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Gênero e ciências no país: exceções à regra?

Maria Margaret Lopes

Em 2002, cerca de 34 mil mulheres receberam bolsas do CNPq, significando 49,6% em um universo de 68 mil pesquisadores em todo o país. Entre as jovens pesquisadoras, as mulheres são maioria, correspondendo a 54% do total das bolsas financiadas na modalidade de Iniciação Científica em 2002. Há pouco mais de uma década, a participação das mulheres no sistema de Ciência e Tecnologia no país, segundo diversos indicadores, oscilava consistentemente em torno de 30%. Confirmando e aprofundando aspectos dessa tendência, em uma análise geral da participação das mulheres doutoras nas atividades de pesquisa, os dados indicam, em proporções aproximadas, que entre aqueles que se titularam no país até 1965, para cada 6,3 homens, havia uma mulher titulada; de 1976 a 1980, para cada três homens, uma mulher se doutorava; de 1986 a 1990 a proporção era uma mulher para 1,8 homens e de 1996 a 2000 chega a quase uma para um.

Alertando para a complexidade das análises que tais indicadores merecem, Léa Velho chama a atenção para o quanto, desde os anos de 1980, os fundamentos da tradição mertoniana em sociologia da ciência, que embasam as teorias e estudos empíricos envolvendo indicadores científicos, têm sofrido inúmeras revisões no contexto das construções críticas dos estudos sociais das ciências. A questão se torna ainda mais complexa quando se busca incorporar perspectivas de gênero em análises desses indicadores, ou quando se ousa pensar em construir novos indicadores para elaborar políticas científicas que contemplem relações de gênero.

Sem dúvida, o CNPq inova ao apresentar e comentar sistematicamente a situação das mulheres no sistema de ciência e tecnologia no país e no mesmo site, de 11/07/2003, em que nos são apresentadas as primeiras estatísticas mencionadas, aparecem outros lugares comuns que interessam à reflexão. Ao lado dos indicadores, surgem as 'exceções à regra'. No artigo em que se resumem pequenos perfis - em uma homenagem justa - das dras. Mayana Zatz e Niède Guidon, nessa ordem, apresentados como trajetórias exemplares de mulheres com excelência em pesquisa, 'vencer barreiras' aparece como o desafio 'sempre' presente para as mulheres que buscam sucesso em suas carreiras científicas.

De fato, se não se tiver em conta a historicidade dos indicadores científicos e suas análises, e dos desafios colocados às mulheres que se aventuram no mundo das ciências, da tecnologia, da inovação continuaremos 'sempre', como exceções à regra, tentando 'vencer barreiras'. Entender a historicidade desses desafios tem sido uma das marcas dos estudos que venho desenvolvendo nessa área. Uma vasta pesquisa em andamento sobre aspectos da trajetória de Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976) no Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Instituto Manguinhos, na militância feminista, ao longo de algumas décadas, têm evidenciado o quanto feminismos, anfíbios, políticas se constituíram em dimensões inseparáveis e inevitáveis, quando se trata de engendrar as ciências.

Bertha Lutz era filha da enfermeira inglesa Amy Marie Gertrude Fowler e de Adolpho Lutz, conhecido microbiologista suíço radicado no Brasil. Sua atuação política - em prol da emancipação feminina, pela educação feminina, pelo voto feminino, por mudanças na legislação trabalhista - à frente da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, que dirigiu por mais de 50 anos, foi recuperada desde as origens das produções acadêmicas feministas de meados da década de 1970 e continua sendo retomada em diversas obras mais recentes. Um desses trabalhos pioneiros, o de Rachel Sohiet menciona sua atividade científica em uma nota de rodapé: "Bertha Lutz é consagrada cientista, com inúmeros trabalhos publicados no Brasil e no exterior sobre biologia e herpetologia. Sua última obra, intitulada 'Brazilian Species of Hyla', foi editada pela Universidade do Texas".

Bertha Lutz foi uma cientista de campo e laboratório, além de se especializar em organização de museus e se formar em Direito. Publicou mais de 30 artigos em periódicos nacionais e internacionais, em sua área específica de pesquisa sobre anfíbios anuros. Classificou diversas espécies, entre outras: Gastrotheca albolineata (Lutz & Lutz, 1939); Phyllomedusa distincta (Lutz, 1950); Scinax duartei (Lutz, 1951); Hyla nahdereri (Lutz & Bokermann, 1963); Hyla cipoensis (Lutz, 1968); Hyla goiana (Lutz, 1968). Scinax alter (Lutz, 1973). Realizou inúmeras excursões de campo para suas coletas, fez diversos estudos comparativos em coleções de museus europeus e norte-americanos. Como muitas mulheres de sua geração por todo o mundo, parece ter praticado com muito prazer a velha ciência normal de Kuhn.

Distanciando-me dos argumentos de caráter essencialista, da constante invisibilidade das mulheres nas ciências, das visões que afirmam que as mulheres 'sempre' estiveram ausentes das práticas científicas, para ressaltar as 'sempre' poucas exceções, tenho enfatizado nessa pesquisa que Bertha Lutz não padeceu de qualquer problema de invisibilidade na história política recente e tem sido mencionada em diferentes propostas de investigação. Mesmo em vida foi, e continua sendo, constantemente lembrada em homenagens feministas. Bertha Lutz foi uma "mulher de elite", defensora dos ideais das mulheres de elite de sua época, como muito bem a definiu o Ministro chileno, no Clube de Engenharia, na homenagem prestada a ela por ocasião de sua presidência na União Interamericana de Mulheres. Exerceu sua atividade profissional de forma indissociada, em meio a toda sua atuação política. Estabeleceu redes de sociabilidade e solidariedade em suas interações com setores que gozavam e disputavam prestígio e poder nas comunidades científicas e políticas, nacionais e internacionais da época.

Os jornais da época, ao tratarem sua atuação política em prol das causas femininas da profissionalização, do voto, da educação, da situação no casamento, mencionam sua condição de naturalista do Museu Nacional que, inclusive, lhe atribuía prestígio e reconhecimento social e emprestava um caráter de cientificidade a muitas de suas teses. Aliás, algumas vezes, sua condição de feminista, cientista e solteirona - perfil que caracterizou inúmeras mulheres de sua geração - era muito bem combinada em reportagens divertidas e profundamente marcadas por preconceitos de gênero.

O que tenho discutido é o papel que a própria historiografia feminista local jogou na construção da invisibilidade da carreira científica de Bertha Lutz, em sua contribuição para colocar em relevo sua atuação política e social nos movimentos de mulheres e feministas nacional e internacional do século XX, em um quadro, senão de negação, de ausência de qualquer valorização da História das Ciências como um todo no Brasil. Isto não significa qualquer demérito aos estudos pioneiros sobre Bertha Lutz, porque, evidentemente, esses também merecem ser contextualizados em seu específico momento histórico.

As teses de negação da existência de práticas científicas no Brasil, ou de sua parca expressão e relevância para as análises sócio-político-econômicas do país, permanecem influentes mesmo entre historiadores, feministas e estudiosos de gênero contemporâneos. Evidentemente não seriam esses historiadores que poderiam entender a indissociabilidade das diferentes práticas políticas, sociais e culturais de Bertha. Por outro lado, ainda são poucos os sociólogos, políticos e historiadores das ciências, mesmo os mais críticos, que admitem a possibilidade de engendrar suas análises.

No caso dessa ampla pesquisa em andamento, só ganha sentido recuperar trajetórias individuais, como as de Bertha Lutz, se situadas no contexto da geração das mulheres que estavam se profissionalizando em atividades científicas no início do século XX no Brasil e no exterior. Nessa perspectiva, estamos cientes do quanto escrever a história de grupos excluídos de tradições historiográficas pode levar à idealização desses sujeitos excluídos, passando a caracterizá-los como figuras de exceção, confirmadoras, portanto, de regras incontestáveis, como bem explicitaram Michèle Riot-Sarcey e Eleny Varikas. Nossa intenção aqui não é recuperar as mulheres que fizeram a trajetória das ciências no país, à moda das antigas histórias hagiográficas das ciências, das enumerações dos grandes vultos e realizações, completamente extemporâneas no que diz respeito às condições sociais e culturais vigentes, de quando essas pesquisadoras atuaram. Nas primeiras décadas do século XX, profissionais de áreas específicas de conhecimento, particularmente ciências naturais e biológicas, realizaram suas práticas científicas não necessariamente dissociadas de suas destacadas atuações políticas nos movimentos feministas e sufragistas. E nesse quadro, do qual temos poucos indicadores, além da documentação em grande parte inédita e da historiografia, Bertha Lutz não foi uma exceção.

Maria Margaret Lopes é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu - Unicamp e professora do Departamento de Geologia Aplicada à Educação do Instituto de Geociências, também da Unicamp.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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