Escolha de alimentação é direito negado à população em situação de rua

Por Larah Camargo

Assegurar o acesso à comida é fundamental no combate à fome, mas não garante a segurança alimentar e nutricional de uma população. Comer vai além de uma necessidade fisiológica ou de um instinto de sobrevivência – envolve uma dimensão afetiva, cultural e social que é contemplada no Direito Humano à Alimentação Adequada, garantido no Brasil pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.

Prefeito de São Paulo em 2017, João Dória anunciou um programa de distribuição de um alimento em pó chamado de “farinata”, um granulado composto por ingredientes excedentes que estavam perto do prazo de validade. A iniciativa foi alvo de muitas críticas e foi suspensa. Na ocasião, Dória chegou a afirmar que “pobre não tem hábito alimentar, pobre tem fome”.

Na contramão do que foi dito pelo ex-prefeito, Fernanda Sabatini, integrante do Grupo de Pesquisa em Alimentação e Cultura da USP e doutoranda em Saúde Pública, entende que estratégias como a farinata fazem parte de um projeto higienista que desumaniza pessoas em extrema pobreza e deslegitima suas subjetividades. É uma perspectiva de gestão da fome que reduz a comida somente a nutrientes, desconsiderando os aspectos culturais e sensoriais.

A “farinata” era um granulado feito à base de alimentos perto da data de validade e foi anunciada como uma medida para erradicar a fome em São Paulo (Foto: Rosanna Perrotti/Divulgação)

Robson Mendonça, fundador e coordenador do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo (MEPSR-SP), relata a constância do medo da falta de alimento dessa população extremamente vulnerável. O ato de comer acaba sendo reduzido a não passar fome e suas preferências e hábitos alimentares não costumam ser levados em consideração. São pessoas cuja autonomia é restringida para decidir qual alimento vão consumir, quando e em que condições.

Pensando em como o prazer em se alimentar é negligenciado para determinados grupos sociais, Fernanda Sabatini iniciou sua pesquisa de doutorado com mulheres em situação de rua na Sé, no centro de São Paulo. De 2018 a 2022, ouviu relatos e se deparou com diversas estratégias utilizadas como forma de resgatar a relação afetiva com a alimentação. Algumas usavam pimenta, temperos prontos e até cebola crua picada nas marmitas que recebiam para ressaltar o sabor da comida e deixá-la ao seu gosto, na medida do que lhes era possível.

Muitas mulheres relataram saudades de poder cozinhar a própria comida e de ter acesso a algo que escolheram comer. Desejavam determinados alimentos e temperos, ligados a memórias afetivas.

Uma outra forma de acessar as comidas desejadas era através do mangueio (termo usado para pedir doações). Com dinheiro, era mais viável comprar um alimento de acordo com suas preferências e desejos individuais. Para Fernanda, essas estratégias revelam uma demanda da população em situação de rua que vai além do acesso à comida: o acesso digno à alimentação, que considere também a autonomia e desejos.

 O direito à escolha

Para se alimentar, a população em situação de rua costuma recorrer aos equipamentos públicos (como restaurantes populares e casas de acolhida que servem refeições) e a doações de marmitas e alimentos, em sua maioria vindas de iniciativas filantrópicas e grupos religiosos. Essas doações, no entanto, nem sempre atendem às necessidades alimentares dessas pessoas.

Fernanda relata, por exemplo, que algumas mulheres não aceitavam alimentos servidos em caixas de leite – reivindicando a dignidade na alimentação. Thiago Lima, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), conta que algumas pessoas em situação de rua não comem marmitas que vêm misturadas, por não saberem o que vão ingerir.

Thiago destaca ainda a importância de pensar em alimentos para pessoas com dificuldade de mastigação em virtude de problemas de saúde bucal, recorrentes na população em situação de rua. É preciso levar em consideração também restrições alimentares associadas a doenças como alergias, hipertensão, diabetes e colesterol alto. Sobre isso, Fernanda Sabatini comenta: “Muitas vezes elas estão à mercê de doações que fogem do mínimo esperado de uma alimentação saudável em termos de composição nutricional. A salsicha, por exemplo, é um alimento muito comum em doações. A negação da doação é também uma estratégia política de dizer: essa marmita eu não como porque tem um ingrediente que eu não gosto, porque não faz bem para minha saúde ou porque ela está sendo apresentada a mim em um recipiente que eu não gosto”.

Combate à fome

Quando não se tem acesso à moradia, a autonomia da alimentação é prejudicada pela impossibilidade de cozinhar e armazenar alimentos.

Os principais movimentos da população em situação de rua têm como reivindicação central o direito à moradia, justamente porque entendem sua importância na garantia de outros direitos primordiais – incluindo a alimentação. “A política pública começa pela moradia. Com ela a pessoa tem acesso à saúde, água, higiene, privacidade e tem como comprovar residência para buscar emprego”, afirma Robson Mendonça.

Fernanda Sabatini também considera que esse é um dos primeiros passos para pensar a segurança alimentar e nutricional dessa população. “Não basta ter um equipamento público que ofereça alimentação. A pessoa quer ter o direito de cozinhar a própria comida, em um ambiente que seja privado e seguro, em que ela tenha liberdade para cozinhar o que ela quiser, usando os temperos escolhidos e a quantidade desejada”.

Para Luciana Maria, nutricionista e doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), uma das maiores dificuldades de construir políticas públicas voltadas para a população em situação de rua é a falta de dados. O censo do IBGE, importante ferramenta na formulação de políticas públicas, é restrito a pessoas domiciliadas. E os dados atuais da população de rua são isolados, oriundos de censos estaduais e municipais e de estimativas baseadas nos dados do SUS e do CadÚnico – números que inclusive costumam apresentar discrepâncias entre si no que se refere ao total de pessoas em situação de rua. Essa escassez de informações prejudica a construção de políticas públicas efetivas.

Somente em 2023, com a aprovação do Projeto de Lei que instituiu o Programa Nacional de Cozinhas Solidárias, há uma primeira menção à população em situação de rua. A iniciativa prevê a contratação pública de organizações da sociedade civil, como cozinhas comunitárias e coletivas, para a distribuição gratuita de refeições à população em situação de vulnerabilidade social.

Apesar de ainda não haver linhas específicas de cuidado voltadas especialmente para essa população, Luciana entende que o programa representa um avanço importante. Segundo ela, as cozinhas comunitárias são estratégias com grande potencial, porque atendem as demandas de pessoas que não se encontram nas regiões centrais das cidades – onde os equipamentos públicos costumam se concentrar. Além disso, por geralmente estarem mais integradas aos territórios, elas têm o potencial de atender às demandas da população local de forma mais específica, em maior diálogo com sua cultura alimentar.

Outra iniciativa da sociedade civil de destaque é o projeto Cozinha Escola, coordenado pelo MEPSR-SP. Robson, fundador do movimento, conta que o projeto surgiu em 2020 no centro de São Paulo, durante a pandemia. A Cozinha Escola recebe esse nome porque, além de oferecer refeições, funciona também como um centro de formação e capacitação para o mercado de trabalho. Atualmente, é apoiado com recursos municipais e serve 3.700 refeições por dia, com um cardápio variado ao longo da semana.

Além de criar de um censo nacional que possa guiar a construção de políticas públicas, Luciana entende que estabelecer convênios com entidades da sociedade civil e ampliar os programas e equipamentos públicos já existentes também são caminhos importantes no combate à fome e à insegurança alimentar dessa população. Ela destaca a necessidade, por exemplo, de viabilizar a gratuidade em restaurantes populares, assegurar seu funcionamento também aos finais de semana e ampliar o número de refeições distribuídas.

“A população em situação de rua é invisível para as políticas e para o poder público. É desesperador como ela não é colocada nas decisões e políticas pensadas para superar o problema da fome”, comenta.

Larah Camargo é graduada em midialogia e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)