Escutar as ruas é desafio das clínicas públicas de psicanálise

Por Raquel Torres e Mateus Bravin Lopes [imagem: coletivo Estação Psicanálise]

Sábado, 10 horas da manhã. No ponto, pessoas fazem fila para entrar no ônibus. Dois idosos passam sorrindo de mãos dadas. Do outro lado, um senhor dorme encolhido encostado na porta de um prédio. Do mercado, um casal sai com flores nas mãos falando em coreano. Sinal fechado. No prédio em frente, uma moça aflita sobe escadas correndo. Muros grafitados, buzinas e vozes se misturam. Em meio a essa cena urbana, pessoas aguardam sua vez de receberem escuta e acolhimento, durante sessões de terapia gratuitas, realizadas por profissionais voluntários.

Imagem: coletivo Clínica Aberta

Essa é a proposta de grupos como a Clínica Aberta, em São Paulo, a Estação Psicanálise, em Campinas, a Psicanálise na Praça, em Porto Alegre, e a Psicanálise na Rua, em Brasília – que vislumbram uma outra forma de atendimento clínico psicanalítico, gratuito, e em espaços públicos. Embora cada projeto tenha sua dinâmica, base teórica e especificidades, todos são norteados por princípios democráticos e coletivos de atendimento.

Se até então a psicanálise foi feita predominantemente em bairros privilegiados, em que as sessões têm um alto custo, iniciativas como essas possibilitam um furo na lógica de mercado.  “A Clínica Aberta é um projeto político radical, em que há um escape desse contrato mercantil do destino individual”, explica o psicanalista Tales Ab’Saber, professor de filosofia da Unifesp, supervisor integrante da Clínica Aberta, localizada na Casa do Povo, Bom Retiro, São Paulo, onde os atendimentos são realizados aos sábados.

O Brasil é um país carente de cuidados de saúde, inclusive daqueles relacionados à saúde mental. No ranking internacional, é o país com o maior número de pessoas com transtorno de ansiedade, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) – são 18,6 milhões de brasileiros.

Como parte da busca por alternativas ou soluções para ampliar o acesso ao atendimento à população, houve outras iniciativas ao longo da história, como é o caso da Clínica Social de Psicanálise, no Rio de Janeiro, criada em 1973, por Anna Katrin Kemper e Hélio Pellegrino, em que as sessões tinham um custo muito menor do que a média. Com relação às iniciativas estatais, há o SUS, criado em 1988, um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, cujo objetivo é universalizar o acesso à saúde. Na área de saúde mental, a rede do SUS é sustentada pelos NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), CERSAMs (Centros de Referência em Saúde Mental) e CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).

Na Clínica Aberta, projeto precursor desses coletivos, sujeito e a cidade ficam conectados. Analista e analisando ficam sentados com vista para uma grande janela de vidro através da qual se pode ver a rua o tempo todo, enquanto pessoas circulam ao lado do espaço onde ocorre a análise. “A ideia é justamente que o indivíduo não se veja apartado, mas tal qual é, como parte da dinâmica, e junto da cidade”, afirma Ab’Saber. Embora o setting seja diferente dos modelos tradicionais, o método se dá também a partir da associação livre – como na clínica tradicional. “Muitas vezes acontece de o paciente olhar para fora e ver algo na rua que mobiliza algo importante, que emerge na análise”, pontua o psicanalista.

Imagem: coletivo Clínica Aberta

A proposta e a forma de viabilizar a Clínica foram gestadas por um longo tempo, e vêm responder, de acordo com Ab’Saber, a algumas angústias de parte dos próprios psicanalistas, os quais buscavam práticas engajadas socialmente. Para ser sustentável, ela acontece a partir de outro dispositivo, em que cada um é atendido não por um analista, mas pelo grupo, por meio de rodízio de psicanalistas. “Alguns analisandos têm a impressão de que, em função do rodízio, há até menos repetição na narrativa que é contada em análise, o que é muito interessante”, observa Ab’Saber.

Os atendimentos possibilitados pelo trabalho coletivo têm critérios para calcular tempo e valor (tanto monetários, quanto éticos) diferentes. Em um sábado, supondo três psicanalistas presentes, em sessões de uma hora, das 11h às 15h, por final de semana, são totalizadas 12 horas de atendimento. Como afirma Ab’Saber, “da forma que vivemos, tudo tem um preço; inevitavelmente, os psicanalistas, como prestadores de serviço, oferecem um preço pelo serviço. Mas a psicanálise tem um potencial de ser praticada de outros modos, além do que já é tradicional. O cálculo que fazemos do total de atendimentos leva em conta valores não mercantis”.

Como em toda a história da psicanálise, teorias, conceitos e práticas estão sempre em debate, revisão e reinvenção. O trabalho prático da Clínica Aberta é aliado ao trabalho de reunião e supervisão dos analistas, em que os casos são elaborados em grupo, e, como fruto do investimento coletivo, são pensadas as bases teóricas em que este dispositivo e esta prática se sustentam. “A nossa prática traz o mesmo conceito de clínica freudiana. Com um ou vários analistas, o inconsciente continua trabalhando. Trabalhamos não individualmente, mas somos máquinas coletivas de pensamento e produção de subjetividade e vida com mais potência”, afirma Ab’Saber.

No interior
A cerca de 100 km da capital, em Campinas, um prédio datado de 1872 abriga a antiga estação ferroviária central da cidade, a Estação Cultura. É lá que o grupo de psicanalistas – Estação Psicanálise – oferece escuta nas manhãs de sábado a todos aqueles que desejam passar pela experiência analítica.

O coletivo foi criado no ano passado por psicanalistas do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, e da Tykhe Associação de Psicanálise. “A ideia de criar o grupo surgiu a partir da percepção de que, cada vez menos, ocupamos o território da nossa cidade. A polaridade política das eleições de 2018, entre outras realidades da atualidade neoliberal que vivemos, fazem com que nos fechemos entre muros, reais e subjetivos”, conta a psicanalista e integrante do coletivo, Ana Claudia Fattori.

A atuação em espaços públicos é um caminho para levar a psicanálise a outros lugares e extrapolar “muros”, quaisquer que sejam eles. As experiências do coletivo trazem novos aprendizados e novas questões à teoria psicanalítica, constituindo uma dinâmica (um sistema) que se retroalimenta. Assim, entre os ganhos de olhar, enxergar e escutar as ruas, está a transformação não só de quem é atendido, mas também do próprio psicanalista. “O psicanalista pode adquirir a percepção da sua participação como habitante dessa rede social que é a cidade. Com isso, surge a necessidade de ressignificar a prática clínica, levando em conta as particularidades da época em que vivemos. Ou seja, se a prática estiver alinhada às transformações vigentes, a teoria irá acompanhá-la”, acredita Ana Claudia.

Como a necessidade de estudos é contínua, atualmente o grupo tem se concentrado nos estudos de temas ligados à educação popular. O coletivo também planeja promover um evento em junho, o “Encontro dos Coletivos de Psicanálise”, a fim de trocar os efeitos das experiências de cada grupo com relação às dimensões teórica e prática.

Exemplos ampliados
Além da Clínica Aberta em São Paulo também foram criados outros coletivos, como o Psicanálise na Praça Roosevelt, presente em uma região icônica da metrópole. Os profissionais atendem a céu aberto, sentados em cadeiras de praia, revezando-se em plantões aos sábados. O grupo atua desde junho de 2017, e em 2018, serviu de inspiração para a psicanalista Fernanda Vial, que decidiu partir para a ação e criar um grupo, o Psicanálise na Praça, buscando o fortalecimento dos direitos humanos.

Fernanda participou de atendimentos no coletivo da Roosevelt. Ao voltar para sua cidade, Porto Alegre, reuniu colegas psicanalistas e, em um mês, passaram a atuar na Praça da Alfândega, próxima ao Museu de Arte de RS e à Esquina Democrática, espaço onde acontecem protestos e a Feira do Livro.

O Psicanálise na Praça realiza uma média de 14 atendimentos aos sábados, e alguns pacientes fazem o acompanhamento continuamente desde o início do projeto. Segundo Fernanda, além das consultas, o grupo articula saraus em parceria com outros coletivos, que convidam os cidadãos a ocupar o espaço com arte, psicanálise e cultura.

A mobilização de profissionais em prol da ação em espaços públicos é vista em outros cantos do país. Em Brasília, o coletivo Psicanálise na Rua é composto por psicólogos e psicanalistas em formação e atua desde março de 2018.

Além das consultas que acontecem na praça Zumbi dos Palmares, às sextas, e na rodoviária do Plano Piloto, aos sábados, realizam reuniões de cogestão e grupos de estudos que permitem a aproximação de pessoas interessadas. “Compreendemos a atualidade como um momento de desmonte de direitos e de retrocesso civilizatório. Acreditamos que nossa prática é intervenção pública e estética na cidade”, afirma Thessa Guimarães, expondo a visão do grupo.

Todas essas iniciativas compartilham do desejo de pensar o cuidado psíquico de maneira ampliada, habitando o espaço público. Num gesto de acolhimento, a psicanálise oferece escuta às ruas, e as ruas devolvem novas indagações, possibilitando a contínua transformação das pessoas, da teoria e da prática.

 

Raquel Torres é formada em comunicação (USP), mestranda em divulgação científica e cultural e aluna do curso de especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.  

Mateus Bravin Lopes é formado em audiovisual e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.