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Um nova visão para a pós-graduação? O debate nos Estados Unidos e Europa

Léa Velho

Estamos vivendo um momento em que existe consenso sobre a importância do conhecimento para o crescimento econômico e desenvolvimento social, assim como sobre o fato de que tal conhecimento está, em grande parte, incorporado às pessoas. Nestas circunstâncias, formar pessoas capazes de absorver, gerar e utilizar conhecimento é uma questão central para todos os países. Parte desta questão é, obviamente, a formação de pesquisadores que, tradicionalmente, tem sido feita nos cursos de pós-graduação.

Nos Estados Unidos e em vários países da Europa existem sinais claros de que é chegado o momento para uma reflexão sobre que tipo de profissionais se espera formar na educação pós-graduada, com quais habilidades, para ocupar qual posição profissional, para desempenhar qual tipo de tarefas. Este processo tem provocado algumas mudanças no sistema de pós-graduação desses países. Mais significativo que essas mudanças, entretanto, são as iniciativas de criação de espaços de discussão dessas questões, implementadas com apoio do governo e envolvendo os mais variados atores sociais e não apenas a comunidade acadêmica. Tais mudanças e tais iniciativas, assim como os principais temas discutidos pelas últimas, são apresentados brevemente a seguir.

Desde o final do século XIX, o treinamento em pesquisa científica tem sido concebido como uma "linha de produção" unidirecional, coroada pelo grau de Doutor. Entretanto, já desde o final da década de 80, a procura pelo grau de Mestre em Ciências, concedido como etapa inicial, especializada, rumo ao doutorado e à carreira de pesquisador tem diminuído significativamente na maior parte das áreas do conhecimento. Dois fenômenos têm evitado que essa diminuição fosse ainda mais dramática. O primeiro diz respeito ao aumento da demanda deste título em algumas áreas específicas, tais como a Computação e as Engenharias. Os pesquisadores destas áreas, nos Estados Unidos e na Europa, desenvolvem suas atividades no setor privado, mas precisam ter alguma especialização e iniciação em pesquisa para aumentar sua chance de seleção pelo mercado. Para isso, o título de Mestre em Ciências é considerado suficiente. O segundo motivo que tem mantido a demanda pelo título de Mestre em Ciências é a sua preferência pelas mulheres. Devido à dificuldade, historicamente maior do que a de seus colegas homens, de obter financiamento para doutorado e aos conhecidos problemas para compatibilizar vida profissional com vida doméstica, as mulheres tendem a iniciar a carreira científica com o mestrado.

Com exceção dos casos mencionados, a tendência é claramente no sentido de uma nova concepção do Mestrado. Tal treinamento deixa de ser uma etapa ao doutorado para tornar-se fim legítimo em si mesmo, proporcionando treinamento científico formal adequado para uma variedade de carreiras importantes. Entre estes mestrados "terminais", o MBA é o exemplo mais evidente, mas existem vários outros programas inovadores, em ciências propriamente ditas, geralmente multidisciplinares, tais como os de bioinformática e química computacional (nos Estados Unidos vários desses Mestrados são financiados pela Fundação Sloan e pela Fundação Keck).

Talvez exatamente porque os programas de Mestrado tenham conseguido responder rapidamente aos sinais de necessidade de mudança enviados pelo mercado, a maioria das discussões e debates concentram-se no doutorado.

Em 1904 a Association of American Universities explicitou, pela primeira vez, a visão da comunidade acadêmica segundo a qual "o PhD é um grau a ser obtido, em uma disciplina específica, através da pesquisa original, realizada de forma intensiva". Esta ainda é a visão predominante e que foi seguida por todos os países, de tal modo que o título de PhD representa o "bilhete de entrada" para a carreira em pesquisa. E, para que qualquer pesquisador obtenha tal bilhete, é necessário cumprir uma série de requisitos, entre os quais se destaca a famosa tese.

Ainda que seja praticamente consensual que o treinamento para o doutorado de fato prepara pesquisadores qualificados, parcelas cada vez maiores de interessados, com destaque para os empregadores e os próprios doutorandos, argumentam que saber fazer pesquisa de qualidade não é suficiente. Por um lado, o grau de Doutor passou a ser exigido por vários institutos de ensino superior que não fazem pesquisa, mas apenas ensinam, assim como para posições que envolvem basicamente gestão da pesquisa e não execução direta. Portanto, habilidades para ensinar e para gerir necessitam ser consideradas como essenciais ao treinamento de doutorado. Além disso, lideranças nos negócios e na indústria têm explicitado descontentamento com as dificuldades de seus "empregados doutores" de trabalhar e pensar de maneira coletiva, e com o fato de que os interesses em pesquisa que tais empregados revelam estão distantes dos problemas do mundo real. Estudos recentes entre empresas na Europa revelam que são necessários de três a cinco anos para que o pesquisador saído do doutorado realmente se integre às atividades de pesquisa coletiva e multidisciplinar requeridas pelas empresas (ver documento).

Em vistas destas e outras observações, questiona-se a aparente disparidade entre o treinamento e requisitos exigidos de um estudante de doutorado com ênfase na pesquisa disciplinar, individual e profunda (vulgarmente referida como "saber muito sobre quase nada") e as atividades do mundo real que tal estudante, com grande chance, vai desempenhar quando obtiver o título.

Por outro lado, despertou-se de repente para o fato de que uma proporção considerável de estudantes de doutorado nunca obtêm o título, isto é, finalizam créditos em disciplinas, são aprovados em exames de qualificação, mas não terminam a tese. Ainda que não se disponham de dados confiáveis sobre o contingente de tais estudantes ABDs (All But Dissertation - tudo menos a tese), estima-se que eles representam cerca de 50% dos matriculados no doutorado nos EUA, proporção que tende a ser ainda maior entre as mulheres. Estudos específicos realizados em alguns países europeus revelam situações ainda mais dramáticas: por exemplo, nas ciências sociais na Suécia, entre 1969 e 1996, apenas 1 em cada 5 estudantes de doutorado terminou a tese. No decorrer dos estudos que procuraram entender porque isso acontecia ficou claro que para um número enorme de estudantes a experiência do doutorado era desagradável, e até mesmo intolerável, o que levava muitos à desistência. Quando solicitados a explicitar sobre o que os desagradava, os estudantes foram muito além do motivo convencional "dificuldades financeiras", e indicaram a falta de orientação adequada, o sentimento de isolamento generalizado, a falta de informação sobre que tipos de carreira e emprego eles poderiam ter depois de titulados e a ausência de discussões sobre o significado da sua pesquisa para a solução de um problema maior (contextualização social do problema de pesquisa). O mais revelador, entretanto, foi que vários estudantes abandonaram o doutorado porque ficaram alarmados com a baixa qualidade das condições de trabalho dos professores universitários. Depois de alguns anos observando os professores dos seus programas, muitos estudantes passaram a reinterpretar a tão falada "liberdade acadêmica" como "liberdade para trabalhar o tempo todo" e chegaram à conclusão de que não queriam este tipo de vida. Enfim, a alta taxa de evasão do doutorado tem sido associada a uma desilusão com a carreira em pesquisa, e a uma tomada de consciência, durante o curso, de que a ênfase em pesquisa não atende às necessidades de treinamento que se foram buscar.

Com base no exposto, estudos têm sido realizados, estatísticas as mais variadas têm sido produzidas no intuito de informar uma discussão que tem reunido os mais variados segmentos sociais (empregadores, governos, fundações, pesquisadores, estudantes, organizações não governamentais, etc) para que, conjuntamente, se defina uma nova visão para o treinamento de pós-graduação e, particularmente, para o doutorado. (ver www.esf.org para a Europa e www.grad.washington.edu/envision para os Estados Unidos).

Apesar das constatações dos problemas mencionados existe um enorme temor por parte da comunidade acadêmica em modificar as bases de funcionamento da educação pós-graduada. A razão é simplesmente que os estudantes de doutorado (juntamente com os pós-doc) realizam a maior parte da pesquisa universitária. Assim, qualquer modificação dramática na concepção do trabalho de doutorado pode ter enormes consequências para a capacidade de pesquisa das universidades. Mesmo à luz de tais temores, os Estados Unidos e a Europa estão ativamente buscando respostas para as seguintes questões:

1. Qual a expectativa do governo, dos programas, dos estudantes e dos demais setores da sociedade - particularmente o setor produtivo - com relação à educação pós-graduada?
2. Como cada uma destas expectativas deve pesar na composição do sistema final a ser adotado?
3. Que tipo de treinamento oferecido pelo sistema atende a essas expectativas? Como implementá-lo?
4. É possível e desejável, caso as expectativas dos diferentes setores sejam diferentes, oferecer uma educação pós-graduada diversificada em termos de objetivo, requisitos, exigências, e "produto final", todos com qualidade?

É o momento para que nós no Brasil nos juntemos àqueles que buscam respostas a tais perguntas e a outras tantas mais que nos são particulares (a mais evidente sendo: por que a iniciativa privada não contrata nossos Mestres e Doutores?). Parece não haver dúvidas de que uma diversidade de trajetórias de carreiras deverá destacar o trabalho em pesquisa no futuro. Iluminar as características desejáveis desta força de trabalho, através da produção de informações, bases de dados, novos indicadores, análise inteligente e um debate intenso com as partes interessadas poderá ter um papel importante nas escolhas políticas.

Léa Velho é professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica, UNICAMP e pesquisadora do Instituto para Novas Tecnologias, Universidade das Nações Unidas.

 
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Atualizado em 10/02/2003
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