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Créditos

 

 

Jornalismo e questões de linguagem:
a importância do jornalista pesquisador

Graziela Zanin Kronka

Ao pensar nas relações entre Jornalismo e Linguagem sempre remeto à minha experiência pessoal enquanto jornalista e lingüista para discutir as relações estreitas entre estas duas áreas do conhecimento. Talvez porque as concepções que construi durante meu percurso enquanto produtora e estudiosa do jornalismo me levaram a enxergar tal afinidade. Dessa forma, esse texto tem, pelo menos, duas razões para ter sido produzido. A primeira diz respeito à tentativa de concretizar, materializar e fazer repercutir algumas inquietações a respeito de duas áreas que estão diretamente relacionadas entre si e, juntas, ao funcionamento da sociedade. A segunda se caracteriza mais como um desabafo, e tem o intuito de explicitar, aos que insistem em questionar sobre o interesse de uma jornalista em enveredar pela pesquisa na área da Lingüística (mais especificamente, na Análise do discurso), e aos demais interessados nas questões que envolvem Jornalismo e/ou Linguagem, as relações que enxergo tão estreitas.

A necessidade de buscar na Lingüística os fundamentos de minhas reflexões enquanto jornalista ocorreu ao detectar que tanto o jornalismo quanto os elementos que o compõem (os fatos, as notícias, os textos, as informações) são (ou, ao menos, estão diretamente relacionados a manifestações da) linguagem. Assim, a Lingüística é, sem dúvida, uma disciplina apropriada para o jornalista interessado em entender os mecanismos lingüísticos de que ele próprio lança mão para transformar os fatos em notícias, as notícias em textos, e, por fim, os textos em informação. No mesmo sentido, a delimitação pela Análise do Discurso, sobre a qual discorrerei brevemente a seguir, justifica-se pela própria concepção de linguagem que adotei, a saber, a da linguagem constituída por um aspecto material (a língua, a parte visível "a olho nu") atravessado pela história e pela ideologia (as quais caracterizam relações essenciais para se detectar o sentido, relações que, ao contrário da língua, não estão disponíveis ao observador desprovido de determinado arsenal teórico de análise).

A AD - tal como é conhecida a vertente francesa da análise do discurso[1], na qual busco referencial teórico para as reflexões sobre a linguagem - coloca-se em relação às Ciências Humanas refletindo a relação sujeito-linguagem-história, e tem como objeto o (inter)discurso, lugar onde se dá essa relação.

Michel Pêcheux, em sua obra Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio[2], na qual propõe uma teoria da significação fundada numa posição materialista do discurso, ressalta a preocupação demasiada dos lógicos em tentar estabelecer uma relação transparente e direta entre linguagem e conhecimento. Estes, por meio de uma linguagem natural, procuravam uma ferramenta válida que levasse ao conhecimento verdadeiro e consideravam imperfeição da linguagem qualquer mecanismo que dificultasse essa busca. Pêcheux se opõe a esta concepção, que ele chama de "logicista", por considerar que ela trata as oposições "ideológicas e políticas" como resultantes de imperfeições da linguagem. Contrariamente a essa visão utópica, de linguagem inequívoca e unívoca, ele trabalha com a oposição entre base lingüística e processo discursivo, sendo a primeira um sistema comum a todos os falantes (no que diz respeito ao conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas), enquanto os processos discursivos são diferenciados de acordo com processos ideológicos que os determinam. Assim, os processos discursivos, ao se desenvolverem sobre as bases destas leis, não são expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva, etc, que utilizaria 'acidentalmente' os sistemas lingüísticos[3].

A AD surge, então, como uma disciplina que propõe "problematizar" as maneiras de ler, considerando a opacidade como característica da linguagem. Ao mediar a relação com o texto, a AD possibilita que se enxergue formas de significação que dificilmente seriam vistas a "olho nu", ou seja, que seriam invisíveis sem os dispositivos teóricos de análise fornecidos por essa disciplina. Como mostra Maingueneau, de acordo com Pêcheux, a análise de discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação, dominando 'o' sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito. (...) O desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico estabilizado com pretensão universal[4].

Acrescente-se a essa reflexão a idéia segundo a qual a AD recusa a concepção que faria da discursividade um suporte de "doutrinas" ou mesmo de "visões de mundo". O discurso, bem menos do que um ponto de vista é uma organização de restrições que regulam uma atividade específica. A enunciação não é uma cena ilusória onde seriam ditos conteúdos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos que aí se reconhecem. À AD cabe não só justificar a produção de determinados enunciados em detrimento de outros, mas deve, igualmente, explicar como eles puderam mobilizar forças e investir em organizações sociais[5].

Assim, a AD fornece um instrumental teórico adequado para a realização de uma leitura crítica do jornalismo, ao considerar sua função social de comunicação e divulgação sem desconsiderar a consolidação da informação como produto de consumo inserido no sistema capitalista. Este instrumental permite observar como se dá a relação entre estes dois fatores (comunicação/divulgação e produto de consumo) e a maneira como os fatos são retratados (e, de certa forma, construídos) enquanto acontecimentos.

Da mesma maneira que se torna impossível aceitar uma concepção de transparência da linguagem (considerando-se que ela se encontra em - e é determinada por - um contexto institucional), cujo sentido se caracterizaria pela literalidade, também não há como acatar uma concepção de transparência do jornalismo que prega a existência da informação enquanto transcrição fiel da realidade. Ora, se a linguagem, que é componente essencial do jornalismo, não é transparente, só esse fato já seria suficiente para afirmar que o próprio jornalismo não é transparente. Some-se a isso, entre outros elementos, a própria carga avaliativa que o jornalista invariavelmente transfere para seus textos. É mais coerente, então, a concepção do jornalismo, assim como a linguagem, atravessado por elementos que possibilitam relações que não são visíveis apenas pelo caráter material manifestado por meio da língua. Conseqüentemente, só se pode falar de notícia/informação enquanto recortes da realidade.

Estas reflexões mostram a discordância em relação à concepção de objetividade jornalística - atribuída ao jornalista e, ao mesmo tempo, auto-propagada -, fundada na suposta imparcialidade dos profissionais da Comunicação, a qual permite uma leitura do jornalismo enquanto transparência da realidade. A linguagem está atravessada por outros aspectos além dos lingüísticos, o que impossibilita a aceitação de uma postura idealista de neutralidade ou isenção jornalística.

Trata-se de uma tentativa de olhar para o jornalismo, a partir de determinado arsenal teórico, enxergar relações essenciais para se compreender o funcionamento discursivo dos meios de comunicação de massa. Conforme alerta Corrêa, o jornalista, como todo comunicador, (...) deve estar atento ao risco de acreditar que o fato existe por si só e que se dá à descrição já pronto[6]. O diferencial que a pesquisa lingüística, mais precisamente fundada em pressupostos teóricos do domínio da Análise do Discurso, pode oferecer neste trabalho de observação e reflexão consiste em permitir - diferentemente do que ocorre com jornalistas despreocupados (seja por negligência, seja por desconhecimento) em admitir uma concepção de linguagem caracterizada pela atuação de fatores históricos e ideológicos na língua - que se compreenda que o jornalismo não retrata nem cria fatos, e sim constrói visões dos fatos, sendo estas propagadas como transcrição da realidade. Recorro mais uma vez a Corrêa para concordar com a afirmação de que o jornal [assim como os meios de comunicação em geral] é uma instituição formadora de opinião. Sabe-se, porém, que, como tal, seu propósito é legitimar uma opinião sobre os fatos, aquela que, na melhor das hipóteses, coincide com sua linha editorial - pois pode coincidir com interesses mais imediatos. Ora, se isso que se chama de opinião pública pode ser forjado por diversos veículos, é de se esperar que caiba a cada um deles construir os fatos de uma certa forma. Obviamente, o público (e o alcance) de cada um desses veículos é diferente e essa diferença se deve aos interesses que sustentam uns e outros. Podemos, pois, afirmar que o fato tal como o recebemos enquanto notícia é uma construção[7]; construção de "visões" e não dos fatos em si.

Esta preocupação se relaciona à crítica de Abramo, segundo a qual a investigação é algo que o jornalismo brasileiro em larga escala desconhece; se a notícia não vem de mão beijada, pré-articulada e filtrada pelo interesse de alguém ou de algum grupo não serão os jornalistas a levantá-la[8].

Dada a influência que Jornalismo atingiu nos acontecimentos da sociedade e os jogos de interesses por trás das grandes empresas de Comunicação, não há como negar a necessidade de investigação jornalística tanto no sentido de apuração dos fatos para produção de notícias quanto no sentido de pesquisa a respeito da organização dos fatos tal como é realizada pelos meios de comunicação. Investigar não significa alcançar a objetividade e a imparcialidade. Significa poder informar, produzir notícias, com maior conhecimento de causa.

O jornalista que não aceita a linguagem como transcrição literal do sentido e o texto jornalístico como transcrição fiel da realidade tem muito mais chances de se tornar um observador mais atento dos fatos e, conseqüentemente, mais cuidadoso tanto em relação aos dados que apura quanto em relação às notícias que produz (e também em relação às notícias que ouve ou lê). A meu ver, é este o perfil do profissional que, ao adotar uma postura "honesta" em relação à questão da linguagem (e à própria profissão), seria capaz de promover uma melhoria na qualidade da informação jornalística.

Graziela Zanin Kronka é jornalista, mestre em Lingüística e aluna do curso de especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da UNICAMP. E-mail: grazielak@yahoo.com

Notas

[1] A vertente francesa da análise do discurso tem origem na Lingüística e se preocupa com os discursos inseridos num quadro institucional. Dentre seus principais representantes, destaco Michel Pêcheux e Dominique Maingueneau. [voltar]
[2] Tradução brasileira da Editora da UNICAMP da obra Les verités de la Palice, publicada na França em 1975. [voltar]
[3] PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (tradução: Eni Pulcinelli Orlandi [et al.]), 3. ed., Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. (Título original: Les vérités de la Palice), p.91. [voltar]
[4] Pêcheux apud MAINGUENEAU, D. (1987) Novas tendências em análise do discurso. (tradução: Freda Indurski) Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1989. (Título original: Nouvelles Tendances en Analyse du Discours), p.11. [voltar]
[5] Idem, p.50. [voltar]
[6] CORRÊA, M. L. G. (1999) "O modelo jornalístico para o ensino: situacionalidade e instituição na produção da leitura". (mimeo), p.1. [voltar]
[7] Idem, p.2. [voltar]
[8] ABRAMO, C. W. (1991) "Império dos sentidos: critérios e resultados na Folha de S. Paulo." In: Novos estudos, CEBRAP, no 31, outubro/1991, pp 41-67, p.6. [voltar]

Atualizado em 10/08/2001

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