Reportagens






 

Universidade na encruzilhada

Lauro Morhy

Desde meados do século XX, o mundo questiona e discute a universidade como, talvez, nunca o tenha feito antes. São vários os aspectos questionados e discutidos. Mas, nos últimos anos, certos enfoques se tornaram cada vez mais severos, chegando-se mesmo a questionar até a própria pertinência das universidades no mundo atual.

Os questionamentos ganham ainda mais força quando se fala em custos e gastos públicos, já que as finanças públicas se tornaram cada vez mais limitadas, complexas e problemáticas. Mas, afinal, geralmente aplicar dinheiro em educação ainda desperta mais sentimento de gasto do que de investimento. E, se há dúvidas quanto aos resultados, as coisas ficam ainda mais difíceis. O quadro não é muito diferente quanto às instituições privadas e seus usuários e mantenedores.

Examinando, porém, os registros históricos, podemos constatar que sempre foi assim: as sociedades sempre estiveram conflitando com as universidades, e estas sempre estiveram se autocriticando e buscando reformar-se. "No que diz respeito à sua reputação pública, elas têm sido, quase permanentemente, instituições insatisfatórias", lembra Minogue (5), apesar de serem sempre reconhecidas como importantes e necessárias. Para muitos, elas trazem consigo o mistério da sabedoria, o romance do segredo e a aventura do desconhecido nos caminhos do futuro. "Relativamente discretas na Idade Média, as críticas dirigidas contra a universidade multiplicaram-se durante o Renascimento. Dos humanistas aos filósofos, a universidade era constantemente questionada", registram Charle e Verger (1).

Ao longo dos séculos, a universidade passou por inúmeras reformas: procurava-se torná-la "mais eficiente" ou "mais útil". Na prática, o que se quis foi assegurar o controle do Estado, em detrimento da autonomia - considerada vulnerável aos corporativismos e aos controles religiosos e partidários. Nas mudanças a busca do conhecimento "como fim em si" foi sendo preterida em favor da busca de uma "sabedoria também utilitária". Em vez do foco apenas no estudante como indivíduo, passou-se a considerar mais a sociedade como um todo, ou os "interesses sociais maiores". Ademais, o conhecimento cresceu tanto que extinguiu para sempre o sábio generalista ou enciclopédico. A erudição assume hoje novas características.

A dinâmica dos acontecimentos foi tal que, a rigor, as reformas das universidades nunca foram capazes de atender às exigências dos momentos históricos em que aconteceram. Em meados do século XIX, por exemplo, quando Newman propôs o seu modelo de universidade, a revolução democrática, a industrial e a científica já estavam acontecendo no mundo ocidental. Como disse Clark (2), "a ciência estava começando a tomar o lugar da filosofia moral e, a pesquisa, o lugar do ensino". Mais tarde, quando Flexner escrevia sobre a Universidade Moderna, essa já estava deixando de existir.
A verdade é que a universidade sonhada nunca de fato aconteceu, até porque é quase uma idealidade, uma utopia pura, inatingível - mas sempre desejada. Talvez esteja aí a sua força, a sua resistência milenar. As que mais avançaram ou se destacaram apenas chegaram às fronteiras mais próximas dos sonhos. Sonhos que mudam com o tempo, com a dinâmica evolutiva da humanidade. Os novos paradigmas - que as universidades tanto ajudaram a construir - determinaram profundas transformações no mundo em todos os tempos. Mudanças essas que muito as afetaram, imprimindo-lhes também peculiaridades nacionais e regionais. Em nosso País, como na América Latina, vemo-las hoje incluídas nos chamados "sistemas de educação superior" (3, 6 ), versão moderna dos "sistemas de ensino superior", longe do sonho inicial, mas talvez mais próximas dos mortais comuns, com todas as suas qualidades, pecados e imperfeições.

O ensino superior - com as características que passou a apresentar a partir do século XVIII - atingiu em cheio os sistemas universitários tradicionais. A crescente demanda por vagas nos cursos universitários praticamente afogou as universidades e os valores a elas ligados. Estatísticas recentes mostraram fantástica aceleração na expansão de matrículas no ensino de graduação no Brasil, chegando-se a 2.694.245 alunos no ano 2000. Em 1968, apenas 278.295 estudantes estavam matriculados (4).

Contradições entre o mundo universitário tradicional e as aspirações dos estudantes e seus familiares, quanto a possibilidades finais de inserção profissional no mundo real - além de outros motivos sociais estratégicos - foram exigindo transformações irreversíveis das universidades, descaracterizando-as e impedindo que universidades novas alcançassem as características institucionais necessárias ao status reconhecido de universidade. Além disso, à medida que os avanços científicos e tecnológicos foram chegando mais e mais aos níveis da competição econômica, transformando-se em objetivos centrais das nações, os seus centros geradores - muitos dos quais baseados nas universidades - foram sendo cobiçados, descentralizados, diversificados e autonomizados. Perdendo - ou não mais concentrando - as correntes intelectuais geradoras de novos conhecimentos e realmente inovadoras, as universidades mais autênticas vão se enfraquecendo, tornando-se meras componentes do "sistema de educação superior". Um sistema já a caminho da Educação a Distância, para que os grandes contingentes de jovens possam ser atendidos. É a encruzilhada. Talvez de um caminho inevitável e sem volta. É preciso assumir que a universidade tradicional já não é mais possível. Estamos a caminho de uma nova aventura que não parece desprezível. Está nascendo uma nova universidade. Talvez seja preciso uma nova "Alma Mater". Ou mais de uma.

Lauro Morhy é Doutor em Biologia Molecular e Reitor da Universidade de Brasília.


Referências Bibliográficas

(1) CHARLE, C.; VERGER, J. História das universidades. Trad. francês de Élcio Fernandes. São Paulo (Brasil): Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

(2) CLARK, K. Os Usos da universidade. Trad. inglês de Débora C. D.Soares. Fortaleza (Brasil): Educação/UFC, 1982.

(3) KENT, R (Compillador). Los temas críticos de la educación superior em América Latina em los años noventa - estudios comparativos. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.

(4) MORHY, L. A Universidade Brasileira (p. 499-511). In MORHY, L. (Org.). Brasil em questão. Brasília (Brasil): EDU, 2002. 511 p.

(5) MINOGUE, K. O Conceito de universidade. Trad. inglês de Jorge Eira Garcia Vieira. Brasília (Brasil): EDU, 1981.

(6) SILVA JR.; SGUISSARDI, V. Novas faces da educação superior no Brasil - Reforma do Estado e Mudança na Produção. São Paulo (Brasil): Cortez, 2001.

 
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Atualizado em 10/02/2003
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