Pandemia confinou a arte às telas de celulares e computadores

Shows e espetáculos exibidos pelas redes sociais, visitas virtuais a museus, exibições digitais. Em tempos de pandemia, a arte precisou encontrar novos caminhos para atingir seu público. O coronavírus colocou um terço da população mundial em quarentena e, com isso, boa parte da produção cultural ficou confinada às telas dos computadores, celulares, tablets e TVs.

Por Chris Bueno

Em um cenário em que as pessoas se viram limitadas aos seus próprios lares, a arte se tornou ainda mais necessária. “A arte já possuía um papel essencial em nossa vida. E durante a pandemia, isso ficou mais explícito: nunca antes as pessoas perceberam o quão importante é assistir uma peça de teatro, contemplar uma obra de arte, ouvir uma música. Isso se faz necessário, é como um sopro de vida”, explica Anamaria Fernandes Viana, professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Com isso, o consumo de arte e entretenimento vem crescendo exponencialmente. A demanda por filmes por meio de serviços de streaming vem assistindo a um verdadeiro boom: a Global Video Service Competitor Review de 2020 apontou que no final no terceiro trimestre, o total de assinantes globais entre os 21 principais serviços de streaming atingiu 769,8 milhões – um aumento global de 217,6 milhões de assinaturas. Entre os fatores que contribuíram para esse aumento estão a quarentena imposta pela pandemia e o lançamento de novos serviços de streaming.  A procura por livros (digitais ou impressos) também aumentou em muitos países: no Reino Unido, mais de 200 milhões de livros impressos foram vendidos no ano passado, um aumento de cerca de 5,2% comparado a 2019 de acordo com o monitor oficial de vendas de livros Nielsen BookScan. Estados Unidos, Canadá e Austrália relatam aumento semelhante pela procura tanto de livros impressos como de digitais.

Mas um dos maiores fenômenos desse período foram as lives. De acordo com o Instagram, as transmissões ao vivo apenas nessa mídia social aumentaram cerca de 70%. E a audiência também, com crescimento de 50% somente aqui no Brasil. Artistas de diferentes gerações e estilos vêm utilizando esse recurso, por meio de diferentes mídias sociais, para atingir seu público: de Chitãozinho e Chororó à Chris Martin (vocalista da banda britânica de rock alternativo, Coldplay), passando por John Legend, Miley Cyrus e Gilberto Gil. E o público que assiste a essas apresentações é surpreendente. O festival online One world: together at home (“Um mundo: juntos em casa”), que reuniu dezenas de artistas como Lady Gaga, Elton John, Eddie Vedder e Paul McCartney, atingiu 21 milhões de espectadores.

Reinventando

Na tentativa de evitar que a pandemia se agravasse ainda mais, governos e agências de saúde vetaram a aglomeração de pessoas e recomendaram o distanciamento social. E a arte sofreu forte impacto. Shows cancelados, apresentações de dança e teatro e mostras foram adiadas e todo o setor vive uma incerteza prolongada. De acordo com a Unesco e o Conselho de Museus (Icom), quase 90% das instituições museológicas fecharam suas portas. “A arte sofre com toda a força os efeitos de uma crise global de saúde, econômica e social”, alertou Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, por ocasião do dia mundial da arte, comemorado em 15 de abril de 2020.

Com o objetivo de afirmar a resiliência da arte durante esse período e de se preparar para o futuro, a Unesco lançou o movimento ResiliArt (“Arte resiliente”), que consiste, entre outras coisas, em uma série de debates virtuais globais com artistas renomados para atrair o apoio ao mundo cultural e artístico durante a crise. “Precisamos entender como arte, cultura e conhecimento podem se relacionar nesse momento e gerar algum tipo de resultado”, aponta Martin Grossman, professor do Departamento de Informação e Cultura da Escola de Comunicações e Artes da USP. “Ainda, é importante ressaltar que essa é uma crise singular porque é planetária: ela sobrepõe e transcende a globalização e a mundialização da arte internacional. Então temos que pensar também de forma planetária: precisamos ver o conhecimento, a cultura e a arte como algo mais ‘orgânico’, mais integral, e que traga resultados mundiais, que beneficie a todos de forma mais ampla e não apenas alguns grupos”.

Nesse sentido, alguns artistas já sinalizam com produções ou reflexões que ultrapassam o isolamento e a crise da pandemia. Muitos têm aproveitado esse momento para criar obras memoráveis ou iniciativas para se reinventar. Essa movimentação mostra um sentido de oportunidade, uma brecha que converge as energias em direção à mudança.

Uma das iniciativas mais icônicas é a de três publicitários de Barcelona, que criaram um museu de arte virtual batizado de The Covid art museum (“O museu de arte Covid”), na verdade um perfil no Instagram com trabalhos de artistas de todo o mundo. Temas como isolamento, papel higiênico, máscaras, medo e o próprio vírus são frequentes nas peças – que podem ser ilustrações, fotografias, animações, vídeos ou pinturas. O museu online recebe diariamente cerca de cinquenta propostas de todo o mundo e já tem 166 mil seguidores.

Mas ao redor do mundo outras iniciativas vêm surgindo. Na Itália, concertos improvisados, realizados nas varandas de apartamentos, tornaram-se uma das características da vida em quarentena. Na Holanda, os músicos da Orquestra Filarmônica de Roterdã usaram a tecnologia para gravar uma versão virtual de Ode to joy de Beethoven em suas casas. No Brasil, o projeto “Teatro já” está apresentando espetáculos online a preços populares. Além disso, vários museus como MoMA e o Whitney, nos Estados Unidos e o Tate Britain, na Inglaterra, oferecem visitas virtuais em 360 graus. “Todos esses novos encontros permitem um momento de troca. Mas isso não substitui o contato. Nada substitui”, diz Viana. “Esses novos modos de fazer criam novas estéticas, mas nunca vão substituir essa relação que criamos com o público”.

Novas relações

A arte vive e sobrevive do encontro, que em muitos casos depende da relação direta com o público. Em um mundo que se tornou cada vez mais dependente das telas (de celulares, tablets e computadores), a relação com a arte foi alterada. O espaço se tornou virtual e, ao mesmo tempo, ilimitado. O tempo também não é o mesmo: apenar do boom das lives, não existe mais a necessidade do imediato – mesmo as transmissões ao vivo ficam gravadas para serem assistidas em outro momento. “A maneira como usamos a tecnologia não mudou, no sentido que ainda usamos a mesma interface. Ou seja, ainda estamos presos aos paradigmas anteriores, não demos o ‘salto’. Mas talvez nesse novo cenário nós consigamos desenvolver novos modos de relação com a tecnologia. Nós temos outras dimensões a serem exploradas agora: novas intervenções, novas interações e consequentemente, teremos novas percepções. Talvez seja o momento certo para pensarmos nisso: estamos confinados em casa, em um ‘casulo’ e talvez possamos produzir uma nova visão das coisas”, aponta Grossman.

Do mesmo modo, o contato também mudou. A interface não é mais “face a face”. A presença do outro não é mais necessária fisicamente. No entanto, ela faz falta. E essa lacuna é sentida na arte – e se tornou ainda mais explícita em tempos de pandemia. “Por mais que uma live seja uma troca, acredito que sempre ficamos com um gosto de frustração por não podermos abraçar uma pessoa depois de um espetáculo”, diz Viana. “A tela cansa, enquanto o contato humano revigora. É um equilíbrio de troca muito forte. E a arte está nesse lugar muito potente de troca, compartilhamento, doação, questionamento, de trazer à tona coisas que estão latentes dentro de nós, que muitas vezes não nos damos conta e que nos fazem pensar, acreditar e sonhar”.

Numa realidade que remete a contos de literatura de ficção distópica, não é possível deixar de questionar como será o cenário em um mundo pós-pandemia. Sairemos de toda essa experiência mais distanciados e mais dependentes da tela – inclusive na arte? Viana acredita que não. “É um mundo totalmente diferente. Acredito que tudo é aprendizado: aprendemos novos modos e vamos acrescentar isso à nossa experiência. Porém uma coisa nunca vai substituir a outra. Não é o mesmo lugar, não é a mesma relação”.

Chris Bueno é jornalista e mestre em divulgação científica e cultural, com especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp e em escrita de artigos científicos pelas universidades de Stanford e de Chicago. Há mais de 20 anos na área jornalística, já atuou em diversos veículos nacionais e internacionais.