histórico de cada indivíduo ou lote até 40 dias antes do abate, sendo os dados armazenados na Base Nacional de Dados (BND), de forma a garantir que os animais abatidos para exportação estivessem devidamente rastreados. O sistema foi imposto aos produtores que, através de certificadoras credenciadas pelo Mapa, teriam que implantar, identificar e certificar seus rebanhos sob pena de serem descontados em média em R$ 1,00 por arroba. O que, em suma, deveria ser um incentivo pela busca da produção de um alimento seguro, tornou-se uma penalização aos que simplesmente não aderiram ao processo ou àqueles cujo rastreamento do rebanho passou a ser uma limitante à viabilidade econômica de seu negócio.

Porteira adentro, a rastreabilidade surge como um potencial de gerenciamento das atividades de manejo, facilitando e tornando mais acurados os programas de melhoramento, controle zootécnico, manejos sanitário e reprodutivo do rebanho, além de permitir uma maior padronização do produto final e uma possível valorização do seu preço (valor agregado).

Existe uma necessidade clara de reestruturação do sistema, tornando-o mais eficiente e acessível, não onerando o processo produtivo da carne nos diferentes elos da cadeia. É preciso ainda torná-lo mais racional e coerente com a realidade nacional, uma vez que existe uma demanda crescente por produtos de qualidade, e o próprio mercado interno carece de produtos de boa qualidade, assegurando ao consumidor informações relativas à alimentação e sanidade do animal que deu origem ao produto.

A expectativa é que, em um futuro próximo, a rastreabilidade possa ser encarada como uma prática realmente vantajosa para os produtores de carne do nosso país. Mais importante ainda é que a adesão da grande maioria resulte da manutenção e abertura de novos mercados, da percepção de um maior valor agregado e da fidelização de consumidores a um produto que satisfaça aspectos desejáveis no que se refere a um alimento seguro.

Como o objetivo do produtor, da indústria e do varejo é ter um consumidor satisfeito, só com a rastreabilidade dos produtos, e nesse caso não se limita à carne bovina, poderá haver garantia de um produto seguro e saudável. Certamente essa garantia trará um grande beneficio para toda a sociedade.

Albino Luchiari Filho é zootecnista, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos, campus da USP – Pirassununga, SP e Daniel Oliveira de Lucena Sarmento é zootecnista, doutorando da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, campus da USP – Piracicaba, SP.

Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/09/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

Licença Creative Commons
SBPC/Labjor
Brasil