Quando
o pobre pai - que era rico e ficou pobre -
arrancou a rosa do jardim daquele misterioso palácio,
rosa vermelha encarnada para a filha mais nova e |
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[querida,
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a
gota de sangue que há em cada poema
tingiu-lhe a mão, os espinhos que espetavam a mão,
e a mão que agarrada aos espinhos
transformava aos poucos seu braço-membro em |
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[braço-rosa.
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| Nesse
instante, sem que soubesse de onde, nem como, |
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[nem
por quê,
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surgiu-lhe
no peito a dor habitual dos grandes abandonos:
tinha diante de si a rosa de sangue transtornada em fera,
e a fera em solidão.
Era uma fera terrível, lamentosa de queixumes quase |
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[humanos,
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que,
às vezes, numa voz de bicho,
outras, numa voz de homem,
prometia promessas de quem tem a propriedade de ser |
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[bicho-homem,
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| e
ameaçava castigos só imagináveis na imaginação
de |
|
[um
homem-bicho.
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| O
monstro-bicho, o bicho-homem, o homem-monstro e |
|
[o
monstro-fixo
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| trouxeram
para a fera a filha mais nova e querida que era |
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[Bela;
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| as
irmãs também bonitas, mas ciumentas e feias só
pelos |
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[ciúmes,
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| gostaram,
como muitas outras de outras histórias de |
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[irmãs
novas e velhas,
|
| que
a delicada menina preferida dos zelos e dos |
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[cuidados
de seu velho pai,
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| -
antigo mercador falido por ganância no antigo |
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[deserto
das sombras imperiais -,
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| gostaram,
pois, como dizia, que a doce, terna e meiga |
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[humanidade
da criança
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fosse
entregue à sanha e ao apetite - assim pensavam -
da fera bruta, da feroz brutalidade do ódio cego da |
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[estranha
criatura.
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| Contudo,
a menina que rapidamente na viagem se |
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[tornava
em moça,
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e
a moça que empurrava o corpo para ser mulher
logo aprenderam que a ferocidade do monstro e a |
|
[monstruosidade
da fera
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| eram
muito menos do que algo em si - uma essência ou |
|
[uma
substância -,
|
| e
muito mais o termo de uma relação, um ser não-ser, |
|
[uma
carência,
|
alguém
- se dizê-lo não for contraditório -
feito não da monstruosidade da fera que de fato mostra,
mas da triste humanidade ausente do homem que não |
|
[era.
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| A
menina-moça, à força de querer-lhe a natureza |
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[fazê-la
outra,
|
| primeiro
veio-lhe o reconhecimento, depois, a |
|
[compreensão
|
| de
que o destino a pusera não só no fluxo de sua |
|
[própria
vida,
|
| mas
na vida dos símbolos que sempre andam solidários |
|
[na
alheia solidão.
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|
No
dia em que sentiu vontade de voltar à sua velha casa,
deixou-lhe a fera consentida em dramas de grandes |
|
[perdas
e sofrimentos;
|
| as
irmãs invejosas também sofreram o desalento de
ver a |
|
[bela
irmã mais nova
|
| viva,
livre - assim pensavam, sem perceber-lhe a alma |
|
[cheia
de tormentos.
|
O
pai envelhecido mais que antes pediu-lhe que ficasse,
mas ela decidida ouviu ao longe a voz com que de |
|
[hábito
a fera a chama,
|
| a
chama que da vida, da triste vida ambígua, da fera |
|
[se
acabava.
|
|
| Abalada
em sustos, por muito pouco não ficou em casa, |
|
[cheia
de saudades da mãe,
|
que
não conhecera;
se ali ficasse aninhada nos segredos do pai e no ódio
das |
|
[outras
filhas,
|
suas
irmãs,
dizem que seu destino seria sempre ficar entre:
não ser menina, ser quase moça, não ser
mulher. |
|
| Porém,
decidida e corajosa, como dizia, e como de fato |
|
[era
feito seu caráter,
|
| espantou-se
do torpor e célere correu por serras, |
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[fantasias,
vales e desterros:
|
foi
sendo atriz da própria personagem,
fugiu do instante oco em que o acerto se confunde em |
|
[erros,
|
| fez-se
narrador de seu próprio texto. |
|
| Quando
chegou à terra em que seu pai quase sem querer |
|
[desatou-lhe
o nó da vida,
|
| ao
apanhar a rosa para dedicá-la à delicada filha
dona |
|
[de
seus zelos,
|
| viu,
num canto do jardim, junto aos roseirais, que a |
|
[fera,
exaurida em suspiros,
|
soluçava
fundo:
era uma figura imponente como um fero monte de |
|
[plagas
tormentosas,
|
| era
grotesco o choro deste homem-monstro sucumbindo |
|
[em
rosas.
|
Entre
a repulsa, a piedade, o horror, o amor e o medo,
beijou-lhe a fronte que desfalecia em suores frios,
o que foi bastante para o desencanto:
tinha diante de si um belo príncipe vulgar qualquer. |
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Assim,
acabou-se a história:
do intervalo de ser quase uma e não ser nunca outra,
a menina-moça, pela fera dúbia, pelo pai querido,
pela |
|
[mãe
ausente, pelas irmãs cruéis,
|
| transformou-se
em rosa, rosa de sangue, que se fez |
|
[mulher.
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